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PERCURSO 3. A CONSTRUÇÃO DAS DISCIPLINAS A PARTIR DE OBJETOS SEM

3.2. Filosofia mestiça e solidão

Não sei se o leitor se lembrará de que ser-no-mundo é absorver-se no mundo. Para Michel Serres (1933), o pensamento como existência acontece de um modo muito específico: é a travessia de um rio, em que “o nadador sabe que um segundo rio corre neste que todo mundo vê, entre os dois limiares, atrás ou à frente dos quais quaisquer seguranças desapareceram: ali ele abandona toda referência” (SERRES, 1933, p.11).

Ao que intitula “sentido”, o autor afirma que a verdadeira passagem ocorre no meio e que o nadador deve atravessar para aprender com a solidão. Instalando-se em sua própria vida como estrangeira, tudo com o que pode contar é com o próprio suporte. Privado de casa, morto sem sepultura, intermediário (todos termos do autor), a travessia não é a conversão de uma margem em outra, mas aquilo que faz com que aquele que atravessa habite ao mesmo tempo as duas margens e não se torne domínio de nenhuma delas.

O que é psicologia?

Essa pergunta, tão oca quanto à fome e tão nauseante quanto uma mensagem pode ser, instala-se a partir de um conjunto de saberes e práticas institucionais, tradicionais, normativas e, muitas vezes, violentamente estabelecidas, ao mesmo tempo em que emana de um apelo de saber ouvir, de ser palavra, de ser companhia, recrutando a sensibilidade de mestres desse mesmo conjunto de saberes e práticas, emergindo-se e florescendo como potência no mundo, fazendo-se Estrela, Estrela fazendo-se psicologia.

Corrente e contracorrente, a psicologia é mestiça. O quarto isolado de duas camas com criado-mudo e as maçãs disponíveis sem pedir por quê; trinta e três anos de cotidiana maquinaria e uma tarde insubstituível; a pressa dos serviços, o canto cumprido, a lágrima seca. Com Estrela eu aprendi que tem gente que espera pela morte como na sala de espera do dentista.

Vou dizer que há ainda o que eu não contei entre “o que é psicologia” e “causa indeterminada”. É que a solidão da travessia te obriga a aceitar a morte e a se afeiçoar a ela. Não a morte como querer deixar de viver, mas a morte como querer deixar de entender.

Contar isso é dificílimo porque pode ser tão inaceitável quanto desconsiderar que no corpo de Estrela há um algoz e se envaidecer infantilmente por uma espécie de tarde mágica que me colocaria em estado de plena santificação. E não é nem uma coisa nem outra.

Do ponto de vista de minha biografia, essa travessia demarca um tempo dedicado a autores preocupados com explicar, para autores que tinham a necessidade de compreender. O que inclui apreender que a questão sobre “o que é psicologia?” advém de uma anterior sobre a minha própria vida. Vivo filosoficamente. E isso significa: qualquer vida vive filosoficamente – qualquer vida é a própria epistemologia. Dei-me conta de algo mais grave que ter uma profissão: eu vivia.

Querer deixar de entender é uma gratuidade que se põe disponível e sabe-se limitada. Morre-se porque se vive. Sente-se que, ao contrário da explicação, que é receber do mundo uma resposta para então voltar-se ao mundo a partir dessa resposta, a compreensão é entregar-se, com ou sem ela, mas, principalmente, sem ela.

Uma ou dez vezes eu ouvi de kardecista que todos são médiuns, mas que apenas alguns desenvolvem sua mediunidade. Penso que se passa mais ou menos isso com o que Michel Serres chamou de mestiço, e há O Livro das Ignorãças como há O Livro dos Espíritos.

Não oblitero moscas com palavras. Uma espécie de canto me ocasiona. Respeito as oralidades.

Eu escrevo o rumor das palavras. Não sou sandeu de gramáticas. Só sei o nada aumentando. Eu sou culpado de mim.

Vou nunca mais ter nascido em agosto. No chão de minha voz tem um outono. Sobre meu rosto vem dormir a noite. (BARROS, Manoel de. 2016, p.35)

Particularmente, acredito que Manoel de Barros nunca deva ser recitado em voz alta. A mudez de um mestiço empobrece muito com a fala metrificada da leitura ou da palestra. Por exemplo, uma vez atendi uma mulher que se sentou na poltrona e disse: “eu tenho depressão” – como se sentasse ao mesmo tempo em que fechasse todas as portas e diagnósticos. Ficou cinquenta minutos protocolando comportamentos, e mais parecia o psiquiatra que a deprimida.

Levei o caso para minha supervisora, que disse: “mas você perguntou o que ela está chamando de depressão na vida dela?”. Não perguntei. E não havia percebido que sequer ela pensou em se perguntar, ou simplesmente não havia se dado conta de que poderia se perguntar.

De uma forma ou de outra, ela vivia o não dito, embora tenha estabelecido entre o dito e o não dito uma gramática intransponível.

Neste contexto, aquela mulher não me solicitava para explicar o que quer que seja, mas exatamente o contrário: solicitava-me para desaprender o explicado e permitir a livre expressão de sua angústia. Angústia para a qual não há explicação, mas compreensão. Agora me diga, leitor, que é o mestiço senão que a solidão pela não explicação?

A travessia como o abandono de toda referência “tem um silêncio feroz” (BARROS, 2016, p.65). Não sendo propriamente o escamar de um peixe, é muito mais a lida com estar entre a fome e a náusea, entre a angústia e a plenitude, Estrela chamando e Estrela “sem causa determinada”. Aprender a fazer de uma dura casca um invólucro mole feito uma lesma. Fazer das proteções de papéis um abrigo: 1) ajeitar poltronas; 2) lenço de papel; 3) ouvido.

Até que se solte, e se nade ante e ao revés de todas as coisas, perdendo-as ou não de vista, refazendo ou não as trilhas, sabendo dar-lhes a cada uma a medida exata até o ponto em que coincidam com o próprio caminho. Neste ponto, a psicologia, com precedente determinativo, tornar-se-á, ela mesma, mestiça, opaca, borrada, multicor e multiafeto. Tornar- se-á, ela mesma, acontecimento.

É que, conforme Manoel, bom mestiço, desaprender oito horas por dia ensina os princípios.