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Que ha ahi de commum?! Unicamente o nome, accidente impessoal, insignificativo, nullo. O corpo é manifestamente diversissimo, e em tudo outro, e com o corpo outro e tão diverso, outras e diversas igualmente são as faculdades intimas, outro e diverso o sentir, o querer, o recordar, o ambicionar. Não são epocas de uma vida; são vidas verdadeiramente distinctas, talvez contrarias, que se encadeiaram por um trabalho simultaneo e occulto da natureza e da fortuna, dos sucessos e de nós mesmos (CASTILHO, 1861, p. 183).

Com essas definições, Castilho começou um texto autobiográfico, “A Chave do Enigma”, no qual tenta explicar o que o levou à composição de Amor e Melancolia, um livro publicado “sem cuidar no publico” (CASTILHO, 1861, p. [13]) e cujo sucesso ele não compreendia muito bem99. Ele aponta nesse texto que “o individuo não é só a alma; o corpo que a reveste, a serve, e tantas vezes a domina, é mais que sujeito a continuas e espantosas variações” (CASTILHO, 1861, p. 182). Também afirma que, uma vez que há essa “desidentificação incessante do corpo” de um indivíduo em dois momentos distintos de sua vida, ele está, afinal, a escrever um romance, tão ficcional quanto a “historia que se escreva de um personagem, ou de um povo, ás vezes remotissimos em logar e tempo”. E pergunta: “escrever o seu preterito não é escrever já de outrem?” (CASTILHO, 1861, p. 184). Segundo Peter Gay, ao longo do século XIX, “tornou-se uma obviedade dizer que a autobiografia é necessariamente o resultado de uma consciência dupla” (1999, p. 153). Entretanto,

uma autobiografia é um ato complexo de linguagem, muitas vezes um triunfo sobre a ansiedade, adulando, desculpando, vangloriando-se, tudo para narrar uma história pessoal consistente. Mas, ao lado dos outros fatores que levam à distorção, a simples passagem do tempo com freqüência impingia ao autobiógrafo uma persona enrijecida em máscara (GAY, 1999, p.166).

Seria esse texto, publicado tão distante da primeira edição desses poemas da juventude, “A Chave do Enigma” não só do livro a que serve de paratexto, mas aquela chave capaz de explicar a obra poética de Castilho? Afinal, ela é escrita após quase todos seus livros de poemas100. Como “no século XIX muitas confissões revelavam menos do que seus autores pretendiam ou proclamavam – e outras revelavam mais” (GAY, 1999, p. 130), se, como Castilho afirma, “nesta desidentificação, neste apartamento dos dois eus” (CASTILHO, 1861, p. 185), ele explica-se a si próprio numa biografia ficcional, então ela pode iluminar não apenas uma parte de sua obra, mas qualquer parte dela pelo mesmo princípio incessante de “desidentificação”.

Inclusive, atentamos para um fato importante: a obra castilhiana tem sido avaliada, desde sempre, apenas por partes, propositadamente ou não. Um motivo é claro: é uma obra vastíssima. Observando apenas as composições poéticas, são nove livros, ou melhor, nove títulos publicados em vida. Em alguns casos, aproveitando uma reedição, Castilho modificou e acrescentou poemas e outros paratextos. Destaca-se nesse processo o próprio Amor e

Melancolia, que ganha uma segunda advertência além do já aludido texto “A Chave do

Enigma” que possui maior extensão do que o próprio corpo poético do livro. Também A

Primavera sofreu profundas modificações da edição de 1822 para a de 1837, não apenas

ganhando paratextos, mas tendo seus poemas recompostos, com alteração de versos, substituição de imagens e de palavras, cortes de versos, acréscimo de outros, causando uma verdadeira reestruturação de alguns poemas, o que o torna, definitivamente, outro livro. Postumamente, o filho Júlio de Castilho reeditou a obra do pai e publicou alguns inéditos, como O Presbitério da Montanha, cujos poemas foram compostos na Serra do Caramulo, enquanto acompanhava seu irmão, pároco em Castanheira do Vouga, mas cujo prefácio, de 1844, chegou a ir para a tipografia e do qual A. F. C. distribuiu alguns exemplares. Também foi publicada postumamente uma nova coletânea de poemas a que o filho deu o nome de

