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CAPÍTULO 2 – Um olhar sobre a história de uma certa educação popular

2.4. Fim da história?

Durante essa pesquisa, nosso recorte temporal esteve pautado principalmente no período histórico traçado entre a ascensão dos movimentos de cultura popular no início dos anos 60 até o declínio do campo popular no final dos anos 80. Também levamos em conta algumas das raízes historicamente reivindicadas no interior do campo da educação popular com sentido emancipatório. Segundo o depoimento acima de Mario Garcés, o período entre os anos 80 e 90

efetivamente representa o fechamento de um ciclo histórico: um ciclo revolucionário, no qual a historicidade do povo latino-americano esteve atravessada por lutas de libertação (GARCÉS, 2018) e também pelos violentos processos contrarrevolucionários, dentro da lógica presente no contexto da Guerra Fria. É nesse ciclo que surge a educação popular com sentido emancipatório a partir dos movimentos de cultura popular dos anos 60. Em uma trajetória marcada por contradições e transformações internas ao campo.

O momento histórico a partir dos anos 90 se mostra um marco fundamental para o entendimento dos dilemas mais recentes enfrentados pelos movimentos de educação popular no continente. Entendemos que há a partir de desse período a constituição de um novo ciclo histórico. Um período no qual novamente temos a passagem de uma guerra de amplitude global – no caso a Guerra Fria – para outro período conflitivo, mas agora centrado no neoliberalismo e na expansão das lógicas de mercado para todos os espaços e tempos que permeiam a vida. O encerramento do ciclo político da Guerra Fria, representado pela queda do Muro de Berlim, emplacou o mito do fim da história, termo que no

[...] célebre ensaio de Francis Fukuyama não faz mais do que revestir com uma linguagem pseudo-hegeliana a convicção, profundamente enraizada, das elites dominantes na perenidade de seu sistema econômico e social, considerado não só infinitamente superior a qualquer outro, mas o único possível, o horizonte intransponível da história, a etapa final e definitiva da longa marcha da humanidade. O que não quer dizer, para o discurso hegemônico atual, que o progresso – científico, técnico, econômico, social, cultural – não continue. Ao contrário, ele passará, dizem, por avanços formidáveis, mas no âmbito, fixado de uma vez por todas, da economia capitalista/industrial e do sistema dito “liberal-democrático”. Em poucas palavras, o

progresso na ordem, como havia “previsto” tão bem Auguste Comte (LÖWY, 2005,

p. 155, grifos do autor).

Assim, a “essência do neoliberalismo é a deshistorização do tempo” (BETTO, 2005, p. 13), cuja sua expressão tão impactante na época – fim da história – representa a noção de que chegamos à plenitude do próprio tempo: a realização humana está agora eternamente enfurnada no mercado e no sistema capitalista, único futuro possível (RIDENTI 2009/2010). Foi anunciada como findas quaisquer possibilidades de transformações e de construção de caminhos distintos à globalização e ao neoliberalismo (MEJÍA, 2006). Nessa lógica, as alternativas que se colocam seriam apenas intra-sistêmicas (BETTO, 2005): no máximo são aceitas perspectivas reformistas, em busca de “humanizar” ou “adestrar” a hidra capitalista191.

Dentro dessa lógica fatalista, qualquer discurso utópico, propondo a construção de uma sociedade alternativa192 à esta, é taxado como anacrônico. Ainda mais se enunciado exatamente a partir de termos tão presentes no período anterior, como comunismo, socialismo e

revolucionário, como afirma Carlos Rodrigues Brandão:

É muito curioso quando a gente vai nesses encontros agora. Você vê que palavras como revolucionário, socialismo, que mesmo nós cristãos... Eu até hoje inclusive volta e meia no encontro digo “olha, eu ainda sou socialista”. Estou buscando qual a minha assinatura, mas a partir do momento em que me coloco contra o modelo capitalista e tenho que optar por outro modelo, esse outro modelo é o modelo socialista. Não é o modelo marxista, eu não tenho essa tradição. Mas é o modelo socialista, que o Florestan Fernandes também tocava muito nisso aí. Mas você vê que hoje em dia, a gente quase que deixa de lado. A gente substitui revolucionário por

emancipador, libertador, decolonizador... Que eu acho uma coisa importante

inclusive, que essas novas alternativas decolonizadoras... inclusive toda a proposta de Boaventura, tudo isso... digamos assim, atualiza muito a educação popular (BRANDÃO, Entrevista, 2019).

Ao mesmo tempo, palavra imperialismo foi dando lugar a um novo termo, teoricamente neutro: globalização, que no Brasil se materializou acompanhada das noções de modernização e progresso. Segundo Bárbara Lopes (2013, p. 112), o “vocabulário é um bom espelho das mudanças silenciosas que a expansão do neoliberalismo operou na cultura”.

