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A Fenomenologia como ponto de partida

PESQUISA QUALITATIVA NA MODALIDADE FENOMENOLÓGICA

4.1 A Fenomenologia como ponto de partida

Na perspectiva de compreender os significados que as travestis atribuem ao processo de transformação de seus corpos, recorremos à modalidade de pesquisa qualitativa fenomenológica, que nos norteará, de forma criteriosa e pertinente, para chegarmos ao objetivo proposto nesta pesquisa.

A opção por um método pressupõe uma questão a ser resolvida, e envolve determinada concepção ou suposição de realidade, ainda que provisória. Não é possível se falar de método desvinculado do fenômeno de estudo (Furlan, 2008). Nesse sentido, nossa escolha traduz uma posição em termos epistemológicos e um método de inspiração fenomenológica parece o mais adequado quando se pretende investigar e conhecer a experiência do outro, uma vez que o ato do sujeito de contar a sua experiência não se restringe somente a dar a conhecer os fatos e acontecimentos da sua vida. Mas significa, além de tudo, uma forma de existir com-o-outro; significa com-partilhar o seu ser-com-o-outro (Dutra, 2002).

Assumir uma estratégia qualitativa de pesquisa fenomenológica significa antes de tudo, adotar como horizonte teórico e filosófico a existência, compreendida na experiência vivida. E na medida em que entendemos o método já como parte da reflexão sobre os fenômenos investigados, optamos por um caminho que valorize as características próprias dos colaboradores da pesquisa. Uma vez que o homem constitui-se numa subjetividade que pensa, sente e tem na linguagem a expressão da sua existência, compreender a experiência humana representa uma tarefa de extrema complexidade. A pesquisa fenomenológica, portanto, ao considerar a dimensão do mundo vivido, nos sinaliza com a possibilidade de nos aproximarmos do outro, sem que se perca a principal característica que o distingue no mundo, que é a existência.

A Fenomenologia enquanto corrente teórica possibilitou à Psicologia uma nova postura para inquirir os fenômenos psicológicos: a de não se ater somente ao estudo de comportamentos observáveis e controláveis, mas procurar interrogar as experiências vividas e os significados que o sujeito lhes atribui (Bruns, 2007). De acordo com Holanda (2007) para realizar uma investigação do humano, deve-se recorrer a metodologias que deem conta do acesso às dimensões deste humano. Desse modo, é importante a utilização de um método de descrição e análise de processos que seja compatível com a tradição de uma psicologia de cunho humanista, para valorizar aspectos da intersubjetividade.

A pesquisa fenomenológica se apresenta como um método suficientemente criativo e flexível (Amatuzzi, 2007) para nos permitir explicitar a complexidade do fenômeno da vivência travesti, e, ao

mesmo tempo nos permite pensar nas relações profundas, simbolicamente internalizadas, que ocorrem entre estes seres humanos em seu contexto social, histórico e cultural.

A preocupação essencial da abordagem fenomenológica é o significado. A compreensão das coisas como elas se apresentam na realidade, valorizando a descrição da forma e da natureza dos fenômenos. A fenomenologia, ao considerar o caráter intencional da consciência, demonstra que é através da análise intencional que descobrimos como um objeto vem a ter sentido para a consciência e como a consciência se relaciona com o objeto (Moreira, 2004). Forghieri (1993), compartilhando com essa visão, diz que os significados são os sinais da intencionalidade, isto é, existe significado apenas porque existe intencionalidade.

A intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um sentido; é ela que unifica a consciência, o objeto, o sujeito e o mundo. Com a intencionalidade há o reconhecimento de que o mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si para um mundo que tem uma significação para ele. (Forghieri, 1993, p.15).

Uma pesquisa fenomenológica acessa a essência do fenômeno interrogado. Essa essência pode ser alcançada a partir do método que é o da redução fenomenológica, que permite acesso aos significados “puros” do colaborador. Nesse sentido, torna-se essencial o discurso do colaborador que experiencia e/ou experimentou o fenômeno que interrogamos, razão pela qual submetemos a análise fenomenológica, que nos coloca diante da busca de elementos que precedem a reflexão científica, caracterizada basicamente pela concepção apriorística da realidade (Holanda, 2007).

Segundo Forghieri (1993), a redução fenomenológica consiste num retorno ao mundo vivido. Colocar em suspensão os conhecimentos, ideias, teorias e preconceitos, retornando, assim, à experiência do sujeito/pesquisador, visando alcançar a essência do conhecimento. De acordo com essa perspectiva, através da redução fenomenológica é possível captar o significado que as experiências vividas possuem para as pessoas no seu viver. E está claro que nesse processo encontra-se implicada a presença do pesquisador, a sua vivência, como afirma Merleau-Ponty (2006): “é no contato com a nossa própria experiência que elaboramos as noções fundamentais das quais a Psicologia se serve a cada momento”. (p. 11). Para ele, a redução fenomenológica consiste numa profunda reflexão que nos revele os preconceitos em nós estabelecidos e nos leva a transformar este condicionamento sofrido em condicionamento consciente, sem jamais negar a sua existência.