Novas Escavações Poéticas. Nesse momento, vêm à luz ainda, fora dessas edições, algumas

obras que haviam sido publicadas isoladamente em folhetos ou em periódicos, sobretudo as de conteúdo político101, e outras a que o filho deu destino diverso, como as Epístolas a Francisca Possolo da Costa, que foram incorporar o Palestras Religiosas. Mantém-se ainda

100 Inclusive, quase todos os poemas que compõem O Outono, de 1863, já estavam compostos em 1861. 101

Crónica Certa e Muito Verdadeira de Maria da Fonte (1846) e Eco da voz portugueza por terras de Santa

inédito um livro da juventude que ficou incompleto, cujo manuscrito encontra-se no Arquivo Nacional Torre do Tombo, Hero e Leandro, ou A Sacerdotisa de Vénus. E não aludimos aqui às traduções de Castilho, mesmo sabendo que para ele há muito mais criação ou mesmo adaptação do que simples paráfrase para o vernáculo.

Faria falta para a compreensão de sua poesia a leitura de todos os poemas que compõem sua obra? O próprio Castilho, na Primavera de 1837, baseado em Dumas, aponta que sim: “Eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que fui, sou, e hei-de ser, do que pelo que sou; porque nascendo-nos o presente do passado, ainda que diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não é sermos conhecidos” (CASTILHO, 1903, p. 33).

Nós mesmos102, numa breve biografia de Alexandre Herculano, apontamos que há uma coerência ideológica, tanto política quanto estética (intrinsecamente ligadas), na obra desse romancista e historiador. Ofélia Paiva Monteiro103, em sua tese sobre a formação de Almeida Garrett, mostra que também há uma coerência entre as produções da juventude e o Garrett maduro. Sérgio Nazar David, ao analisar a correspondência familiar de Garrett, percebe uma “coerência espantosa” (DAVID, 2012, p. 20) em suas posições políticas, sem deixar de assinalar as contradições de sua “dúplice natureza”104, mostrando o homem que era, inserido em seu tempo.

Não tem sido esta a visão da crítica sobre António Feliciano. Salgado Júnior, ao escrever sobre o poeta em Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XIX, estranha a situação de Castilho:

Creio que será difícil encontrar em qualquer época da história literária portuguesa, ou mesmo de outra nação, um caso tão estranho como é este de Castilho. Uma longa série de equívocos, próprios ou alheios, se estende em cadeia sem fim [...]. Anda nisto tudo uma espécie de comédia dos enganos, que cada vez se embrulha mais, até chegar a situações absolutamente paradoxais. E o pior é que tal comédia se não desenrola na lógica do cómico para chegar a um remate feliz. Não: só aparentemente é que é comédia, – pois que se pode descobrir que, enquanto a comédia dos enganos se desdobra, há um personagem que está, sem disso ter consciência, a desenvolver um papel trágico, – e essa personagem é sempre Castilho. [...] Se isto não é, de facto, uma farsada trágica, não sei que nome dar às vidas que se erram (SALGADO JÚNIOR, 1947, pp. 52-53).

102 CRUZ, Carlos Eduardo Soares da. Pouca Luz em Muitas Trevas: Eurico, o Presbítero no Liberalismo

Português. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientadores: André Bueno e Sérgio Nazar David.

103 Professora da Universidade de Coimbra, com longa carreira dedicada aos estudos garrettianos, autora da tese

A Formação de Almeida Garrett. Experiência e Criação (1972), e coordenadora da equipa responsável pela

edição crítica das obras de Almeida Garrett.

O próprio Júlio de Castilho, nas memórias que escreve sobre seu pai, aponta com certa estranheza como António Feliciano associava-se e distanciava-se seguidas vezes da estética romântica. Aliás, não é fato novo que Júlio, apesar da longa defesa que faz da figura do pai, ou não o compreendeu ou não o aceitou totalmente, pois tentou de várias formas maquiar a obra paterna para que melhor se adaptasse à imagem de intelectual que ele gostaria que passasse à posteridade. Em suas edições, há alterações de palavras, pontuação e paragrafação, há a eliminação de trechos, e uma decisão aparente de não publicar tudo o que o pai escrevera no que seriam as Obras Completas de A. F. de Castilho. É esta, entretanto, a última edição da maior parte da produção castilhiana e, por isso mesmo, a mais facilmente encontrada pelos críticos.

