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Às filtragens criminológicas realizadas pelos organismos policiais e, em seguida, pelo Ministério Público, no bojo do chamado controle formal do crime, segue-se,

JUIZES E TRIBUNAIS

1. Às filtragens criminológicas realizadas pelos organismos policiais e, em seguida, pelo Ministério Público, no bojo do chamado controle formal do crime, segue-se,

num estágio final, a atuação do Poder Judiciário, por seus juizes e tribunais. A estes cabe, nos processos criminais, instaurados sobre casos previamente selecionados pela Polícia e Ministério Público, decidir pela condenação ou absolvição das pessoas acusadas. Na hipótese de condenação, incumbe aos juizes a escolha da modalidade de pena a ser aplicada, dentre aquelas cominadas abstratamente na lei penal, sua quantidade, qual o regime de cumprimento no caso da pena privativa de liberdade, bem como sua eventual substituição por qualquer outra ou até sua imediata suspensão sob determinadas condições (sursis).

Uma vez definitiva a condenação à pena privativa de liberdade, a pena por excelência do sistema penal brasileiro, inicia-se a fase de execução penal, que constitui procedimento distinto, em que serão julgados pelos juizes das varas das execuções criminais

eventuais incidentes processuais, que repercutirão na forma e conteúdo do cumprimento das penas. Nessa fase são examinados benefícios como livramento condicional, indulto e progressão de regime, dentre outros, que importarão em alteração no efetivo cumprimento das penas e, portanto, na possibilidade de maior ou menor tempo de permanência do sentenciado no cárcere.

Aos juizes criminais, de primeira e segunda instância (juizes e tribunais, respectivamente), incumbirá a tarefa de aplicar as leis penais, interpretá-las e amoldá-las aos fatos representados nos processos. Estes têm como suporte probatório inicial a apuração feita pela Polícia, transformada em processo após o oferecimento da denúncia pelo promotor de justiça e recebida pelo juiz, iniciando-se aí o processo criminal propriamente dito.

Nesse sentido, o trabalho de análise dos fatos limita-se, de forma significativa, embora não exclusiva, ao que consta do inquérito policial. Muito raramente o promotor de justiça oferecerá denúncia, contra quem considera responsável pela prática de crime, servindo-se apenas de outros elementos de prova que não sejam os autos da investigação policial, o que ocorre, por exemplo, na hipótese de documentos que vão ter diretamente às mãos do promotor sem que haja apuração policial.

A ação penal (processo judicial), pois, guarda relação probatória com os elementos que a Polícia obtém e que faz constar do inquérito, os quais podem ser ampliados ou questionados em sua legitimidade no decorrer do processo, onde passa a atuar o advogado de defesa, que, ao contrário do que ocorre na Polícia, tem possibilidade de contestar as provas, acompanhá-las e realizar outras, agora já sob o signo de uma relação processual entre partes distintas, em que impera o princípio do contraditório.

Diz-se do inquérito policial, onde inexiste a garantia constitucional do contraditório, que se trata de peça meramente informativa e, nessa condição, não se mostra relevante como elemento de prova para o futuro desfecho do processo criminal. Entretanto, o

inquérito fornece subsídios importantes ao promotor, que poderá formular a acusação, e também ao juiz, que dele se servirá para condenar ou absolver o acusado, em cotejo com as provas que se produziram na fase judicial. Acaba por constituir, pois, peça importante no jogo seletivo de tais operadores do Direito.

Como coletânea de indícios, apresenta-se a investigação policial também como futuro complemento das provas que serão produzidas em Juízo e, nessa condição, poderá ser levada em conta na sentença como elemento subsidiário. Em determinados delitos, tais elementos indiciários exercem papel até bastante relevante, como ocorre, por exemplo, com a confissão policial ou com a apreensão do produto do crime de furto com o suspeito. Nessas duas situações, a prática judiciária das varas criminais revela que o juiz costuma munir-se de tais elementos de convicção que lhe permitirão condenar o réu com base nesses elementos indiciários, embora não corroborados por outras provas produzidas na fase do contraditório judicial.

No julgamento da Revisão nº 847.742.3/3, o Tribunal de Justiça de São Paulo deixou claro que

“não se pode negar a validade à prova indiciária, cujo valor é idêntico à direta, posto que reconhecida pelo sistema do livre convencimento, adotado pelo Código de Processo Penal, segundo a exegese do art. 157, combinado com o art. 239. Esta é ainda a lição de José Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal, RJ: Forense, 1961, vol. II, nº 525, p. 378)”.

