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V. CORPO E CONSCIÊNCIA JURÍDICA: UMA CONCRETA ALTERNATIVA

5.4. Um novo modo de experienciar o Direito

5.4.1. Fenomenologia Jurídica?

A partir do desenvolvido nesta tese, seria possível pensar que o Śivaísmo da Caxemira se aproximaria do que se entende por método fenomenólogo? E, não somente no, mas seria possível pensar que as outras estruturas de pensamentos trazidas aqui, além do Śivaísmo, também não flertariam com a fenomenologia? Será essa tese um exercício de fenomenologia jurídica por acidente? Nesta seção explorarei tais questões, no intuito de trazer mais uma perspectiva que parece afim com essa pesquisa, podendo iluminar alguns pontos e, novamente, reconfigurar o que já foi trazido, sob uma nova perspectiva dentro desta seção que trata justamente sobre um novo modo de experienciar o Direito.

Dyczkowski e outros pesquisadores do Śivaísmo da Caxemira por vezes fazem analogias ou usam termos heideggerianos no intuito de usar uma “linguagem mais acessível ao ocidente”. Nesse sentido, penso que ser válido suspeitar de que tenha sido realizada certa fenomenologia jurídica, apesar de não se ter entrado conscientemente e explicitamente neste tema, nem tendo sido usado tecnicamente tal termo até então. Vejamos, a seguir, a contribuição do renomado psicólogo e psiquiatra fenomenólogo Van den Berg para pensarmos sobre algumas questões pertinentes já trazidas nesta tese, no intuito de, depois, ingressar em alguns breves casos onde poderemos observar certa ocorrência do que vem sendo trabalhando.

Vejamos essa citação inicial de Van den Berg: “O habitante das cidades corre, o camponês anda compassadamente, o monge é solene em suas atividades: os seus objetos

são diferentes.”5 São, pois, mundos diferentes e não somente modos de lidar com os

mesmos objetos. Os objetos mudam, pois o sujeito e a relação com os objetos muda. Ele traz a história de uma mãe de uma menina judia tirando uma velha toalha preta e vermelha, usada todos os dias da semana, para estender uma toalha branca, aos sábados. A mesa fica nua por um instante, com suas manchas e marcas, e, então, a toalha branca é lançada bem alta e vai descendo, cobrindo toda a mesa lentamente. “Algo” aconteceu, mas ela não sabe exatamente o quê. Tudo mudou: a mãe, a cadeira, os móveis, o fogão, de repente, sem noticiar.6

A mudança ocorre, mas será que são os objetos que mudam? Ele diz: “...diariamente, cada um de nós vive na realidade dessa espécie de experiência. Os objetos mudam de aparência todos os dias, continuamente e nunca sem alguma razão”.7 Ou seja, as

mudanças ocorrem sempre, todavia nem sempre estamos conscientes ou atentos o suficiente para enxergar a mudança e o porquê dela. É enorme a diferença da primeira vez que se entra em uma Faculdade de Direito. A visão de certas colunas, arcadas, pátio, bustos, quadros ou qualquer outra estrutura mais imponente ou menos; o que importa é principalmente essa sensação de primeiro encontro desse ambiente com as noções e sensações que se carrega sobre este lugar, sobre as pessoas, sobre os valores, ensinos, práticas etc. Com o passar do tempo é frequente as cores ficarem mais desbotadas, sombrias e inclusive um desejo de não estar ali ou, ao menos, modifica-se a sua consciência e corpo diante deste lugar, agora menos encantado.

A primeira peça jurídica feita, os primeiros estágios ou júri-simulados e, depois, o desencantar com o Direito, pessoas julgando e afetando vidas como se fossem meros números em folhas de papel. E um re-encantar com o Direito quando se enxerga alguma interpretação jurídica brilhante ou justa – sem retirar, é claro, os casos das excitações por ter “derrotado” e ter obtido vantagem indevida em detrimento da outra parte (o que não refuta o que trago aqui, mas o reforça, pois continua sendo percepções diferentes do mundo e objetivos modificando-se o tempo inteiro).

