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3.2 O Estado transcendente

3.2.1 Filosofia das formas simbólicas

Ernst Cassirer, com sua A Filosofia das Formas Simbólicas, promoveu uma verdadeira quebra de paradigma na epistemologia. Apesar de pertencer a uma linhagem de pensadores neokantianos, considerando, assim, o princípio fundamental do pensamento crítico, ou seja, “o princípio do ‘primado’ da função sobre o objeto”22

, negando uma metafísica ontológica, já que o objeto da cognição não pode ser colocado como algo dado, Cassirer rompe de certa forma com a analítica transcendental, uma vez que não concorda com o caráter puramente lógico em que essa se baseia.

Conforme observa Álvaro Cabral na apresentação de O Mito do Estado,

Embora trabalhasse sempre de acordo com essa tradição, Cassirer foi mais longe do que os demais membros do grupo na medida em que, em vez de se preocupar prioritariamente com a teoria do conhecimento, como foi característico dos sucessores de Kant, considerou que o conhecimento é apenas um aspecto da atividade do espírito e, se quisermos entender a nossa experiência, tanto as nossas percepções imediatas quanto as nossas hipóteses científicas, devemos nos familiarizar com o desenvolvimento da linguagem, com o pensamento mítico, assim como com os processos de sensação, percepção e juízo.23

Desse modo, Ernst Cassirer inaugura uma Filosofia da Cultura, que não considera somente o lógico conhecimento científico para o processo de objetivação daquilo que é percebido pelo homem, mas também aprecia a linguagem, o mito (aqui também inserida a religião) e a arte.

Para o que se pretende neste trabalho, vamos nos ater à figura do mito, concebido como uma forma simbólica. Aliás, o símbolo é a base metodológica da epistemologia de Cassirer, permitindo o conhecimento da realidade, mas ao mesmo tempo, distanciando o indivíduo dessa. Para Cassirer, o símbolo é uma função e não uma substância, apesar de ser frequentemente hipostasiado pelo sujeito cognoscente, dando origem aos mitos.

Ernst Cassirer, em seus ensinamentos sobre uma filosofia da cultura, bem expõe que:

22

CASSIRER, Filosofia das formas simbólicas I, p. 21. 23

Quando designamos a língua, o mito e a arte como “formas simbólicas”, parece estar implícito nessa expressão o pressuposto de que todos esses elementos, enquanto formas definidas de formações intelectuais, remontam a um último estrato primordial do real, que é perceptível nelas somente através de um meio estranho. Parece que não podemos apreender a realidade senão por meio da peculiaridade dessas formas, mas ao mesmo tempo parece que, nessas formas, a realidade tanto se oculta quanto se revela. As mesmas funções básicas que dão ao mundo do espírito sua determinação, sua marca, seu caráter, mostram-se, por outro lado e de modo equivalente, como refrações que o ser individual e único experimenta em si, tão logo é percebido e assimilado pelo “sujeito”. Sob esse ponto de vista, a Filosofia das formas simbólicas nada mais é que a tentativa de indicar para cada uma dessas formas o, por assim dizer, índice determinado de refração, que lhe é específico e peculiar.24

Desse modo, Cassirer define o símbolo quanto às suas funções, concedendo-lhe uma característica de mediação. Assim, como destaca Hans Lindahl, “[...] la aproximación y el

distanciamiento son el trabajo del símbolo; son éstas sus funciones típicas. Los seres humanos traban una relación simbólica con el mundo porque retroceden ante la realidad en el mismo acto de aproximarse a ella”.25

Segundo a filosofia de Cassirer, são os símbolos que permitem o conhecimento da realidade, porém, essa nunca é apreendida de forma absoluta, justamente devido a intermediação que o símbolo impõe. Conforme observa Lindahl, “a sociedade necessariamente está constituída simbolicamente porque a dupla função do símbolo governa a relação humana com a realidade em geral”.26

Diante do exposto, em O Mito do Estado, o filósofo da cultura, após fazer um resgate histórico das diversas correntes do pensamento que tentaram explicar a origem do mito, afirma que o problema dessas teorias foi o de estarem focadas em uma explicação material, ou melhor, substancial do mito. Cassirer argumenta que, “embora o estudo do assunto do mito possa ser altamente interessante e despertar a nossa curiosidade científica, não pode por si só fornecer uma resposta definitiva. Porque o que desejamos conhecer não é a mera substância do mito, mas antes, a sua função na vida cultural e social do homem”.27