Não pretendemos, claro, ao propormos aqui uma análise breve da obra poética de Castilho, afirmar uma verdade última sobre a mesma. Aliás, nem nos deteremos exaustivamente em todas as composições castilhianas, inclusive porque fugiria ao escopo desta tese. Propomo-nos a, a partir da leitura atenta desse poeta e do interesse em nós despertado por certas facetas de sua obra, que nos parecem ter sido ignoradas pela crítica, buscar certa coerência nesse conjunto à primeira vista dissonante. É tentar, com base no que aponta o próprio autor, identificar algo que de alguma forma explique não apenas sua poética, mas o que ele buscava em poesia e como ele via o papel do poeta.

Se, segundo nossa hipótese, o pensamento romântico, como resistência ao capitalismo, materializa-se de modo plural, variado, a poesia romântica não pode, obviamente, ter uma só voz, um só estilo. Percebendo o que Castilho foi como poeta, não apenas em um livro ou num período de sua vida, mas conhecendo-o como ele pede que seja, podemos identificar um motivo – se não o único, ao menos o principal – para que um autor figurasse nas páginas da

Revista Universal Lisbonense. Isso se, tal como pensamos, ele utilizava seu periódico para

defesa de um estilo poético, tal como usara outros periódicos para defesa de uma forma política de liberalismo.

Indicamos anteriormente que Castilho afirma, em alguns livros, ser outro em relação ao autor de livros anteriormente escritos por ele. Também afirmamos que os temas e a forma de seus poemas variavam. Acrescentamos agora que, diferentemente do esperado de um poeta de escola romântica, António de Castilho rompe diversas vezes com a emocionalidade e com a lógica de exposição da subjetividade. Na verdade, são poucos os exemplos de poesia explicitamente subjetiva em sua obra. Sua poética apresenta-se muito mais como resultado de

um trabalho ficcional, intelectual e artesanal do que produto de um gênio inspirado. Por isso, o aparente paradoxo (lembrando as palavras de Salgado Jr.) desfaz-se pela “chave do enigma”. Castilho apresenta-se, de fato, como vários poetas – gérmen de uma crise do sujeito na modernidade. Nesse caso, todos se assinam pelo mesmo nome. Não era também a questão nominal que unia o gardingo, o cavaleiro, o poeta e o presbítero Eurico? Apesar deste “accidente impessoal, insignificativo, nullo”, os poetas Castilho também nascem, morrem, enterram-se, desenterram-se, refutam-se e reincorporam-se a si mesmos como parte de sua própria tradição.

Para que essa ideia poética de ficcionalização em Castilho fique mais clara, seguiremos alguns caminhos por sua obra. Partiremos de uma breve apresentação de cada um de seus livros, atentando ao que parece se manter e ao que se rompe entre um e outro, tentando situar cada um deles, além de destacar como o próprio Castilho relaciona-os ou não com os anteriores. Em seguida, observaremos como esse poeta explica sua arte poética, as estratégias de composição, suas dificuldades, o papel da poesia e a relação com outras artes, atentando a alguns temas e imagens que predominam ao longo de sua obra enquanto outros são desprezados. Esperamos assim ter um panorama dos critérios dele para valorar as obras literárias e os próprios literatos.

5.1 – Um Percurso Poético

Sabe-se que a carreira literária de António Feliciano de Castilho começou cedo e prolongou-se por um bom tempo. São quase 50 anos entre o primeiro e o último poema publicados. Com apenas 16 anos leva a público o longo Epicédio105; aos 18, um sobre A

Faustíssima Exaltação de D. João VI. Já com longas barbas brancas, edita, em 1863, O Outono. Estranho caso de um adolescente que começa na vida poética cantando a morte?

O Epicédio, com 503 versos, antecedido de uma dedicatória de 83 versos, com suas respectivas epígrafes e 22 notas, foi um sucesso de público. Logo após a publicação, é reimpresso nas páginas do Jornal de Coimbra106, periódico de seu pai, José Feliciano. Apesar

105

Título completo: Epicedio na Sentida Morte da Augustissima Senhora D. Maria I. Rainha Fidelissima.

Offerecido a Seu Augustissimo Filho D. João VI. Nosso Senhor.