Segundo Van den Berg, tais mudanças são explicadas por alguns psicólogos como projeções, a partir de uma observação reflexiva – termo que está sendo usado no sentido de observação/pensamento somente mental e centralizado no Eu. Segundo ele, um fenomenólogo não acredita neste tipo de observação reflexiva, pois ela não consegue

5 VAN DEN BERG (2000: 54)

6 VAN DEN BERG (2000: 55)

mostrar como o indivíduo viu/percebeu a mudança. Enquanto um não-fenomenólogo se restringiria a uma observação sem emoção e empatia, um fenomenólogo se dedicaria ao que realmente está acontecendo, aos fenômenos como são, a partir de uma observação espontânea e despida de uma análise reflexiva precoce, a qual perturbaria a análise das coisas. É preciso, pois, se colocar pessoalmente na situação. O fenomenólogo mantém fidelidade aos fatos na medida em que vai observando o desenrolar deles sem projeções, nem reflexões imediatas.8

Esta noção do imediato, “sem intermediário”, é justamente a compreensão de que uma consciência expandida entende que as transições entre corpo-consciência, eu-outro e habitual-criativo, são feitas a todo o momento, sem intermediações e alterações entre um polo e outro. Todavia, por nossa dificuldade de compreendê-las, tendemos a narrar o mundo a partir de tais dualidades, pois é deveras difícil e inusual narrar e pensar a partir de uma unidade imediata e espontânea que se desenrola, aparecendo em fenômenos. Vejamos essa longa, mas pertinente citação da obra de Van den Berg:

A unidade não é uma simples ideia. Unidade ou distância aparecem dentro da fisionomia do mundo.

(...) Enquanto a psicologia se basear numa interpretação filosófica considerando a existência humana de uma alma encerrada dentro do corpo, não se poderá esperar que a psicologia esteja interessada em objetos. Neste caso, os objetos são estranhos a nós: estão mesmo fora de nosso corpo e somente podem ser incorporados, de certa maneira, quando nosso desejo, nossa lascívia ou libido se descarrega neles. Em outras palavras: os objetos nunca nos pertencem na realidade, pois o que consideramos aspectos íntimos e fiéis dos objetos, resultam pertencer finalmente ao sujeito. Tem sido esta, até há pouco, a explicação dada pela psicologia. O mundo não tinha significado. (...) A psicologia fenomenológica tem sua origem nessa observação. Existe um contato original com os objetos. Frequentemente, nós é que somos os objetos. O sapateiro perde consciência de si mesmo; está absorto em seu trabalho, transforma-se no sapato que está remendando... O escritor transforma-se em seu romance, se é que deseja escrever bem. (...) Quando compreendemos isto, deveremos nos precaver contra a tendência de considerar o contato entre o homem e o seu semelhante como uma conexão entre “almas”. A inadequação da última palavra implica a impossibilidade da palavra que a precede. Não há “entre”. As relações inter-humanas realizam-se como fisionomia de uma palavra, como proximidade ou distância de deveres e planos, ou seja, de objetos.

(...) A essência de todos esses fenômenos não é o contato de corpos anônimos. O contato efetua-se entre o homem e o seu semelhante, é direito, sem separação, é a participação de um no outro. Um simples aperto de mão pode elucidar a natureza do contato em si mesmo. Cada um de nós conhece o aperto de mão que despreza, que abusa e insulta; como também conhece a

grande variedade de apertos de mãos que revelam a amizade e o amor.9

É por isso que as dinâmicas de olhos nos olhos, dentre outras, mostram que a mera presença do Outro afeta literalmente o nosso mundo, a nossa consciência-corpo de forma

8 VAN DEN BERG (2000: 56-58)

inevitável e direta. O que faremos a partir disso depende de como estruturaremos e descrevemos tal experiência e nossas relações diárias. O contato com o Outro pode estragar um dia num museu, um filme, uma discussão, um passeio, bem como transformar nosso dia em uma ótima experiência. Nós somos afetados a todo o momento, enquanto pessoas, e enquanto juristas, de forma frequentemente não-consciente e não-presente. Entende-se, pois, o porquê é difícil mudarmos a nós mesmos e a consciência jurídica em geral (incluindo nesse termo, como dito, as práticas, argumentos, teses, instituições e valores envolvidos no fenômeno jurídico). Entramos no ambiente de tribunal, escritório, gabinete, salas de aulas etc. e passamos a enxergar as coisas com os “olhos de juristas” e, mais especificamente, com os olhos dos chefes e companheiros de trabalhos ou das autoridades. Vamos nos limitando.