Para Matthews (2011) a redução fenomenológica é uma questão de mudança na maneira de ver o mundo. Quando a praticamos, não mais vemos o mundo como lugar confortável que construímos com os conceitos científicos ou outros que criamos para tornar mais fácil lidar com ele de maneira empírica e

intelectual. Ao contrário, “temos que nos exercitar em vê-lo como estranha e ambígua existência com que nos deparamos ao deixar de interpor esses conceitos entre nós e os objetos”. (p. 28).

Além da redução fenomenológica, que permite acesso aos significados “puros” dos sujeitos; Holanda (2011) ainda destaca outros dois elementos fundamentais: o da intersubjetividade da relação, que se estabelece entre sujeito-pesquisador e sujeito-pesquisado, seus conteúdos e vínculos estabelecidos nessa relação; e o retorno ao mundo vivido do sujeito-pesquisado, mediante uma descrição direta do seu depoimento. Para Lima (2011) a descrição é o retorno ao mundo-vida, o que leva a uma rejeição do intelectualismo, do empirismo e principalmente da atitude solitária do pesquisador que deve se abrir para o mundo.

Para Martins e Bicudo (2005) não há normas severas, listas de palavras ou de sentenças que devem ser usadas para descrever. No entanto, o pesquisador ao se aproximar do fenômeno, deve colocar “entre parênteses”, ou seja, fora de ação, todo o conhecimento adquirido anteriormente sobre a experiência que está investigando. Deve estar livre dos elementos pessoais e culturais, para então, abrir-se para essa vivência e nela penetrar de modo espontâneo e experiencial, deixando surgir a intuição, a percepção, os sentimentos e sensações que brotam numa totalidade, proporcionando-lhe, como resultado, uma compreensão global e intuitiva dessa vivência

Para Bruns (2007), a experiência do pesquisador dirige-se à análise compreensiva do fenômeno: [...] quando o olhar instigante do pesquisador se dirige à busca da compreensão de um fenômeno, baseando-se na premissa de que o homem é sujeito e objeto do conhecimento e que vivencia intencionalmente sua existência, atribuindo-lhe sentido e significado, ou seja, quando não há um ser “escondido”, uma realidade “em si mesma”, objetiva e neutra atrás das aparências do fenômeno [...] nesse momento, o paradigma fenomenológico está presente. (p. 72).

Lima (2011) também considera que para chegar à essência do conhecimento devemos agir tendo como suporte o envolvimento existencial alternando-o com distanciamento reflexivo. Nesse processo, o pesquisador procura estabelecer certo distanciamento da vivência para refletir sobre a compreensão e tentar apreender e enunciar, descritivamente, os significados atribuídos pelas pessoas à vivência, de acordo com seu modo de existir. Ao desvelar-se a partir do discurso, o fenômeno surgirá no mundo enquanto circunstância histórica, política e social.

Por fim, consideramos que esta trajetória de investigação pressupõe que o pesquisador assuma uma postura diferente da tradicional neutralidade científica, afinal ele está lidando com uma pessoa, com outro ser humano e não com um objeto. Trata-se, sobretudo, de uma relação sujeito-sujeito, na qual ambos são

reciprocamente afetados. Ter em mente esta questão não significa, contudo, ausência de rigor metodológico, mas propõe como caminho possível ao investigador aproximar-se experencialmente da subjetividade, como nos indica Amatuzzi (2006):

Se o pesquisador não se deixar 'tocar' pela subjetividade do outro, permitindo que ela faça um sentido humano para ele, estará pesquisando a objetividade e não a subjetividade. (...) Eu diria que a subjetividade não se entrega como objeto de conhecimento se eu me aproximar dela de modo meramente cognitivo. Só posso me aproximar dela participativamente, mobilizando-a também dentro de mim. A pesquisa da subjetividade é diretamente mobilizadora do sujeito e não apenas instrumentalizadora dele. (Amatuzzi, 2006, p. 96). A pesquisa da subjetividade assume, nesta perspectiva, caráter ético, na medida em que não visa aborda-la como objeto de conhecimento a ser manipulado, mas como componente coconstrutor da investigação. O respeito à autonomia dos sujeitos da pesquisa compreende o fundamento para se constituir uma relação humana emancipadora na qual sujeito-pesquisador e sujeito-pesquisado podem desvelar saberes e visões de mundo antes relegadas ao silêncio.