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A festa como mercadoria: o consumo de lugar e o lugar de consumo na cidade

Embora a dimensão econômica da Festa e sua aparente oposição à pro- dução já tenham sido mencionadas e rapidamente discutidas ao longo deste trabalho, seria oportuno aprofundar um pouco mais a ideia da Festa como mercadoria e, consequentemente, o fato de ela proporcionar o consumo de lugar e o lugar de consumo (LEFEBVRE, 2008c.) nas sociedades contempo- râneas. Um autor importante para dar início a este tema é Bourdieu (2003), sobretudo em seu estudo acerca do capital cultural.3 Para ele, o capital cultural

pode existir sob três estados: o incorporado (aquele que é adquirido e torna-se parte integrante dos seres); o objetivado (bens culturais diversos, como qua- dros, livros e instrumentos) e o institucionalizado (certificados e diplomas que conferem originalidade ao capital incorporado e objetivado são bons exem- plos desse aspecto).

Para essa análise, seriam mais relevantes os dois primeiros estados, uma vez que a objetivação do capital em diversos suportes, tais como escritos, pin- turas e monumentos, é transmissível em sua materialidade, ou seja, podem ser passados de uma geração para a outra na mesma família, comprados e vendidos no mercado. “Assim, os bens culturais podem ser objeto de uma apropriação material, que pressupõe o capital econômico, e de uma apropria- ção simbólica, que pressupõe o capital cultural” (BOURDIEU, 2003: 77).

O mesmo não ocorre com o capital cultural incorporado, já que ele per- manece marcado por suas condições primitivas de aquisição e não pode ser acumulado para além das capacidades de apropriação de seu portador, pois é limitado pelas capacidades biológicas do indivíduo, como sua memória e até mesmo a óbvia constatação de que os seres humanos são seres mortais e, com a morte, esse capital se perde. Contudo, como bem lembra o autor, tal acumu- lação inicial do capital cultural tem sua origem no tempo de socialização do indivíduo e no tempo livre dedicado à sua incorporação.

Vê-se, imediatamente, que é por intermédio do tempo necessário à aquisição que se estabelece a ligação entre o capital econômico e o capital cultural. [...] Além disso, e correlativamente, o tempo durante o qual determinado indivíduo pode prolongar seu empreendimento de

3 A noção de capital cultural surge, no campo da educação, como hipótese para tentar explicar a

desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes de diferentes classes sociais. Para isso, relaciona-se o desempenho escolar dos indivíduos com as oportunidades e acessos ao capital cultural que eles tiveram ao longo de suas vidas.

aquisição depende do tempo livre que sua família pode lhe assegurar, ou seja, do tempo liberado da necessidade econômica que é a condição da acumulação inicial (tempo que pode ser avaliado como tempo em que se deixa de ganhar) (BOURDIEU, 2003, p. 76).

Assim, se o tempo livre é condição primeira para a apropriação do ca- pital cultural, e consequentemente sua futura transformação em capital obje- tivado e institucionalizado, mais uma vez chega-se à ideia de que produção e Festa não são elementos completamente excludentes. Não é tão simples como se mostra de início esse objeto que nasce da apropriação da dimensão cultu- ral pela lógica do capital, e também não é exatamente contraditório, como se pode perceber a partir do estudo de Harvey (2008) sobre a condição pós- -moderna. Como esclarece o autor, a sociedade que surge após a crise das grandes narrativas modernas estabelece, do ponto de vista econômico, uma nova forma de incorporação dos bens, denominada por ele de “acumulação flexível do capital”, que traz consigo regras bastante diferentes daquelas que determinam o sistema capitalista tradicional.

O que de fato caracteriza tal flexibilidade no regime de acumulação é a superação da rigidez do sistema fordista,4 traduzida na produção em peque-

nos lotes, na diversificação dos bens e dos padrões de consumo e na maleabi- lidade dos processos de trabalho. Ou seja, “[...] o movimento mais flexível do capital acentua o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz [...] em vez dos valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo” (HARVEY, 2008, p. 161). Sua dinâmica permite uma aceleração do ritmo da inovação do produto e, consequentemente, do tempo de giro da produção e do consumo. Para ga- rantir a lucratividade, no entanto, o autor mostra que foi preciso empreen- der também uma redução da vida útil das mercadorias, além de uma atenção maior às modas fugazes e aos mecanismos capazes de induzir as necessidades, como a publicidade e os meios de comunicação em geral.

Harvey argumenta ainda que a necessidade de acelerar o consumo provo- cou alterações expressivas na escolha dos bens a serem produzidos. Ainda que tenham sua vida útil reduzida, as mercadorias tradicionais e tangíveis (como carros, móveis e roupas) apresentam um tempo de existência substancial. Isso faz com que, aos olhos do novo regime de acumulação que se firma, a produção de eventos e de bens imateriais e de consumo rápido se torne mais atrativa.

4 Mais que um modelo de produção que inclui a linha de montagem em sua dinâmica e aper-

feiçoa as idéias de padronização e simplificação anteriormente trabalhadas por Taylor, o fordismo deve ser compreendido como o indutor do mercado de massa. Sua racionalidade e rigidez vão ao encontro da sociedade modernista da qual ele faz parte, mas também são as condições que levam a seu declínio.

Além disso, os bens físicos ainda contam com a desvantagem de impo- rem, naturalmente, limites para a sua acumulação. Os sujeitos podem cole- cionar diversos artigos de luxo ou ainda serem obrigados a trocar seus eletro- domésticos com maior frequência, devido às modas ou à diminuição da vida útil para qual são programados. No entanto, precisa-se de espaço para sua alocação, necessita-se de um tempo considerável para consumi-los.

Em oposição, a fruição de um determinado espetáculo, show ou peça teatral, por exemplo, ainda que espacial, não necessita de espaço de alocação e pode se repetir no tempo quantas vezes for necessário. Assim, trata-se de uma nova forma de experimentar o tempo e o espaço, na qual

o colapso dos horizontes temporais e a preocupação com a instantaneida- de surgiram em parte em decorrência da ênfase contemporânea no campo da produção cultural em eventos, espetáculos, happenings e imagens de mídia” (HARVEY, 2008, p. 61, grifo do autor).

É diante dos argumentos apresentados pelo autor que é proposta aqui a hipótese de que o regime de acumulação flexível do capital cria condições econômicas para o gigantismo do fenômeno festivo que se pode observar na atualidade. A nova relação de tempo-espaço estabelecida é, desse modo, ter- ritório privilegiado da Festa em sua forma mercadoria, com seu tempo de giro praticamente instantâneo e seu espaço de alocação inexistente. Parece ser exatamente esse processo de expansão das necessidades imediatamente renováveis o que confere à festa seu gigantismo contemporâneo.