A partir disso é possível compreender a necessidade de se afastar e se desvencilhar completamente ou parcialmente de um determinado ambiente ou grupo de pessoas para que consigamos mudar; pois essas presenças e relações são muito fortes, muito diretas e constantes, marcando-nos e direcionando-nos para determinadas sensações, pensamentos e comportamentos – por mais que estejamos tentando compreender o mundo de forma diferente. Compreender como é possível modificar o mundo é compreender como o próprio mundo se constitui. E ele não se constitui propriamente em uma relação “entre”, mas em relações diretas e imediatas (sem intermediários) constantemente, afetando nossos corpos-consciências, pois vivemos e sentimos sempre de forma compartilhada – seja em nossos hábitos privados em relações amorosas; seja em nossas ações públicas em relações e posicionamentos jurídicos.

Enquanto continuarmos a perceber a “alma” encerrada dentro de um corpo, ao invés de entender que consciência é corpo (constitui e é constituída), será difícil entender possíveis mudanças mais profundas e críticas no Direito. Padeceremos e sofreremos com mudanças superficiais e não-integrais, sempre defasados. E, igualmente, o hábito se constitui com as inovações criativas e por elas é constituído. E, por fim, o eu só se constitui e é constantemente constituído na relação com o Outro. A questão é que isso ocorre de maneira não-consciente a maior parte do tempo.

Vejamos esse trecho:

Quando observo o dorso da minha mão vejo veias que formam certo desenho. Assim que acariciamos essa mão “incidental”, assalta-nos a convicção de que as veias estão se estendendo aí exatamente como devem. A carícia suspende a natureza acidental do desenho.

A carícia provoca uma transformação na mão. A carícia transforma o corpo, mesmo se o fisiólogo não consegue analisar essa transformação. Como

indivíduos, todos sentimos que o nosso corpo é mais ou menos estranho para nós. Tem certa forma, que não foi pedida nem desejada e apresenta algumas particularidades. (...) Por que exatamente este corpo? Este nariz e esta fronte? Até que outra pessoa nos diga que este nosso corpo é exatamente como deve ser. Na amizade e no amor, a natureza acidental do corpo é eliminada; efetua- se a justificação do corpo. O amor remove a distância do corpo; algo acontece que se pode chamar de adesão ou concordância, o indivíduo começa a ocupar o seu próprio corpo e é convidado a ser esse corpo. (...) A outra pessoa desempenha um papel nas relações que temos com o nosso próprio corpo...

As palavras, os gestos e os olhares dos outros podem aumentar ou diminuir a

distância entre homem e corpo. É raro que haja mistura de ambos.10

É por meio do toque, mas também pelos diversos comportamentos em sociedade que os corpos vão se constituindo, reconhecendo-se a si mesmos e aos outros. As agressões e exclusões ocorrem em vários comportamentos muitas vezes não-conscientes e o Direito precisa compreender isso, se quer captar melhor uma situação e se posicionar diante de algum problema jurídico que surge. Se eu disser para vocês pararem um pouco de ler e olharem para sua mão por alguns instantes tentando observar os detalhes (quantidade de pelos, veias, ossos, pintas, marcas, e diferentes desenhos/formas existentes), este mero olhar irá levar a sua consciência para isso. Você deixou de ser perna, pé, abdômen e virou mão. Porém, agora que eu disse o nome dessas outras partes do corpo humano, você já virou um pouco perna, pé e abdômen. Agora, se tocarem a própria mão, será uma mão experienciada de modo bem mais imediato do que simplesmente o olhar, até porque estamos acostumados a modos de sentir mais densos/grosseiros do que sutis. Nós não somos acostumados a olhar para a mão e começar a sentir nossa pulsação. Isso muito difícil para a maioria em um primeiro momento. Tem várias existências de si e do Outro ocorrendo a todo o momento – nós simplesmente não estamos conscientes, atentos para tanto; nossa consciência não está voltada para tais aspectos.

