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Festeiros e Devotos: perseguição e repressão na batalha da construção do corpo submisso

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“ A té parece que tem feitiço!

2.3 Festeiros e Devotos: perseguição e repressão na batalha da construção do corpo submisso

É vasta a documentação encontrada no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) sobre a perseguição às práticas culturais afro-brasileiras durante a Era Vargas no Recife. O combate às formas de sociabilidades da população pobre da capital pernambucana, no período em questão, equipara- se com as investidas católicas na busca de soluções pela recuperação de sua inferência na sociedade, uma vez que, inconformada com a horizontalização da religião com as outras práticas religiosas, aposta na “tentativa de retomar o poder político perdido com a laicização crescente na política brasileira, após a instauração da República em 1889.”294 Esse aumento do controle dos divertimentos populares liga-se não somente ao receio das elites em perder o domínio do poder, enfraquecido com o advento da República e abolição da

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ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. A Construção da Verdade Autoritária.

escravatura, mas também pela formação de um mercado de trabalho livre e assalariado; com a organização e disciplina do trabalhador nacional, o medo das ideias comunistas e integralistas, entre outros fatores que levam às elites criarem uma série de mecanismos para impedir que essas práticas culturais ganhem cada vez mais espaço.

As fontes de pesquisa policiais recifenses, incluindo os dados relativos à Secretaria de Segurança Pública (S.S.P) e à Delegacia de Ordem e Política Social (D.O.P.S), deixam transparecer o medo das elites e da Igreja Católica diante do avanço do que se chamava “seitas africanas’ e das outras práticas de relacionamento cotidiano, que aconteciam na cidade aglutinando multidões, a exemplo do Carnaval.295

No segundo e terceiro capítulos de “A Construção da Verdade Autoritária”, a pesquisadora Maria das Graças Ataíde chama atenção para dois fatos importantes na compreensão desse tópico: as relações de poder entre a Igreja Católica e a Interventoria de Agamenon Magalhães, num processo conhecido como “recristianização da sociedade”, e os marginais sociais eleitos pelo Estado, entre os quais se destacam “a população pobre, os trabalhadores de economia informal, os umbandistas e os loucos”. Dentro desse quadro de marginalizados, garantem espaço centenas de foliões e carnavalescos que integram os cortejos das agremiações no Recife.

Essa coligação entre Religião Católica e Estado no Governo Vargas estabelece e assegura a reprodução de um pensamento que mantém a mentalidade da maioria das massas submissa e fiel à obediência das autoridades eclesiásticas. Como instituição forte do Estado Novo, a Igreja

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A expressão “seitas africanas” é carregada de sentidos históricos. Segundo os historiadores Isabel Martins Guillen e Ivaldo Marciano Lima, “o simples fato de nomear as religiões afro- descendentes de seitas indica que boa parte dos seus praticantes absorveu uma nomenclatura hierarquizadora, que persiste em meio a adeptos e intelectuais. ‘Seita’, no dicionário de Antônio Houaiss, possui os sentidos de dissidência (grupo de dissidentes de uma religião ou de uma comunhão principal) e de crentes minoritários e apartados do que acredita a maioria (doutrina ou sistema que afasta da crença ou opinião geral / sociedade cujos membros se agregam voluntariamente e que se mantém à parte do mundo). Enquanto para a seita recai o sentido de dissidência, de afastamento de um caminho tomado pela maioria, para religião são atribuídas ideias de filiação a um conjunto de doutrinas, de reverência às coisas sacras. O marginal é, portanto, agrupado em uma seita, aspecto bastante presente nos discursos dos intelectuais no Recife, na década de 1930, ao se referirem às práticas religiosas afro-descendentes.” LIMA, Ivaldo Marciano de França; GUINLLEN, Isabel Cristina Martins. “Jurema Sagrada: uma religião que cura, consola e diverte”. In: Traduções e Traduções: a cultura imaterial em Pernambuco.

propaga a ideia do controle dos comportamentos coletivos, de um corpo travado, obsequioso. Limita a cultura do prazer e foca o interesse na culpa e no pecado, na moral, no evangelho e na família. Essa constituição do físico contido caracteriza a cultura do Cristianismo, que investe numa batalha de construção do corpo submisso; com limites rigorosos e sistemáticos da movimentação, do roçar dos corpos no empurra-empurra do frevo, da guerra contra os requebrados nas batucadas, da censura constante às pulsões vitais, ao apetite sexual, à embriaguês, à gargalhada. Diante disso, não causa surpresa que essa aliança tenha contribuído para exercer o seu poder em erradicar toda e qualquer heresia cultural contrária à ordem vigente, nesse caso, as religiões afro-brasileiras e as festividades carnavalescas aparecem como importantes inimigas.