Tal significa dizer que são também valorizados os elementos colhidos durante o inquérito policial, mesmo na ausência do contraditório, o que confere importância à atuação policial, onde se exerce ação seletiva às vezes definitiva, e, pois, à liberdade de decisão por parte do juiz na apreciação do caso concreto.

Se, de um lado, a dogmática penal, com seu arcabouço garantista, exige que os elementos indiciários, colhidos pela Polícia, passem pelo crivo do contraditório para justificarem a decisão judicial condenatória, de outro lado, no caso, por exemplo, da acusação da prática de crime de furto contra agente que tenha admitido, na delegacia policial, a autoria, ou contra quem pesa a circunstância de ter sido surpreendido na posse do produto da subtração, ela permite que juizes e tribunais utilizem o argumento de que a apreensão do produto do furto com o acusado opera uma verdadeira inversão do ônus da prova.

Ao acusado cabe, pois, demonstrar a legitimidade da posse do objeto, anteriormente subtraído de seu proprietário, mesmo sabendo-se que objetos de toda espécie são costumeiramente negociados pela população sem as cautelas que se exigem para operações de vulto. É o que se verifica nos processos criminais envolvendo pequenos veículos, como bicicletas usadas ou botijões de gás, aparelhos elétricos e eletrônicos de pequeno valor, utensílios domésticos etc.

O conteúdo do inquérito policial é ainda levado em conta para seguimento da própria investigação na fase pré-processual, como se dá com as decisões liminares de quebra de sigilo, busca e apreensão ou outras diligências a serem autorizadas pelos juizes, das quais decorrerão conseqüências futuras para os suspeitos, como o oferecimento de denúncia, com a conseqüente instauração do processo criminal, a decretação da prisão preventiva ou outras170.

Por último, cabe registrar ainda que a existência de inquérito policial em andamento contra o suspeito é compreendida por muitos juizes e tribunais como antecedente criminal capaz de, em casos futuros, influir na decisão condenatória ou, principalmente, na aplicação da pena. Afinal, “antecedentes são todos os fatos ou episódios, próximos ou

170 Fábio Motta Lopes. O inquérito policial, na prática, não é peça informativa, in “Boletim” IBCCRIM nº 181, S. Paulo, dez/2007, pp. 10-11.

remotos, da vida anteacta do réu, que possam interessar, de qualquer modo, à avaliação subjetiva do crime” (Revista dos Tribunais, vol. 513/405).

A batalha judicial, de que participarão acusação e defesa no processo criminal, presidirá a construção de uma verdade que orientará o juiz em sua decisão de condenação ou absolvição do réu, mas também lhe poderá fornecer elementos para a eventual aplicação da pena no caso de condenação. O que se sustenta, porém, é que não apenas as provas produzidas no processo judicial servirão de base para a decisão, mas também os elementos de prova produzidos no inquérito, por constituírem normalmente a base sobre a qual o promotor fará a acusação inicial (denúncia) e terá início o processo, são deveras relevantes para a futura ação seletiva que o juiz fará ao proferir a sentença.

Sabem disso os advogados de defesa de pessoas oriundas das classes média e alta, que costumeiramente passam a acompanhar pessoalmente a investigação policial. Pobres e beneficiários da justiça gratuita normalmente só terão contacto com seus defensores quando já instaurada a ação penal por denúncia do promotor, após a finalização do inquérito.

Ao condenar ou absolver o réu, ou ao aplicar a pena de uma determinada forma ou de outra, na verdade, o juiz se insere no movimento geral de seletividade que tem início nos primeiros contactos que vítimas e suspeitos mantêm com os policiais, constitutivos daquela primeira grande filtragem criminológica, a resultar na definição final de crimes e criminosos que o Poder Judiciário pode fazer ingressar no sistema penal.

Está-se, pois, diante de um verdadeiro processo de criação do Direito, que se perfaz efetivamente através das decisões judiciais, supostamente imparciais, proferidas por poder independente e desinteressado, cuja neutralidade, contudo, não passa de dispositivo retórico de legitimação das escolhas que compõem o conteúdo pessoal das decisões. De que forma atuam os juizes criminais? Quais as ferramentas que utilizam para condenar ou absolver pessoas acusadas?

