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1. A morte e a besta, entre Ramo e Rosa

1.4 A ferida metodológica

Na seção anterior, recorremos ao devir animal deleuziano, definindo o zoomemento como uma “composição de afetos” (supra p.24). Importa precisar agora - afetos de quem? Incorreríamos em um antropomorfismo ingênuo se juntássemos sem maiores comentários nessa “composição” afetos humanos e animais, o animal sendo, em última análise, o Outro incomunicável, inexprimível, inatingível. Acontece que, em última análise, o termo afeto humano também se tornaria problemático. Afinal, se essa inefabilidade é gritante devido à falta de discurso no bicho (que nunca pode confirmar se houve realmente comunicação homem-animal ou apenas um mal-entendido conveniente para ambas as partes), não seria ela somente um exemplo mais representativo da intangibilidade fundamental de todo sujeito e de todo objeto? Não sublinharia ela apenas a falácia referencial que prende cada homem inelutavelmente na caixa de seu próprio crânio?

Felizmente, o fantasma do solipsismo humano e a vertigem do referente inexistente se exorcizam na linguagem, no discurso. A mera existência da linguagem é índice e prova de que, malgrado os mal-entendidos, os subterfúgios, as mentiras, as astúcias, o abismo da infinita polissemia, as grandes solidões discursivas, existe sim algo em que os homens comungam, um grau mínimo, uma ficção tácita de referencialidade (ABRAMS In LODGE,1991, p.265-276; ECO,1997). A intuição ou certeza de ser personagem mas também autor dessa ficção instala o homem na encruzilhada de sua liberdade - tudo negar ou tudo permitir, novamente um exercício

do pensar por extremos que o pragmatismo do cotidiano termina por neutralizar. Afinal a aceitação dessa ficção, dessa ilusão de univocidade num grau mínimo de denotação é o que permite comunicação suficiente para que se efetuem cirurgias, se construam edifícios, se avaliem dissertações de mestrado... O meio termo entre a aceitação cega da convenção e a liberdade ofuscada diante da polissemia ilimitada e incontrolável talvez seja o inacabamento, a abertura plantada no discurso pela própria precariedade da referencialidade. Discurso é devir.

Precisemos então – afetos humanos e animais, mas sob o pressuposto de que sujeito e objeto, homem e bicho, existem na tangibilidade precária e movediça do discurso, eis aí um primeiro aspecto a reter quanto aos nossos zoomementos. Não poderíamos, portanto, a rigor, falar de um afeto animal como “coisa-em-si” (a incognoscível “Ding an sich” kantiana), mas de um afeto humano expresso em discurso onde o animal se menciona, sugere, figura ou adivinha...

O inacabamento do devir animal conflui com um segundo traço fundamental do zoomemento. O memento, em nosso trabalho, se instaura no inacabamento do presente, princípio organizador da temporalidade agostiniana, uma temporalidade do presente triplicado: o presente do presente, a atenção; o presente do passado, a memória, e o presente do futuro, a expectativa (RICOEUR, 2000, p.454); uma temporalidade plantada no humano, já que esse presente que encapsula os dois demais tempos, o faz através da experiência do sujeito, que relembra ou antecipa um objeto já ou ainda ausente, passado ou futuro.

O presente com o qual trabalhamos, curiosamente, também é um presente triplicado. Primeiramente, temos um presente interno à narrativa – o zoomemento, como já se disse acima (supra, p.23), poderá manifestar-se enquanto a morte presentificada para os personagens. Lidamos também com o presente da leitura, da co-enunciação literária. O texto, no que encerra de sucessão - as letras, as linhas, as páginas - nos foge continuamente, mas, a cada ponto da leitura, configuramos a obra num todo provisório ao evocar o dado (texto já percorrido, intertexto, paratexto, arquitexto, GENETTE apud MAINGUENEAU,1990, p.23) e a partir dele antecipar o novo. O zoomemento seria, ao nível da leitura, da co-enunciação literária, a presentificação da morte em devir animal enquanto elemento configurador, que constela temas e catalisa o enredo (supra p.23).

Já se deve ter notado o uso constante de termos como “configuração” e “elemento configurador”. Essa ideia de agrupamento de elementos percebidos em

simultaneidade, com a conotação visual que carrega, decorre dessa nossa escolha do presente como ancoragem interpretativa - a escolha de nos situarmos num determinado momento da narrativa ou da narração e apreendê-lo numa simultaneidade coerente com seu co-texto, contexto, intertexto. Esse todo coerente será um zoomemento ao nível da crítica literária. É o da própria atividade crítica, então, o terceiro presente onde se inscreve o zoomemento. Afinal, o trabalho crítico seleciona, recorta e agrupa elementos do texto segundo uma determinada lógica.