Porém, se levarmos a nossa consciência para o “marginal, o criminoso”, para o outro litigante no processo, para o empregado/empregador no direito trabalhista etc., talvez comecemos a entrar em maior sintonia e nos aproximaremos, começando a melhor compreender o Outro. Nossa consciência se volta para tanto e até nos esquecemos um pouco de nós mesmos, passando a nos tornar o Outro nem que seja por alguns instantes em um primeiro momento. Se tivermos empatia com o que está por detrás do papel/processo jurídico diante de nós, com certeza, já será diferente: um mero ato de tomar alguns segundos e realmente trazer nossa atenção para o que fazemos. Ocupando o nosso próprio corpo e ocupando a própria realidade, a qual é uma extensão do nosso corpo e do nosso Si.

É por meio desse reconhecimento em relações de amor, amizade ou simplesmente cidadania que vamos nos estimulando a estar mais confortáveis conosco e ocupar determinados espaços, lutando por e exercendo determinados direitos.

Nesse ponto de um corpo ocupando espaço, Van den Berg traz o exemplo de uma jovem de 16 anos que entra em um ambiente em que o irmão mais velho está conversando com amigos. Quando ela entra, os colegas param de conversar e olham para ela. São olhares masculinos que querem atravessar o objeto, penetrar as roupas, despindo-a:

Em decorrência, a jovem sente que lhe roubaram o corpo: de certo modo seu corpo tornou-se propriedade do corpo dos amigos do seu irmão. Mas esta alienação do próprio corpo não é tudo. Pela primeira vez em sua vida, perceba que deseja possuir este corpo, novo e bem-modelado. Torna-se mulher aos olhos dos rapazes e percebe que, num dia próximo, será completamente mulher, num momento menos surpreendente e da sua própria escolha. Quer ser o seu próprio corpo e, por isso, a parte que pode ser vista, o rosto, enche-se de sangue. Enrubesce, torna-se visível, mas visível que antes de ser algo dos olhares masculinos. O seu sangue move-se para responder aos olhares dos rapazes, mas, ao mesmo tempo, o seu rubor é uma barreira, atrás da qual ela se esconde. Ela se esconde detrás de uma camada de sangue. Seu rubor é uma repulsa. Seu rubor é o resultado de um afastamento do seu corpo e da nova intimidade com seu corpo. O olhar das outras pessoas afasta seu

corpo e, ao mesmo tempo, o aproxima.11

Tais influências nos corpos vão ocorrendo aos poucos até que em determinado momento por algumas conjunturas próprias e externas, em alguma situação, como a descrita acima, determinado comportamento pode se tornar mais claro e abruptamente consciente. A sexualidade lhe foi imposta desde cedo e, em algum momento, isso pode vir a tornar-se mais consciente. A noção de ser tratada como objeto, disponível aos olhos que não a olha, mas a atravessa. A maioria das pessoas se assusta em casos de estupros ou mesmo da quantidade enorme dos abusos diários, todavia não percebe que ela mesma provavelmente realiza ou realizou comportamentos compartilhados a vida toda que repercutem e justificam tais ações de abusivo, inclusive juridicamente.

O direito de não ter seu corpo violado, nem abusado é uma conquista de modificações não somente jurídicas, mas igualmente comportamentais dos operadores do direito e da sociedade como um todo. A sociedade precisou e ainda precisa ser exposta em seus comportamentos machistas e patriarcais para que se entenda que determinados comportamentos não possam existir social nem juridicamente – outrora a mulher ainda era juridicamente dependente de seu pai ou marido, nem tinha direito a voto, e, ainda hoje, não tem direito de andar sem camisa como os homens. Olhar lascivos e invasivos na rua, apertos nas nádegas, peito, encoxadas, grupo de homens criando uma barreira física para

impedir a menina de passar em festas sem antes “pagar pedágio”, vídeos compartilhados de conhecidas ou desconhecidas, incentivos à pornografia e submissão variadas etc. Como é possível existir um judiciário sensível para lidar com essas questões, se os homens são ensinados nas festas das faculdades, em geral e na de Direito, a abusarem das mulheres em momentos vulneráveis o tempo inteiro?