É justamente nesse objetivo que Cassirer se focará, considerando que o simbolismo mítico leva a uma objetivação de sentimentos, uma vez que o homem se distingue dos animais por manifestar-se através de expressões simbólicas. Segundo o autor, “O mito não pode ser

24

CASSIRER, Filosofia das formas simbólicas III, pp. 9-10. 25

LINDAHL, El pueblo soberano, p. 55. 26

LINDAHL, El pueblo soberano, p. 55. tradução livre. 27

descrito como uma simples emoção porque é a expressão de uma emoção. A expressão de um sentimento não é o próprio sentimento – é a emoção tornada imagem”.28 Com isso,

Nos seus ritos mágicos, nas suas cerimônias religiosas, o homem age sob a pressão de profundos desejos individuais e violentos impulsos sociais. Ele realiza essas ações sem conhecer os seus motivos; estes são inteiramente inconscientes. Mas se esses ritos se transformam em mitos aparece um novo elemento. O homem já não se satisfaz com fazer certas coisas – coloca o problema do “significado” dessas coisas, quer saber o porquê e onde, tenta compreender a origem e o destino dessas mesmas coisas. A resposta que ele próprio dá a todas essas perguntas pode parecer incongruente e absurda; mas o que aqui mais importa não é tanto a resposta como a própria pergunta.29

A pergunta que move a humanidade, a angústia de Primo Levi30, coloca-se assim como o sentimento que leva ao mito: por quê?

Como ensina Cassirer, diferentemente das emoções fisiológicas, as emoções simbólicas não são transformadas em meros atos, mas sim em obras. “Essas obras não desaparecem. São persistentes e duradouras. Uma reação física pode tão-somente dar-nos um rápido e temporário alívio; uma expressão simbólica pode tornar-se num monumentum aere

perennius”31. Assim, as imagens sobre as quais o mito vive, sob a ótica do sujeito cognoscente, “não são conhecidas como imagens. Não são consideradas como símbolos, mas como realidades. Essa realidade não pode ser negada ou criticada; tem de ser aceita passivamente”32.

A necessidade de explicação para o inexplicável ou para aquilo que o indivíduo não quer ou não pode aceitar indica que a realidade que conhecemos é composta por algo semelhante a hologramas. A realidade absoluta, nua e crua, é – como um subterfúgio – projetada em um mito.

Assim acontece com o tema da morte. “No pensamento mítico, o mistério da morte ‘transformou-se numa imagem’ – e mercê dessa transformação a morte deixa de ser um fato físico terrível e intolerável; torna-se compreensível e suportável”.33 O mito criado em torno dessa questão visa a tornar o fim da existência humana passível de conhecimento, ou seja, visa a deixar a realidade amena e confortável, ou, para utilizar o termo do filósofo, o indivíduo apega-se ao mito para “saber morrer”.

28

CASSIRER, O mito do Estado, pp. 63-64. 29

CASSIRER, O mito do Estado, pp. 66-67. 30

Fazemos aqui referência à indagação – situada no contexto do holocausto – retratada no livro É isto um homem?, de Primo Levi.

31

CASSIRER, O mito do Estado, p. 67. 32

CASSIRER, O mito do Estado, p. 68. 33

Hans Lindahl considera que o mesmo ocorre com o pensamento político: “O poder político é essencialmente simbólico porque o homem continuamente se esforça para afastar de si uma realidade absoluta – o poder em seu significado mais agudo –, interpondo entre ele e esta um novo absoluto: seus símbolos”34. Conforme defende o autor, os indivíduos frequentemente submetem a realidade política a um poder incondicionado. Desse modo, o que os domina sempre está, miticamente, condicionado a uma esfera que se coloca de um modo transcendente, transcendência essa que “cumpre a função própria de todo atividade simbólica: assegurar ao ser humano um acesso indireto à realidade, fazendo desta algo inteligível e suportável”35.

Diante do exposto, a relação entre Kelsen e Cassirer em Deus e Estado parece estar, ao menos inicialmente, mais do que clara. Porém, é preciso esclarecer ainda como se dá tal relação na obra Teoria Pura do Direito.