No ano de 1939, dois acontecimentos marcam o calendário católico nacional e contribuem para o acirramento das campanhas contrárias às comemorações de Momo: o falecimento recente do Papa Pio XI e o 3º Congresso Eucarístico Nacional, que neste ano teve como sede Pernambuco296.

Depois da Bahia, berço da nacionalidade, terra onde foi plantada a Primeira Cruz e celebrada a Primeira Missa; depois da Capital dos Mineiros, a encantadora Belo Horizonte que, por ser nova, não desdiz de fé ávida do grande montanhês, antes nos acena com uma enorme reserva de energias, para resguardo do nosso futuro de Nação Cristã e Católica; sem dúvida, era chegada a vez de o Recife ser convertido em templo do Brasil católico e nele erigido um altar onde Jesus Cristo, Deus e Senhor nosso, escondido por nosso amor sob as espécies sacramentais, recebesse as supremas homenagens de adoração, ação de graças, súplica e reparação, de todos os brasileiros que crêem ser Ele o Cristo Filho de Deus vivo. E o Recife sempre foi e é considerado a cidade do S.S.Sacramento. O caráter nacionalista do Congresso Eucarístico tem alta significação na hora, em o que o Estado Novo faz apelo às forças históricas e conservadoras da nossa formação, para a luta sem tréguas contra os extremismos exóticos297.

Católico de formação, Agamenon Magalhães, embora tenha abandonado o sacerdócio na infância, mantém-se fiel aos ensinamentos da

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O Papa Pio XI faleceu de ataque cardíaco fulminante na noite de 09 para 10 de fevereiro de 1939.

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Igreja com a qual associa a ideia de pátria, exaltando o trabalho, a disciplina, a fé e a união contra as ideologias que dividem a sociedade.298

Neste ano de 1939, em virtude do Congresso, a Igreja com o respaldo do Estado, intensifica a campanha de transformar o Recife na capital da cristandade e focaliza seu interesse em controlar todos os momentos da vida social dos recifenses, do trabalho às práticas de lazer. Nesse sentido, intensifica a campanha de mobilização da sociedade para realizar diversos momentos de oração e reflexão nas igrejas, nas residências e noutros espaços religiosos espalhados pelo centro e subúrbios do Recife, desvinculando a massa da descontração coletiva, do riso exacerbado e dos prazeres carnais excitados com a proximidade do carnaval.

Na edição de sete de fevereiro do mesmo ano, no Jornal do Commercio, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Miguel, torna público o primeiro pedido aos “parochos e associações religiosas que promovam seus retiros no Carnaval como preparação para o 3º Congresso Eucharistico Nacional, previsto para setembro do ano vigente. Os que não puderem fazer o retiro fechado, façam-no aberto”299. Diariamente, a imprensa passa a divulgar a organização de retiros espirituais preparados por instituições religiosas consagradas no Estado, com uma programação específica, com orações, estudos religiosos e a presença de autoridades no assunto que atraiam a população católica para esses espaços, impedindo-a de participar das “perigosas bacanais carnavalescas”.

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A relação de Agamenon Magalhães com a Igreja Católica manifesta-se, entre outras ações, na formação de um “secretariado de noviços”, segundo Andrade Lima Filho. Uma espécie de “jardim da infância”, no qual trouxe para as bancadas estaduais, com exceção do advogado Artur Moura e de Gercino de Pontes, secretário de Aviação, todos os seus amigos oriundos da então poderosa Congregação Mariana. Assim era formada a cúpula totalitária do governo de Agamenon: na Segurança, Etelvino Lins; na Fazenda, Manuel Lubambo; na Justiça com a saída de Moura, Arnóbio Tenório; na Agricultura Apolônio Sales; e Nilo Pereira, na Educação. Ver: LIMA FILHO, Andrade. China Gordo: Agamenon Magalhães e sua época. Recife: Ed. Universitária, 1976. p. 43

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Nota da Igreja para o retiro espiritual durante o Carnaval Fonte: JORNAL do Commercio. Recife, 07 fev. 1939. p 06.

Ainda nesta edição, a Igreja, preocupada com os dias de loucura em que a carne domina o espírito, convida a população jovem católica, que em nome dos brasões nobres de suas famílias, da Pátria Brasileira e da glória da Santa Igreja, recolha-se aos templos e retiros fechados para ouvir a palavra de Cristo. Um espaço de preparação espiritual para o Congresso e de clausura para a juventude católica diante do “Carnaval de Satanás”, evitando que se misture aos grupos de foliões enfraquecidos pela propagação de tais práticas.

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