A criação e a interpretação de leis que tratam de situações abusivas ou normais perpassam por uma formação psico-física de todos, mas especialmente daqueles envolvidos mais diretamente com certos poderes institucionais. Só se entenderá melhor os anseios e as demandas não somente atuais, mas outros que ainda nem podem aparecer devido à violência institucional abafadora de vozes, quanto melhor houver uma formação crítica teórico-corporal. A saber, conforme venho dizendo, as estruturas de opressão, distanciamentos e não-reconhecimentos do Outro, conquanto diferentes em suas formações e manutenções, se repetem historicamente nos diferentes tipos de agressões: negros, lgbts, animais, pobres, encarcerados, refugiados etc.

É preciso, pois, desenvolver espaços passíveis de serem ocupados e vivenciados conjuntamente, um “estar-aí juntos”. Vejamos o seguinte trecho:

Meu amigo e eu estamos conversando. (...) Estamos conversando sobre a Islândia, que nenhum de nós visitou até agora, mas que conhecemos pelas nossas leituras. (...) Quando meu amigo fala desse país, procuro “entrar” nas coisas que diz. Por mais errada que possa ser nossa opinião (estivemos apenas lendo a respeito da Islândia), esforço-me em estar naquele país. Quando é a vez do meu amigo falar, ele procura estar comigo no país em discussão. Este nosso “estar aí”, juntos, é a nossa amizade, pois, se estivesse conversando com outra pessoa menos simpática, minhas palavras, mesmo sendo as mesmas, seriam incapazes de nos levar juntos para a Islândia, da mesma forma que as palavras dele, se não fosse meu amigo, seriam incapazes de encontrar em mim qualquer ressonância relativamente àquela ilha. (...) Num só relance vejo seu corpo, aprecio seu olhar, seu sorriso, suas mãos. Demonstro o apreço que lhe tenho, embora expressando-o vagamente. Meu apreço dá-lhe a liberdade de me falar como me fala, de me olhar como me olha e de mover-se como se está movendo. Minha presença não é uma crítica das suas expressões, mas uma apreciação. No meu olhar, sente-se ele como deseja ser. O fato de eu falar, ouvir e ver como ele, provoca a adesão, entre ele e o seu corpo. (...) É por isso que estou falando tão facilmente; é por isso que estou enxergando tanto; porque meu amigo está me ouvindo. Penetro nessa Islândia sem constrangimento, porque a amizade com meu amigo não conhece barreiras. A remoção das barreiras entre mim e os objetos é a amizade entre mim e ele. Ao mesmo tempo, sei que ele está olhando para mim. Ele me vê gesticular, falar, olhar. Estou movendo meu corpo livremente; sem qualquer obstrução estou fluindo para dentro dos meus braços, das minhas mãos, da minha garganta e boca, dos meus olhos. Estou

de posse do meu corpo; sou este corpo; sou este corpo – o que implica que

estou em bons termos com meu amigo. (...) O corpo e o mundo estão ligados um ao outro. Os objetos convidam o corpo a assumir uma forma; o corpo forma os objetos. Por conseguinte, as mudanças do mundo e do corpo, como estão ocorrendo na conversa, não são dois acontecimentos independentes um do outro. Que o meu amigo e eu possamos conversar sobre a Islândia

significa que ele e eu somos capazes de mover nossos corpos mais livremente

– e vice-versa. Ambos são um só.12

Percebam nesta descrição que entrar em um diálogo de verdadeira escuta do Outro é realmente “entrar” em um “estar aí juntos”. Ele traz o relato de amizade no primeiro momento, todavia, conforme ele vai desenvolvendo o argumento, é possível tentarmos expandir tal disposição para uma escuta aberta para a sociedade civil. Quanto mais desenvolvermos uma capacidade de autêntica e receptiva escuta, mais criaremos um momento de movimentação e expressão mais autônoma do Outro, sem constrangimentos. A criação de barreiras sociais ou argumentativas ou de autoridades ou quaisquer outras institucionais dificulta a expressão do Si e do Outro. Tal fechamento em Si é uma opressão de julgamento premeditado – e muitas vezes não-consciente – sobre o Outro, o qual não se sentirá tão à vontade para se expressar ou, ao menos, para se expressar sem agressividades ou posturas defensivas. Os nossos gestos corporais e falas podem, pois, criar um espaço de empoderamento e/ou de facilitação para o Outro, bem como podem oprimir e/ou dificultar o próprio existir e a expressão do Outro. Deste modo, uma conversa pode efetivamente

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