106 Informa o jornal: “Ésta Peça publicou-se avulsa pelos fins do anno passado. Em poucos dias se-consumio a

Edição, por isso se-reimprime agora, mas com algumas emendas e accrescentamentos, assim no Texto, como nas Notas, feitos pelo A., o qual frequentava o anno passado a Aula de Rethorica, e frequenta este anno a de Philosophia racional e moral no Convento de Jesus, em Lisboa” (Jornal de Coimbra, Num. L, Parte II, p. 73).

de ser o primeiro poema publicado, o cantor deixa claro logo nos dois primeiros decassílabos que possui outras composições: “Depõe, ó Lyra, os ledos sons, que outr’ora\ Minhas doces Canções accompanhavão”107. Não são, de fato, seus primeiros versos. Apesar de o poema ser uma homenagem à rainha morta, seu começo remete aos seus mestres e indica que já os elogiou em poemas anteriores108. É este hábito de referir-se a alguma outra obra sua que nos permite apontar relações entre as mesmas. Tal como ele volta a fazer na Faustíssima

Exaltação109.

Nesse segundo poema, de 1818, a composição alonga-se. São três cantos, com 393, 766, 653 versos respectivamente, além de uma dedicatória de 50 versos, acompanhados de 97 notas explicativas. Nesse livro dedicado ao rei, o vate não o deixa esquecer a primeira composição, invocando-a logo nos primeiros decassílabos do primeiro canto: “INTERPRETE fiel já fui outr’hora\ Da dôr acerba, da pungente mágoa,\ Que da Lysia infeliz rasgava o peito\ Ao vêr tornada nas funereas cinzas,\ Dos Lusos esplendor, Maria Excelsa” (CASTILHO, 1818, p. 1). Entretanto, há algo mais forte unindo esses dois poemas além da composição em decassílabos brancos, a homenagem ao rei e a referência a composições anteriores. Ambos são apresentados como tendo sido inspirados pela verdade. A dedicatória do Epicédio começa com o quarteto de invocação: “Das cinzas sepulchraes surge, ó verdade,\ Do Sempiterno filha rompe as sombras,\ Accende o facho teu, guia minh’alma,\ Tu meu Estro serás, serás meu nume.” A da Faustíssima Exaltação começa por descrever o aparecimento de uma deusa em cuja destra “de brilhante explendor sustenta um facho”. “Era a formosa, a candida Verdade”.

Não sabemos se o jovem António Feliciano percebeu o que fez. Supondo que seus leitores encarariam o longo encômio como falso, ao afirmar que seus versos surgem da Verdade, não deixaria seu público mais ciente da falsidade do que canta? Ou com mais dúvidas sobre a veracidade do que apresenta, apesar do significativo número de 97 notas? O que transparece desses dois poemas é justamente essa dúvida entre realidade e ficção. Os grandes feitos de d. João VI, mais do que “Pai da Patria”, o “Numem d’ella”, não são os dignos de epopeias. Castilho apresenta obras pontuais como dragagem de rios e atos

107 Citamos a partir da edição publicada no Jornal de Coimbra.

108 Há no Fundo Castilho do ANTT um breve catálogo em fichas correspondentes a uma “Cronologia das Obras

de Castilho” (Cx 67; Ms 11), composta por Júlio de Castilho, que indica ao menos dois poemas predecessores. Um “Soneto Ao célebre Padre Frei Balthazar da Encarnação” e uma “Ode Ao Desembargador Antonio Ribeiro dos Santos”, ambas publicados no primeiro volume de Novas Escavações Poéticas. Sobre o primeiro, as anotações de Júlio de Castilho informam serem o primeiro soneto e segundos versos do autor sem, infelizmente, indicar quais teriam sido compostos anteriormente.

109

Com o título completo de A Faustissima Exaltação de Sua Magestade Fidelissima o Senhor D. João VI ao

administrativos como a concessão de títulos como sendo marcos importantes do governo de sua majestade, longamente esmiuçados. Ao mesmo tempo, não consegue cantar a virtude e o valor dos primeiros monarcas portugueses: “A mente do mortal, o engenho humano\ De todos o louvor jámais tecêra:\ Cem bôccas, linguas cento, e voz de ferro\ Natureza não dá, que o Assumpto igualem” (CASTILHO, 1818, p. 3). Já no Epicédio, quando tentou relatar os grandes feitos da monarca, cedeu sua voz à rainha morta.

Até mesmo o propósito dos poemas, elogio ao monarca, é posto em causa quando o vate reclama dos destinos do país (“Oh Providencia! Oh leis de ignoto fado!”) e imagina o retorno da família real, tanto em 1816, quanto em 1818: “Tu não Pódes, ó Rei, a nossas preces / Teus ouvidos negar: Attende como / Propicia a nossos ais Justiça os-ouve, / Como nossa esperança anima os votos” (CASTILHO, 1818, p. 48).

