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Na filogênese do pensamento e da linguagem podemos constatar, sem dúvida, uma fase pré-fala no desenvolvimento

No documento A Construção Do Pensamento e Da Linguagem' (páginas 152-157)

do intelecto e uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da fala.

II

Na ontogênese, a relação entre as duas linhas de desenvol­ vimento - do pensamento e da linguagem - é bem mais obscu­ ra e confusa. Mas deixando de lado qualquer questão relativa ao paralelismo da ontogênese e da filogênese ou a outra rela­ ção mais complexa entre elas, também aqui podemos estabele­ cer diferentes raízes genéticas e diferentes linhas de desenvol­ vimento do pensamento e da linguagem.

A existência de uma fase pré-verbal na evolução do pensa­ mento durante a infância só recentemente foi corroborada por

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provas experimentais objetivas. As experiências de Köhler com chimpanzés, adequadamente modificadas, foram realizadas com crianças que ainda não haviam aprendido a falar. Mais de uma vez, o próprio Köhler desenvolveu alguns experimentos com crianças com vistas a estabelecer comparações e Bühler reali­ zou, nas mesmas bases, o estudo sistemático de uma criança.

É o próprio Bühler que descreve o seu trabalho:

Eram ações exatamente iguais às dos chimpanzés, de for­ ma que essa fase da vida da criança poderia ser chamada, com maior precisão, de idade chimpanzòide: na criança que observa­ mos correspondia ao décimo, décimo primeiro e décimo segun­ do meses,., Na idade chimpanzòide ocorrem as primeiras inven­ ções da criança - muito primitivas, é claro, mas extremamente importantes para o seu desenvolvimento mental (13, p. 97)*.

O que é teoricamente mais importante nesses experimen­ tos, assim como nos experimentos desenvolvidos com os chim­ panzés, é a descoberta da independência das reações intelec­ tuais rudimentares em relação à fala. Observando isso, Bühler comenta:

Costumava-se dizer que a fala era o princípio da hommiza- ção {Menschwerden)\ talvez sim, mas antes da fala há o pensa­ mento associado à utilização de instrumentos, isto é, a compreen­ são das relações mecânicas, e a criação de meios mecânicos para fins mecânicos: ou, em resumo, antes do aparecimento da fala a ação se toma subjetivamente significativa - em outras palavras, conscientemente intencional (13, p. 48)**.

As raízes pré-intelectuais da fala no desenvolvimento da criança foram estabelecidas há muito tempo. O grito, o balbucio

* Aproveitam os aqui o trecho da edição resum ida de Pensam ento e lingua­

gem de V igotski, da M artins Fontes, na boa tradução de Jefferson L uiz Camargo,

p. 36. (N. do T.)

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e até as primeiras palavras da criança são estágios absolutamen­ te nítidos no desenvolvimento da fala, mas estádios pré-inte- lectuais. Não têm nada em comum com o desenvolvimento do pensamento.

Uma concepção geralmente aceita considerava a fala in­ fantil nesse estágio de desenvolvimento como uma forma de comportamento predominantemente emocional. Pesquisas re­ centes acerca das primeiras formas de comportamento da crian­ ça e das suas primeiras reações à voz humana (realizadas por Charlotte Bühler e seu grupo) mostraram que a função social da fala já é aparente durante o primeiro ano, isto é, na fase pré- intelectual do desenvolvimento da fala. Nessa fase, encontra­ mos um rico desenvolvimento da função social da linguagem.

O contato social relativamente complexo e rico da criança leva a um desenvolvimento sumamente precoce dos “meios de comunicação”. Reações bastante definidas à voz humana foram observadas já no início da terceira semana de vida, e a primei­ ra reação especificamente social à voz, durante o segundo mês (20, p. 124). Essas investigações mostraram igualmente que as risadas, o balbucio, os gestos e os movimentos são meios de contato social a partir dos primeiros meses de vida da criança.

Assim, as duas funções da fala, que observamos no desen­ volvimento filogenético, já aparecem claramente no primeiro ano de vida.

