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A produção do corpus da pesquisa se deu por meio de duas estratégias: entrevistas semiestruturadas e a produção de diário de campo do acompanhamento de mobilizações sociais das quais participamos com a presença de mães de jovens assassinados.

2.4.1 Entrevistas

As entrevistas semiestruturadas caracterizam-se como uma das modalidades de entrevista, apresentando um roteiro minimamente ordenado sobre as questões acerca do cotidiano das mães após a morte de seus filhos, do modo a contemplar alguns eixos centrais com vistas a atender os objetivos propostos no estudo. Seguindo a proposta metodológica deste estudo, a entrevista se constitui como uma intervenção, à medida que proporciona um espaço de escuta sensível dos participantes da pesquisa. Desta forma, a entrevista, aqui, não se limitou a ser uma simples troca de informações entre a pesquisadora e as mães de jovens assassinados. Estas entrevistas foram conduzidas a partir de um manejo cartográfico, de forma que se deu vazão à experiência do dizer e às conexões possíveis que surgiram a partir desta. Em campo, pudemos observar que foi comum às entrevistadas a escassez de espaços nos quais pudessem falar sobre suas dores, haja vista que muitas vezes, como aprofundaremos no capítulo três desta dissertação, essas mulheres assumiram papel de suporte aos demais membros familiares. Dessa forma, a entrevista também atuou como um importante espaço de elaboração de sentidos e livre expressão sobre as significações das mortes em seus cotidianos. A entrevista propõe-se, na perspectiva cartográfica (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2016), a ouvir a polifonia de vozes, entendendo que as múltiplas vozes que ecoam e constituem os discursos das mães escutadas, compreendendo que as suas falas acerca dos homicídios, o cotidiano de violência e os sofrimentos pertinentes às vivências desse cotidiano são transversalizados por questões de ordem macro e micropolíticas. Algumas temáticas foram previamente orientadas a partir da proposta de pesquisa, o que não impossibilitou a emergência de outras no momento das entrevistas. Essa característica se fez de grande relevância, dada a impossibilidade de abranger e esgotar a complexidade dos elementos que configuram a tessitura do cotidiano dessas mulheres. As mães foram escolhidas por conveniência, ou seja, foram escolhidas conforme se mostraram acessíveis e interessadas em participar do estudo no percurso de inserção em campo. Foi utilizado critério de saturação teórica, de modo que as entrevistas foram encerradas à medida que percebemos certa repetição de conteúdo.

Nesta pesquisa, a intervenção se deu não apenas pela inserção em campo e contribuição com este12 , mas também pelo supracitado aspecto interventivo da entrevista. Não nos propomos a fazer uma simples coleta de dados, mas proporcionamos espaços de escuta sensível aos familiares, sob um manejo cartográfico da entrevista, buscando manter, a perspectiva de colaboração com os territórios. Nesse sentido, almejamos o fortalecimento das redes (saúde, assistência, sociedade civil organizada), conforme foi iniciado no Grande Bom Jardim, algo expresso pelas tentativas de contato com esses familiares que nos levaram a um engajamento com o território. Partimos aqui do pressuposto de que a entrevista produz subjetividades, podendo atuar como uma prática de cuidado e acolhimento desses familiares no território. O caráter interventivo também se deu pela potencialização de intervenções no território do Grande Bom Jardim e no FPSP.

Acerca dos processos de articulação das entrevistas, direcionamo-nos para realização de entrevistas individuais com as mães e acompanhamento de coletivos de mães já formados. A intermediação dos articuladores de campo foi de fundamental importância nesse processo pois, apesar de estar em campo desde 2017.1, ainda não tinha estabelecido contato sistemático com nenhuma das mães inseridas no território. Ao longo do processo de 2018.2 iniciei as entrevistas com as mães de jovens assassinados no Grande Bom Jardim. Além disso, me inseri em uma das extensões do VIESES que estava desenvolvendo atividades grupais com mulheres no Jangurussu, no intuito de alcançar mães de jovens assassinados neste território.