A par das razões e expedientes técnicos consignados pelos juízes na aplicação das leis, Alessandro Nepomuceno aponta, nas decisões judiciais, a existência de um código ideológico “no qual a discricionariedade do julgador somente encontra limites na sua própria concepção pessoal da criminalidade e nos estereótipos que orientam a possibilidade de separar o joio do trigo”171.

Pretende-se que as respostas a tais indagações possam contribuir para que melhor sejam compreendidos os dispositivos que presidem a definição dos crimes e de quem são os criminosos, no âmbito da chamada criminalização secundária.

Pode-se dizer que a hermenêutica jurídica – comumente definida como arte ou ciência da interpretação das normas – é um dos mais importantes dispositivos técnicos para justificar a seleção de fatos e autores destinados à punição. As diversas técnicas interpretativas e princípios colocam-se a serviço dos juizes para uma escolha fundamentada e racional, de forma a passar a impressão de uma operação lógica de mera aplicação das leis penais aos casos concretos, com foros de legitimidade científica.

A análise de grande quantidade de processos criminais deixa entrever o viés dos aplicadores das leis penais, representativo de uma herança positivista da atividade judiciária, no sentido de uma individualização voltada para uma clientela seleta de pessoas consideradas perigosas, que constituirão o refugo da sociedade, segundo Zygmunt Bauman.

A seleção judicial movimenta-se numa bem tecida rede de critérios interpretativos, entremeados por regras processuais e de prova e por procedimentos, a incidirem sobre condutas humanas carregadas de sentido, pré-selecionadas como criminosas, e sobre um verdadeiro universo de vagueza e ambigüidade das leis penais e processuais penais.

O resultado do trabalho de seleção judicial não apenas se diversifica entre a dicotomia absolvição/condenação do réu, mas envolve dispositivos e vias diferentes de

solução dos casos de condenação, o que se faz, dentre outros meios, por intermédio da dosagem e modulação das penas, concessão de benefícios processuais e escolha dos regimes de cumprimento das penas privativas de liberdade.

O peso dado aos antecedentes do réu, por exemplo, no momento da condenação ou da decretação da prisão preventiva pertence ao poder discricionário do juiz, o qual, a par de, por definição, dever atentar para o princípio constitucional da não culpabilidade, que impede, em tese, a valorização de inquéritos e processos ainda em andamento contra o réu, poderá, na sentença, considerá-los circunstâncias adversas para fins de promover o aumento da pena ou de reconhecer a periculosidade do acusado.

Ao lado de um forte ideário garantista e legalista, objeto de recorrentes referências retóricas nos julgamentos, pode o tribunal entender, como de fato o fez, em decisão já antiga, quando, aliás, era diverso o contexto midiático de violência e criminalidade na sociedade brasileira, que “homem de bem, realmente, não marcaria com tal freqüência, presença no campo das investigações da polícia e da justiça penal” (TJ/SP Apelação nº 149.906/3).

Tal vaticínio parece falar por si mesmo, no sentido de demonstrar o peso da biografia do réu sobre o julgamento de sua ação.

A prática judicial constitui atividade de controle e normalização dos infratores, a qual se faz não só pelo poder genérico das leis, dado que estas punem ações humanas abstratamente, mas também pelos juizes, que exercem o poder punitivo de forma concreta e individualizadora, qual autêntico poder de polícia, visando corrigir alguns dos infratores que violam as leis.

Montesquieu, o teórico da separação de poderes, já dizia que

“no exercício da polícia, quem pune é mais o magistrado do que a lei; nos julgamentos de crimes, é a lei que pune mais do que o magistrado.

As questões de polícia são coisas de todo instante, em que ordinariamente se trata de pouca coisa: quase não se necessita de formalidades”172.

Vê-se, pois, que o rigor abstrato e retórico do princípio da legalidade e divisão de poderes, já em sua origem histórica, dá mostras de sua verdadeira face flexível e individualizadora, no sentido de não obstar uma regulação ordinária que se realiza plenamente, também no âmbito do Poder Judiciário, nas práticas processuais penais, visando o todo, mas principalmente cada um, ao definir pontualmente o que deve e o que não deve ser tolerado. Tal regulação judicial confunde-se, na prática, com a ação desenvolvida pela Polícia, identificando-se com a sociedade de tipo disciplinar, como explica Michel Foucault173 a propósito da atuação da Polícia.

