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Preferiram esquecer a realidade feia e desconcertante, para se refugiarem num mundo ideal de onde lhes acenavam os doutrinadores do tempo. Criaram asas para não ver o espetáculo detestável que o país lhes oferecia.1 (Sérgio B. de Holanda)

No decorrer de nossa escrita sobre a produção do imaginário de nação, levantamos uma série de valores, tradições, preconceitos, os quais foram se radicando em nossa formação a partir do cânone lítero-histórico-sociológico. Segundo os críticos literários, o mais relevante representante da formação do ideário de Nação brasileira, radicador dessas tradições, foi o romancista José Martiniano de Alencar. Este, segundo Araripe Jr., teve por intento

fazer literatura brasileira e, para isso, quis alterar o processo literário de composição na forma e no fundo, pela escolha de motivos brasileiros. Pretendeu mesmo seguir um plano, e pôs em primeiro lugar a exploração da fase primitiva da vida brasileira, que se pode chamar aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo2.

Salientemos também que José Martiniano de Alencar pertence ao século XIX, período histórico, segundo Eric J. Hobsbawm, em que as tradições de muitos países foram inventadas. Segundo ele, a expressão “tradição inventada” inclui tanto “tradições” realmente inventadas, quanto as construídas e formalmente institucionalizadas, quanto, ainda, as que surgiram de maneira mais difícil de serem localizadas num determinado período de tempo e visivelmente localizáveis. Ainda segundo Eric J. Hobsbawm,

por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.3

1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. 2 ARARIPE JR. In: SODRÉ, Nelson W. A ideologia do colonialismo: seus primeiros reflexos

no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1984. p. 39.

3 HOBSBAWM, Eric J. A invenção das tradições finalidades e objetivos. Rio de Janeiro:

188 Uma das questões postas, no decorrer de nosso trabalho, foi a de uma escrita da história visivelmente marcada por um “mal-estar” em nossa civilização e literatura. A escrita da nação foi produzida como sendo o Brasil um outro indesejável, diante de valores europeus, os quais colocavam-nos à margem do ideário civilizacional do colonizador. Sendo filhos do desterro e da exploração, sem ponte com o in ille tempore, os idealizadores da nação brasileira do século XIX viram-se sem condições de estabelecer uma continuidade que não fosse artificial com um passado imaginário. Reelaboraram o passado, buscando elementos simbólicos remotos para dar sentido ao nacionalismo de classe, com o fito de estabelecer ou legitimar “instituições, status ou relações de autoridade, inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento”. 4 Procuraram os

idealizadores da nação brasileira forjar símbolos e uma fundação áurea a fim de criar a unidade nacional, criando antes de tudo uma continuidade com um passado histórico. Ao produzirem tais símbolos legitimaram na sociedade brasileira, mesmo que inconscientemente, o status social de superior-inferior, competente- incompetente, incentivando a alguns a se sentirem mais iguais do que outros, em virtude de que, segundo Eric. J. Hobsbawm, o elemento de invenção foi legitimado pelas classes superiores. A história tornou-se, então, “parte do cabedal do conhecimento ou ideologia da nação, Estado ou movimento não correspondente ao que foi realmente conservado na memória popular, mas àquilo que foi selecionado, escrito, descrito, popularizado e institucionalizado por quem estava encarregado de fazê-lo”.5

Os idealizadores da nação (Caso de José Martiniano de Alencar), com intuito de atribuir perenidade à nação, foram buscar no passado histórico o elemento fundacional a fim de consagrarem o imaginário de uma nação cujas tradições encontravam-se enraizadas na mais remota Antigüidade, isto é, momento mítico em que a nação brasileira foi fundada. Essa antiguidade mítica passava a ser o critério que referendava a autoridade da nação. O passado transformava-se no depositário de elementos antigos, os quais podiam ser reelaborados à luz das necessidades do presente. Eric J. Hobsbawm afirma em A Invenção das Tradições que no século XIX foi desenvolvido em antigas e novas nações um conjunto de rituais bastante eficaz, produzido a partir de variados instrumentos nacionais: folclore, arquitetura,

4 Ibid., p. 17. 5 Ibid., p. 21.

189 religião.6 O século XIX não foi diferente para o Brasil. Influenciado pela revolução francesa e construção do estado nacional francês, procurou-se, seja na figura do índio, da cor-local, criar um elemento identitário brasileiro, a fim de se produzir uma “alma nacional”.