A inserção no grupo no Jangurussu não se deu de modo profícuo haja vista que, as três mães de jovens assassinados que compunham o grupo não se sentiram confortáveis em “mexer” em suas dores o que as fez evadir do grupo após o segundo encontro, inviabilizando o contato com estas. Naquele momento, a articuladora desse território também se mostrou receosa para articular as entrevistas. Esse período foi bem difícil, por um lado, me sentia ansiosa por causa dos prazos acadêmicos, por outro, entendia que aquele era mais um devir do campo. Vivenciar esse processo me trouxe questionamentos, uma vez que percebia uma relação de tutela estabelecida pela articuladora local com essas mulheres, que inviabilizava minha aproximação. Essa relação de tutela se faz compreensível haja vista o lugar que, muitas vezes, a academia tem ocupado nos territórios, levando os sujeitos participantes a se sentirem “usados”

12 Acreditamos que a pesquisa poderá contribuir com o território não apenas pelas articulações intersetoriais que vem sendo realizadas nas tentativas de alcançar os familiares, mas também pelo fato de que as ações da pesquisa se desenvolvem junto às atividades da pesquisa guarda-chuva e extensões do VIESES-UFC, atividades realizadas numa perspectiva de contribuição com os territórios em que atua. Além disso, as ações realizadas no Grande Bom Jardim, fazem parte de um projeto interventivo maior do departamento de psicologia da UFC, que, a partir da demanda apresentada, realizou, em conjunto com atores locais, um desenho de atividades voltadas para o território.

nas pesquisas sem que estas lhes apresentem algum retorno (ou aquilo que eles entendem como retorno). Esse movimento me fez questionar o meu lugar ali como pesquisadora ou a relevância da pesquisa. Ouvir essas mulheres ainda as deixaria em suas dores, o que eu poderia mudar efetivamente naquela realidade? Qual seria o alcance da intervenção? Uma nova sensação de estranhamento me tomava, voltando a questionar o papel da universidade nesses espaços. Muitas vezes, é comum que a população tenha muitas expectativas em torno das intervenções propostas pela universidade haja vista as fragilidades das políticas públicas e isolamento de determinados espaços sociais. A universidade, ao extrapolar seus muros, chega a estes territórios assolados por mazelas sociais, cabendo à pesquisadora, juntamente com os extensionistas, apresentar os limites das suas atuações, explicitando as diferenças dos papéis das políticas públicas e da universidade.

As primeiras entrevistas, foram, portanto, realizadas com mães que residiam no Grande Bom Jardim, sob manejo cartográfico. Aqui, cabe expormos aqui um acontecimento que se coloca como analisador dessa questão. Uma das entrevistas foi articulada na comunidade do Pantanal, no Grande Bom Jardim. Ao chegarmos nos deparamos com um território “esquecido” conforme muitos daqueles com quem conversamos o caracterizaram. Um local sem rede de esgoto, sem calçamento e com lamas pelas ruas. Percebemos a presença de várias crianças e animais nas ruas e calçadas. Era dia 12 de outubro, dia das crianças, e, na associação coordenada por um dos nossos articuladores, haveria logo mais a noite, uma comemoração para as crianças da localidade. No contato por telefone e whatsapp, havíamos marcado entrevista com apenas uma das mães, mas, ao chegarmos, as demandas eram tantas e a empolgação do nosso articulador foi tamanha, que ele já havia conversado com 4 famílias certificando-se de estas nos receberiam. Desta forma, realizamos as 4 visitas, das quais três foram colocadas no presente estudo e uma delas não foi inserida por estar fora do nosso recorte, mas como a família precisava de orientações acerca dos encaminhamentos para serviços, nos dispomos a ouvi-los e fazer os devidos encaminhamentos necessários. Das quatro casas visitadas, nenhuma das pessoas tinham tido acesso a políticas públicas de assistência ou saúde, não sabendo localizar os equipamentos no território, que ficavam a apenas 4 quadras do local onde estávamos. Além disso, não tinham conhecimento dos projetos que trabalhavam com arte e cultura no território. Dessa forma, a dimensão interventiva da nossa pesquisa também se deu no sentido do fornecimento de orientações básicas acerca de quais serviços essas pessoas dispunham e quais direitos poderiam acessar, assim como da realização de encaminhamentos para os equipamentos. Nosso papel ali, além de nos aproximarmos da realidade vivida pelas mulheres

participantes de nosso estudo, também era tensionar as malhas do poder que invisibiliza, silencia e isola essas mulheres.