Trata-se de uma modalidade pastoral do poder, no sentido de uma razão judiciária de Estado, de natureza individualizadora, exercida de forma seletiva. A atividade punitiva por parte dos juízes no julgamento dos acusados significa não uma simples repressão das condutas ilícitas, mas

“uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as ilegalidades: ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia’ geral.”174

Na sociedade de controle em que já vivemos, os juízes parecem assemelhar- se cada vez mais a policiais e vigilantes, tornando concretos e individuais dispositivos legais

172 O espírito das leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Ed. Abril, 1979, in “Os pensadores”, p. 405.

173 Omnes et singulatim. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro, in “Ditos e escritos” vol. IV, S. Paulo: Forense

Universitária, 2003.

genéricos que os autorizam a exercerem sua livre convicção de julgadores e gestores das questões pessoais.

Antes de procederem à classificação final na sentença, quando decidirão em qual ou quais dispositivos legais se acha incurso o réu, os juízes têm diante de si os mesmos fatos que já passaram pela definição da Polícia, a qual instaurou a investigação criminal e apontou o suspeito (indiciado) e o delito praticado, e pelo Ministério Público, responsável pelo oferecimento da denúncia, na qual consta a classificação da infração penal feita pelo promotor de justiça.

Em muitos desses casos, costumam deixar-se à mostra, às vezes de forma sutil, às vezes nem tanto, a parcialidade dos juízes criminais e seu papel regulador e gestor das ilegalidades. Tal exercício regulador pode brotar de uma simples análise das perguntas que o magistrado costuma formular aos acusados, quando interrogados, e às testemunhas de acusação ou defesa.

Nos processos por porte ilegal de arma ou posse de droga, crimes definidos doutrinariamente como infrações de perigo, em que é manifesto o intento de controle sobre os suspeitos de sempre (pobres, moradores de favelas, desempregados, drogados, indivíduos com passagens policiais), a prévia intenção de condenar os acusados pode ser detectada na forma como são encaminhadas as perguntas. Em tais processos, a prova de acusação é constituída quase que exclusivamente por depoimentos dos policiais que realizaram a diligência e efetuaram a apreensão da arma ou da droga.

Num desses casos observados, já no interrogatório em Juízo, ato judicial considerado típico de defesa, em que se dá a oportunidade de o réu, livremente, apresentar sua versão dos fatos, o juiz ouviu dele a informação de que as armas apreendidas na residência – uma habitação de favela freqüentada por várias pessoas – pertenciam a outro indivíduo que lá

ingressara e que não fora abordado pelos policiais militares. Eis o diálogo entre o juiz e o acusado:

Juiz: "Ele é maior ou menor?” Réu: “É de menor, tem 16 anos”.

Juiz: “Eu imaginei, a alegação que o menor aparece para assumir a prática de crimes é tão antiga que eu acho que eu engatinhava quando começou a existir, se é que não era de antes”.

Diante da reafirmação da versão do réu por uma testemunha de defesa, o juiz afirmou a ela:

“Eu perguntei para o senhor o que os policiais encontraram com ele, o que o senhor veio preparado para falar eu já entendi e não acreditei”.

Outra testemunha de defesa também apresentou a mesma versão do réu, seu cunhado. O juiz então advertiu a testemunha sobre o que poderia ocorrer caso estivesse mentindo, ou seja, caso ele juiz viesse a condenar o réu:

“Então o senhor está ciente que se seu cunhado for condenado o senhor vai ser processado por crime de falso testemunho. Já foi processado alguma vez?” A testemunha: “Já”. O juiz: “Por que, falso testemunho?” A testemunha: “Não”. O juiz: “Por que, tráfico, furto, roubo?” A testemunha: “180” (crime de receptação). O juiz: “Então seu depoimento tem muita valia, o senhor já foi réu em processo. Foi condenado?” A testemunha: “Eu fiquei preso três meses”. O juiz: “Num país como o nosso, alguém que foi processado por crime contra o patrimônio está perto daqueles políticos corruptos. Já que o depoimento do senhor está muito preciso, de ter sido o menor, o réu ser seu cunhado e o senhor já ter sido processado, eu não vou nem continuar fazendo perguntas para o senhor”.

O réu acabou condenado por crime de porte ilegal de arma (TJ/SP Apelação nº 990.08.053195-6).

2. A facilidade de acomodação das condutas relativas a alguns dos crimes

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