Em A Formação das Almas, o historiador José Murilo de Carvalho verificou que embora em escala menor do que no caso francês, houve também no Brasil uma batalha de símbolos e alegorias, parte integrante da batalha ideológica e política. Sua fala refere-se à luta pela produção do imaginário popular republicano no século XIX e início do século XX. Desse historiador podemos resgatar algumas idéias essenciais para a produção do imaginário de nação brasileira, assim como nos apropriamos de Eric J. Hobsbawm, a fim de reconstituirmos o imaginário produzido no início e meados do século XIX.

Segundo José Murilo de Carvalho as ideologias, como discurso, sempre permaneceram enclausuradas no fechado círculo das elites nacionais educadas. Somando-se a isso, ao aprofundar as investigações sobre a batalha de símbolos em torno da construção da identidade nacional7, verificou-se que, embora em escala menor do que no caso francês, a batalha pelo imaginário da nação foi parte integrante da legitimação do regime político brasileiro (acirrada no caso republicano). Assim como no caso republicano, a construção do imaginário de nação no século XIX fazia parte da legitimação do regime político que se instaurava, o que possibilitava, por meio da elaboração do imaginário, “atingir não só a cabeça mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro”.8 Ainda segundo José Murilo de Carvalho, o imaginário social é constituído e se expressa por ideologias, utopias, mas também por símbolos, alegorias, rituais e mitos, visto que símbolos e mitos podem, por seu caráter difuso, por sua leitura menos codificada, tornar-se elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos coletivos. “Na medida em que tenham êxito em atingir o imaginário, podem também plasmar visões de mundo e modelar condutas”.9

6 Ibid., p. 14-15.

7 Vide CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

8 Ibid., p.10. 9 Ibid., p. 10-11.

190 Dado que o século XIX se constituiu num momento de mudança e redefinição político-social no Brasil, a manipulação do imaginário social tornou-se importante. Era mister apoderar-se da imaginação do povo. Nesse contexto surgem as obras de José Martiniano de Alencar, destacando-se, neste trabalho, o romance

Iracema.

A obra Iracema, produzida nesse contexto histórico de redefinição de nossa sociedade, serviu aos interesses ideológicos do sistema vigente da época. Era necessário criar a noção de “pátria brasileira”, expressão que se passou a utilizar a partir do Patriarca da Independência José Bonifácio.10

As narrativas urbanas de José de Alencar, concordando com o crítico João Hernesto Weber, antes de resolverem o problema do impasse histórico-ideológico vigente no País, desnudou o dilema da intelectualidade nacional.11 Ainda segundo

esse crítico, a obra Iracema é a narrativa que relata o contato do homem branco, Martim, com o indígena, representado pela figura central da obra, Iracema. Mas o relevante é que o romance é dado como um símbolo da criação da nacionalidade brasileira. Age ideologicamente com uma função determinada: o indianismo serviu, nas palavras do crítico, “não a um hipotético ideário burguês-revolucionário, mas à representação de um mundo épico que resultava na laudação da classe no poder. Sua função era celebrar o país erigido e dominado por essa classe, louvar os valores dessa classe, conferir a essa classe um passado heróico capaz de responder pela sua legitimação no poder, esse o sentido da temática indianista no Brasil.”12

Recordemos, contudo, que no capítulo anterior desta tese, Tupy, or not tupy,

that is the question, defendemos a idéia de que o “mal-estar” em nossa civilização e

a sensação de que as idéias estavam fora do lugar residia basicamente na ausência de um Axis Mundi. Essa sensação nasceu num momento histórico cujo significado de “nação” e também o mais freqüentemente ventilado na literatura, era político. “Equalizava ‘o povo’ e o estado à maneira das revoluções francesa e americana,

10 Consulte. CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:

Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 16. Para a construção do imaginário criado em torno do Império, confira-se, também, SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

11 Apud. WEBER, João Hernesto, Caminhos do romance brasileiro: de a Moreninha a Os

Guaianãs. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 32-33.