Contudo, a descoberta mais importante sobre o desenvol­ vimento do pensamento e da fala na criança é a de que, num certo momento, mais ou menos aos dois anos de idade, as cur­ vas da evolução do pensamento e da fala, até então separadas, cruzam-se e coincidem para iniciar uma nova forma de com­ portamento muito característica do homem. Stem descreveu antes e melhor que os demais esse acontecimento de suma im­ portância no desenvolvimento psicológico da criança. Ele mos­ trou que nela

despeitam a consciência obscura do significado da linguagem e a vontade de dominá-lo”, que nessa época a criança “fa z a maior

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descoberta de sua vida’\ a de que “cada coisa tem o seu nome” (21, p. 92).

Esse momento crucial, a partir do qual a fa la se torna in­

telectual e o pensamento verbalizado, é caracterizado por dois

sintomas objetivos indiscutíveis, que nos permitem julgar se aconteceu ou não essa mudança na evolução da fala, bem co­ mo - nos casos de retardamento anormal do desenvolvimento - o quanto esse momento avançou no tempo em comparação com o desenvolvimento de uma criança normal. Esses dois mo­ mentos estão intimamente interligados e são os seguintes: 1) a criança que sofreu essa mudança começa a ampliar ativamen­

te o seu vocabulário, perguntando sobre cada coisa nova (co­

mo isso se chama?); 2) dá-se a conseqüente ampliação de seu vocabulário, que ocorre de forma extremamente rápida e aos saltos.

Como se sabe, o animal pode assimilar determinadas pa­ lavras da fala humana e aplicá-las segundo a situação. Antes desse período, a criança também assimila determinadas pala­ vras que, para ela, são estímulos condicionados ou substitutos de alguns objetos, pessoas, ações, estados e desejos. Nessa idade, a criança conhece apenas as palavras que aprende com outras pessoas. Agora a situação muda radicalmente: ao ver o novo objeto, a criança pergunta: “Como isso se chama?” A própria criança necessita da palavra e procura ativamente assimilar o signo pertencente ao objeto, signo esse que lhe serve para no­ mear e comunicar. Se, como mostrou acertadamente Meumann, o primeiro estádio do desenvolvimento da fala infantil é, por seu sentido psicológico, afetivo-volitivo, então, a partir desse momento, a fala entra na fase intelectual do seu desenvolvi­ mento. É como se a criança descobrisse a função simbólica da linguagem. Diz Stem:

O processo que acaba de ser descrito já se pode definir, sem nenhuma dúvida, como atividade intelectual da criança no verda-

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deixo sentido da palavra; a compreensão da relação entre signo e significado, que aqui já se manifesta na criança, é algo em prin­ cípio diferente do simples emprego de noções e suas associa­ ções, e a exigência de que qualquer objeto, independentemente da sua espécie, tenha o seu próprio nome pode ser considerada o primeiro conceito geral e real da criança (21, p. 93).

Cabe uma rápida abordagem dessa questão, pois aqui nes­ se ponto genético de cruzamento ata-se pela primeira vez o nó conhecido como problema do pensamento e da linguagem. O que representa esse momento, essa “descoberta maior na vída da criança”? E estará correta a interpretação de Stem?

Bühler compara essa descoberta às invenções do chim­ panzé.

Pode-se interpretar e virar pelo avesso essa circunstância à vontade, mas no ponto decisivo sempre se revela o paralelo psi­ cológico com as invenções do chimpanzé (22, p. 55).

Essa mesma idéia é desenvolvida por K. Koffka.

A firnção de nomear (Namengebung) é uma descoberta, uma invenção da criança, que revela um total paralelo com as invenções do chimpanzé. Nós vimos que estas últimas são uma ação estrutural, logo, vemos até na denominação uma ação es­ trutural. Diríamos que a palavra entra na estrutura do objeto co­ mo a vara entra na situação do desejo de apoderar-se do fruto (23, p. 243).

Seja como for, até que ponto é correta essa analogia entre a descoberta da função significativa da palavra na criança e a descoberta do “significado funcional” do instrumento na vara pelo chimpanzé são coisas que veremos mais tarde, ao exami­ narmos relações funcionais e estruturais entre o pensamento e a fala. Por ora, nós nos limitaremos a observar que “a maior des­ coberta da criança” só é possível quando já se atingiu um nível

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relativamente elevado do desenvolvimento e da linguagem. Para “descobrir” a linguagem é necessário pensar.

Podemos formular brevemente as nossas conclusões: 1. No seu desenvolvimento ontogenético, o pensamento e a fala têm raízes diferentes.

2. Podemos, com certeza, constatar no desenvolvimento

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