O compromisso primeiro de nossa lógica é com a obra. Nosso trabalho interpretativo não pretende buscar os zoomementos numa hipotética intenção do autor, mas, por outro lado, tem também a preocupação de evitar uma leitura idiossincrática que descambe em superinterpretação (ECO,1997). Intentamos analisar cada obra “enquanto um todo coerente”, em si e com “seu pano de fundo cultural e linguístico” (ECO, 1997, p.81), fazendo assim por alcançar a maior proximidade possível do que Umberto Eco chama intentio operis (ECO,1997), e que nos aventuraremos a parafrasear com uma pitada de Linguística (GENETTE apud MAINGUENEAU,2001), definindo-a como uma conjectura interpretativa que se valida na relação entre a superfície do texto e a instituição literária onde ele está ancorado (ECO,1997, p.76)13. A liberdade que tomaremos quanto ao texto, é a de, em cada exemplo analisado, integrarmos essa conjectura numa configuração textual onde a morte e o animal se impõem em zoomemento.

O zoomemento se delineia, portanto, como um conceito eminentemente crítico. É a partir do zoomemento constituído em cada exemplo analisado, o zoomemento ao nível da crítica, que o leitor poderá perceber os zoomementos internos à narrativa e aqueles discerníveis na obra enquanto enunciação literária. Talvez aqui seja oportuna uma ilustração.

1) O menininho de “As margens da alegria” contaminou-se de “um miligrama de morte” no zoomemento mori do peru, enquanto para o menininho de “Os cimos” o zoomemento vivere do tucano foi uma verdadeira epifania – aqui, o zoomemento é a composição morte-animal que se torna presente para os personagens.

13 Para reconhecer a intentio operis, Eco diz ser necessário levar em conta certas “convenções

estilísticas”, como por exemplo, o tradicional “Era uma vez” dos contos de fada, e acrescenta que, naturalmente, essas convenções podem ser subvertidas, como, por exemplo, na ironia (ECO,1997:76). A linguística de matiz bakhtiniana inscreve essas convenções e subversões no texto enquanto co-enunciação literária, enquanto encruzilhada de vozes e enunciados. Reconhecer um texto como conto de fada é aplicar a arquitextualidade e a paratextualidade, detectar-lhe em seguida um tom paródico é perceber sua hipertextualidade (GENETTE apud MAINGUENEAU,1990:23).

2) O leitor que tiver seguido as pistas textuais e paratextuais de Primeiras estórias, verá a recorrência do elemento animal e sua ligação com o tratamento simétrico da morte nos dois contos, percebendo assim, no presente da co- enunciação literária, a oposição entre o mori e o vivere.

3) A configuração intertextual que estabelecemos entre os dois contos, os demais exemplos e as categorias tais como esboçadas neste trabalho sublinha as recorrências e conexões que defino como zoomementos - nesse caso é no presente da leitura crítica, no presente desta dissertação enquanto co-enunciação, que se percebe a composição entre o animal e a morte.

Um último comentário metodológico se impõe. Elegemos o animal como objeto, e até agora o nosso texto faz jus à palavra – nossa noção de zoomemento está cravada no antropocentrismo patente da ancoragem no discurso e na experiência humana do tempo agostiniano. Essa é uma ferida metodológica que deixaremos aberta, por enquanto, mas que o recurso ao devir animal de Deleuze é já uma meia promessa de paliar.

2. Memento mori

2.1 Vidas Secas - Os ossos e as asas da morte

“A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor dos bichos moribundos.” (Vidas Secas,1986, p.10). A metáfora corriqueira que une espaço a tempo faz-se literal para Fabiano: em fuga, deixa para trás ossadas e urubus; à sua frente, para onde siga, estão ainda a carniça e os bichos carniceiros. E essa morte passada e futura, é o bicho quem a anuncia. Contra o fundo vermelho, no grande plano em que o narrador situa a passagem, o memento mori da besta, através das ossadas e dos urubus, pinta a morte em branco e negro, em pontos e círculos, na terra e no céu, no passado e no futuro.

Essa promessa de aniquilação da carne, lembrada com os despojos dos bichos mortos e com a ameaça dos bichos carniceiros, vai ferindo o próprio corpo dos vivos, nas marcas da fome naqueles que compõem o grupo de “infelizes”, bichos e gentes - as costelas visíveis de Baleia (p.11), a “cara murcha”, “as nádegas bambas” de sinha Vitória (p.16), os bracinhos finos do menino mais velho, cujo desmaio, uma morte ensaiada, dissipa em Fabiano a vontade passageira de deixar o filho no caminho.

Para quem tem a morte no encalço, a pulsão de viver oblitera os escrúpulos, ainda que temporariamente. “O vaqueiro precisava chegar, não sabia onde” e o menino era um “obstáculo miúdo” (p.10). Mas Fabiano “pensou nos urubus, nas ossadas” (p.10), e, vendo o menino encolhido no chão, “frio como um defunto”, desiste. Certamente a imagem da criança morta, “o anjinho”, exposta à voracidade dos “bichos do mato”, é insuportável. Mas poderoso é o apelo estético da fome da besta esperando que a criança morra de fome. Quem não se lembra da foto que, em 1993, abriu a ferida da díade estética/ética em arte? A beleza inquietante da ave tocaiando a menininha caída de fome no Sudão comoveu, perturbou o mundo. E, através dessa configuração do animal junto ao homem, desse devir animal estetizado, desse animal act (supra, p.12), cristalizou-se em imagem o problema da fome como atentado à dignidade humana. O epílogo do episódio reflete e reencena

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