191 uma equalização que soa familiar em expressões como ‘estado-nação’, ‘Nações Unidas’ ou a retórica dos últimos presidentes do século XX.”13

Por outro lado, comenta Eric J. Hobsbawm que dentro desse critério de nação, no século XIX, estavam, com certeza, presentes os vários elementos posteriormente usados para descobrir definições da nacionalidade não estatal, tais como território, linguagem e etnia. Eric J. Hobsbawm afirma que em se tratando da nação francesa, no século XIX, “para a maioria dos jacobinos, um francês que não falasse francês era suspeito e que, na prática, o critério etnolingüístico de nacionalidade era freqüentemente aceito.”14 Portanto, etnia e língua eram fatores determinantes da nacionalidade. Eric. J. Hobsbawm destaca que Richard Böckh “argumentava que a língua era o único indicador adequado de nacionalidade”.15

Além disso, salienta Eric. J. Hobsbawm que no Dicionário da Academia Espanhola até 1956 não se encontrava uma versão final do que era “nação”. Esta era designada ainda como a coletividade de pessoas que tinham a mesma origem étnica e, em geral, falavam a mesma língua e possuíam uma tradição comum.16

Essa unidade lingüística e étnica, como vimos anteriormente, não havia no Brasil, tampouco em países da Europa de outros continentes; no entanto, os idealizadores da nação brasileira, tomados pela idéia de centralidade, mirando uma sociedade dispersa à imagem de um cipoal (no caso a brasileira), cujo tempo ainda não havia concedido capacidade de acentuar, buscaram produzir uma representação homogênea dos brasileiros e da nação. Essa representação, segundo Marilena Chauí, foi o que permitiu, “em certos momentos, crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiro, e, em outros momentos, conceber a divisão social e a divisão política sob a forma dos amigos da nação e dos inimigos a combater, combate que engendrará ou conservará a unidade, a identidade e a indivisibilidade nacionais.”17

Para a construção desse ideário a literatura foi o grande instrumento criador dos mitos de fundação18. Foi através dela, a exemplo de Iracema, de José

13 HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade.

Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990. p. 31.

14 Ibid., p. 3. 15 Ibid., p. 34. 16 Ibid., p. 28.

17 CHAUÍ. Op. cit. , p. 7-8.

18 Tomamos de empréstimo a Marilena Chauí a expressão Mito Fundador. Segundo essa

pensadora “Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico de narração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego da palavra mythos), mas também

192 Martiniano de Alencar, que se produziram os mitos fundacionais de nossa cultura. Buscou-se um passado imaginário, tido como instante originário, com o intuito de apaziguar o cipoal, as contradições internas e dar um sentido áureo e identitário à nação, bem como dar sustentação à ideologia da classe dominante que se encontrava no poder. A rejeição à realidade brasileira, vista pelos intelectuais e “donos-do-poder” como “feia e desconcertante” produziu a importação de narrativas as quais foram impingidas a elementos nacionais, produzindo a sensação de desajuste e de que as idéias se encontravam fora do lugar.

O mito Iracema, romance indianista publicado em 1865, foi, segundo a

poetisa Neide Archanjo, um livro amado pelos leitores de todas as épocas. ”De enredo simples – uma índia ama um homem branco, sofre e morre de amor -, o texto é, todavia, emocionante, trabalhado com rigor e maestria pelo autor”19. A ação do

romance Iracema se situa no século XVII, e a linguagem floreada e original de José de Alencar objetivava criar um mito das origens nacionais. O enredo é repleto de símbolos, a começar pela heroína da narrativa. Considerando as mulheres índias como verdadeiras conquistadoras da terra, o romancista estabeleceu que as mães indígenas eram a essência das virtudes da raça; por isso Iracema reunia em si qualidade de mulher, esposa e mãe. Por amor ao esposo, Martim, renuncia à pátria tabajara e à religião, da qual era a virgem sacerdotisa. Pelo filho Moacir sofre, silenciosamente, pelo desprezo do homem que ama. Moacir – filho do sofrimento – será o depositário de todas as virtudes herdadas da tribo: sabedoria, coragem, justiça, vigor.20

Ao trazermos esse romance para discussão neste trabalho, propomo-nos a relê-lo, tendo a consciência de que “o passado ajuda a compor as aparências do

no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. Se também dizemos mito fundador é porque, à maneira de toda fundatio, esse mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal. Nesse sentido, falamos em mito também na acepção psicanalítica, ou seja, como impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela. (...) A fundação se refere a um momento passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo, isto é, a fundação visa a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe dá sentido. (CHAUÍ. Op. Cit., p. 9-10).

19 ARCHANJO, Neide. Introdução ao romance Iracema. In: ALENCAR, José Martiniano de. Iracema. 4. ed. Rio de Janeiro – São Paulo: Record, 2001. p. 5-7.

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