Neste dia, realizamos as entrevistas de Mariane, Tereza e Esperança. Havíamos programado a volta para 17h, antes de escurecer, por questões de segurança, entretanto, pelos devires do campo, nos prolongamos até as 18h30min. Ao sairmos da casa de Esperança, já estava escuro o interlocutor nos acompanhou até a volta ao carro, que estava há uns 10 minutos de distância a pé. A experiência de transitar por este território à noite, foi algo importante, pois como aprendiz de cartógrafa pude experienciar a sensação de medo, algo que, naquele momento, escapava às minhas tentativas de racionalização. Sensação esta que aumentou quando o nosso interlocutor, olhando para buracos de bala na parede, apontou para uma esquina afirmando que ali ele tinha renascido, pois havia levado 11 tiros naquele local. Essa dimensão experiencial foi de suma importância não apenas para a articulação e aproximação com as nossas interlocutoras, mas também contribuiu para posteriores reflexões acerca dos estigmas impostos àquele território e de que maneira isso nos afeta como pesquisadores, ao adentramos um território incomum à nós.

Além das entrevistas com as mulheres que viviam no território do Grande Bom Jardim, também consegui viabilizar entrevistas com mães que residiam em outros bairros da cidade, por meio da inserção no território existencial do FPSP, no qual pude me aproximar de grupos como As mães do curió e Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará.

Faz importante destacar que, em relação ao tempo das entrevistas, em média, cada uma teve duração entre 60 a 120 minutos, excetuando-se a de Mariane que, por não conseguir verbalizar sobre a perda do seu filho, teve duração de 20 minutos. As entrevistas foram realizadas em diferentes localidades, de acordo com a preferência das interlocutoras, de modo a preservar conforto e comodidade às mesmas. As entrevistas de Felipa e Adelina ocorreram na Universidade Federal do Ceará (UFC), a de Maria ocorreu em uma escola do Grande Bom Jardim, local em que trabalha, a de Luiza se deu no CEDECA, já as de Anastácia, Mariane, Tereza e Anastácia foram realizadas em suas casas. A escolha das mães para entrevista se deu por conveniência a partir da mediação dos articuladores comunitários.

2.4.2 Diário de Campo: acompanhando processos de mobilização social e organização política com a participação de mães e familiares vítimas de violência

As sensações, percepções, conversas e trocas vividas no campo foram registradas no diário de campo, anotações estas que foram constantemente revisitadas nos processos de análise e da inserção em campo. Medrado, Spink e Méllo (2014) consideram o diário de campo como elemento atuante na realização de uma pesquisa, uma vez que “com ele e nele a pesquisa começa a ter certa fluidez, à medida que a pesquisadora dialoga com esse diário, construindo relatos, dúvidas, impressões que produzem o que nominamos de pesquisa. Esse companheirismo rompe com o binarismo sujeito-objeto” (p. 278), funcionando, portanto, como agente potencializador do estudo. Ao longo da dissertação, foram realizados diálogos com os elementos registrados nos diários.

2.4.3 Análise dos Dados

Foi utilizada a análise cartográfica dos dados. A cartografia requer certa subversão da noção dos dados de pesquisa à medida que compreende o pesquisar como um processo. Desse modo, um dado cartográfico surge como um produto das diferentes interações em um conjunto de forças que compõe a realidade pesquisada. Um dado, portanto, não se encontra exposto em campo, como algo a ser colhido; mas sim, dá-se como um efeito a partir, inclusive, do ato de pesquisar (PASSOS, KASTRUP; TEDESCO, 2016). O objeto a ser analisado, não é estático, mas efetiva-se como “o ponto de partida para acessar a experiência (PASSOS, KASTRUP; TEDESCO, 2016, p. 177). A análise cartográfica é guiada pelos problemas que pulsam no campo de pesquisa e o ato de analisar atua como um elemento ampliador de problematizações, gerando novas inquietações.

Para Rodrigues (2012) toda análise cartográfica efetiva-se como uma análise de implicação à medida que pressupõe a construção e compartilhamento coletivas das experiências entre o pesquisador e o objeto pesquisado, que são constantemente (re)visitadas e postas sob reflexão. Nessa análise “o pesquisador cabe a construção de analisadores” (PASSOS, KASTRUP; TEDESCO, 2016, p. 179) que compõem elementos importante na desnaturalização do instituído. Uma análise cartográfica se constitui a partir da problematização do campo de força, radicalizando o caráter interventivo da pesquisa sendo construída ao longo do processo de pesquisa.

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