O que se nota nesses versos da juventude do poeta, adolescente ainda, é já uma atuação política, apesar do objetivo primordial dos poemas ser outro. O elogio aos monarcas é marcado por ações que favoreceram a população, o país, com construções e administração, no reino e no Brasil, enquanto ataca Bonaparte por ter desvirtuado os ideais da Revolução e levado a Europa à guerra.

O livro que António de Castilho publica a seguir, em 1821, é a primeira parte das

Cartas de Eco e Narciso. Sobre ele, não é difícil dar razão a Teófilo Braga quando diz que é o

mesmo assunto repetido à exaustão. O lirismo cede lugar a uma narratividade numa novela epistolografada na qual Eco está apaixonada por Narciso, que ignora, foge e desdenha de seu amor. Em um bosque idílico, os dois jovens trocam longas cartas em decassílabos brancos esculpidos nos troncos das árvores. O livro só se completa na segunda edição, de 1825, quando são publicadas as duas partes do poema. É mais uma sequência de cartas em decassílabos brancos entre Eco e Narciso, seguida de redondilhas sobre o mesmo tema. Como narrativa, há um problema estrutural que parece não ter sido previsto pelo autor. Como toda a história é narrada por cartas quer de Eco quer de Narciso, após o jovem se transformar em flor e Eco se perder entre as montanhas, quem narrará esses acontecimentos? Foi preciso arrematar com um idílio “para servir de conclusão ao romance”, no qual se contam as queixas de Liríope e o que se passou com Narciso.

Quanto à composição poética, o autor faz uma autocrítica e reconhece o excesso de figuras míticas, tanto neste livro quanto n’A Primavera, publicado em 1822 entre as duas partes das Cartas, portanto. Além disso, ele tentou tornar a segunda parte menos monótona,

assumindo que “há n’ella mais poesia, mais movimento, mais variedade e attitudes” (CASTILHO, 1903, p. 17). Ao mesmo tempo, Castilho assume que há novidade nesse estilo de poesia que estava publicando, tanto na segunda parte das Cartas quanto na Primavera, o cantar a natureza nacional. Ele estaria nacionalizando um gênero de poesia comum a alguns alemães do século XVIII, como o suíço Gessner, seu exemplo preferido. “Castilho era muito dedicado ao poeta, que representava a seus olhos uma actualidade sem problemas demasiados e, sobretudo, sem polémica” (FRANÇA, 1993, p. 42). É um ataque frontal ao desespero de certa poesia de moda romântica, ao mesmo tempo em que ataca o modelo árcade com toda sua profusão de imagens retiradas da mitologia greco-romana – da qual ele mesmo tinha dificuldade de se desvencilhar.

Homens de mais imaginação que juízo, arrojaram-se acima das nuvens, vagaram por entre os astros, viram por toda a parte deuses; mas, esquecendo-se da terra e dos homens, mereceram que a verdade os desamparasse, e perderam todo o direito á estima dos amigos dos homens e da Natureza. Os loiros do Parnaso teem-se desfolhado debaixo de uma chuva de gelo brilhante. A tempestade continúa, o horizonte ameaça brilhar ainda muito tempo com o fogo dos raios em vez da claridade pacifica do sol. Os nossos jovens litteratos se acham na mais difficil posição entre rochas escarpadas (CASTILHO, 1903, p. 16).

Ora, aos vinte e cinco anos não era Castilho um desses “jovens litteratos”? A profusão de referências mitológicas não o aproxima também dos homens que “viram por toda a parte deuses”? Estranhamente, António Feliciano parece se colocar em 1825 acima dos “mancebos” a quem ele escreve o prólogo, ao mesmo tempo em que já despreza em parte os versos que está publicando, pois recomenda que os jovens poetas esqueçam tanto as figuras mitológicas que pululavam nos poemas árcades e em seus próprios escritos (“Jove”, “Eolo”, “Neptuno”, “Acheronte”) quanto as “rochas escarpadas”, o locus horrendus característico dos poemas da escola romântica (“Raios”, “Ventos”, “Tempestades”, “Furias”) para cantar “a ternura, o amor, o prazer, os campos, e a felicidade” (CASTILHO, 1903, p. 17). Deve-se cantar a “felicidade”, sem se esquecer “da terra e dos homens”. Seria isso possível? Talvez, se lembrarmos que Portugal devia estar passando por um momento de grande entusiasmo e expectativas, após a revolução liberal e o retorno do rei e da Corte. Vencidas as primeiras

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