Vivemos, desde então, uma mudança de época que impactou todos os terrenos da vida e do pensamento, inclusive no campo educacional e, mais especificamente, na educação popular (JARA, 2006; MEJÍA, 2006). Nesse momento, a política social do neoliberalismo se tornou cada vez mais presente em grupos que no passado foram os principais agentes de educação popular na América Latina e no mundo: ONGs, igrejas, cooperativas e, inclusive, em movimentos sociais. Nessas novas experiências tenta-se desativar a indignação, a revolta, o protesto e a participação política, se utilizando apenas do acúmulo técnico do campo. Nesse sentido amplo de uma educação popular, despreocupado com rupturas políticas, os pontos fundamentais para a criação de uma contra hegemonia – como os apontados na introdução desse trabalho, a partir de Claudia Korol (2006) – são contornados em práticas e teorias que se afirmam parte dessa perspectiva, mas que não se propõe a serem processos transformadores, emancipatórios ou, ao menos, críticos às formas hegemônicas na sociedade. Está em voga uma discursividade sobre a educação popular, mas que não se preocupa em construir uma educação

com os grupos oprimidos na sociedade, mas sim para.

192 Segundo Frei Betto (2005, p. 13, grifos do autor), a partir desse momento, no interior do neoliberalismo:

E isso ocorre tanto no interior de processos que ocorrem fora da escola – que através da educação não formal, podemos destacar as atuações das ONGs, que a partir de uma organização social complexa acabam comumente trabalhando em consonância com as políticas neoliberais (CATINI, 2016) – quanto na educação formal, que nas últimas décadas tem cada vez mais introduzido técnicas da educação popular no interior de meios institucionalizados. O capital, através de suas várias facetas, realiza sua velha prática de cooptação de técnicas potencialmente emancipatórias em seu benefício próprio, em sua própria reprodução, atualização e ampliação voraz.

Contudo, apesar de todas essas dinâmicas que buscaram incorporar as ferramentas e os discursos da educação popular e à revelia de algumas predileções fortalecidas na década de 1990, a educação popular com sentido emancipatório não foi sepultada. Ao contrário, muitos movimentos a colocam como central na procura de alternativas ao capitalismo neoliberal e globalizado, essa tormenta que se reinventa (ESCOBAR et al., 2017). Não à toa, os anos 90, apesar de tudo, foi um momento histórico em que surgem movimentos no continente que buscam novas formas de expressão (SADER, 2001). Um dos casos mais emblemáticos e com grande impacto nesse cenário é o movimento zapatista, que tal qual o MST, irá buscar, a partir de relações internas ao movimento, atualizar os paradigmas existentes no interior do campo da educação tencionando-o a uma prática revolucionária.

Influenciados por Emiliano Zapata e rememorando simultaneamente o líder do Ejército Libertador del Sur e aquelas pessoas que lutaram por outra sociedade possível durante a Revolução Mexicana, os zapatistas aparecem publicamente pela primeira vez no dia 1º de janeiro de 1994 ao iniciarem um levante armado no estado mexicano de Chiapas, um dos mais pobres do país, através das ações do EZLN - Exército Zapatista de Libertação Nacional, que rapidamente conquistam territórios e ganham destaque na mídia internacional. Por mais de uma década essa revolta era gestada secretamente no âmago das montanhas do sudeste mexicano por grupos maias de diferentes etnias, insatisfeitos com o descaso e com a brutalidade oriunda do Estado e do capitalismo (MOISÉS, 2015) e que, por isso, exigiam condições dignas de existência. Não por acaso, sua aparição pública ocorre no exato dia da entrada do México na zona do Tratado de Livre Comércio da América do Norte – NAFTA, ao mesmo tempo fruto e mecanismo do avanço das políticas neoliberais na região. A partir do levante, o zapatismo aparece como uma referência – mas não estritamente um modelo – a anseios e questionamentos dos movimentos contra hegemônicos atuais, especialmente na América Latina.

Em resistências ao neoliberalismo, a história da educação popular com sentido emancipatório continua se mantendo ativa, em movimento, mesmo encontrando grandes dificuldades e contradições em seu caminho. Ainda assim, Raúl Zibechi (2008, p. 104) posteriormente irá apontar que décadas depois das primeiras experiências dessa específica educação popular “[...] podemos asegurar que no existen movimientos sociales que no tengan alguna relación con la educación popular”, diretamente ou indiretamente. Em sua análise sistemática da história da educação popular na América Latina193, Oscar Jara aponta que há dois

períodos políticos distintos desde o marco do levante zapatista até hoje. O primeiro, vai simbolicamente de 1994 até 2001, com I Fórum Mundial de Porto Alegre. Tal momento foi marcado por uma refundamentação do campo da educação popular com sentido emancipatório, principalmente tendo em vista tanto uma nova cultura política – representada especialmente pelo MST e pelo movimento zapatista em Chiapas – quanto pelo fortalecimento da educação popular enquanto uma política pública. Já o segundo período – de 2001 até hoje – perpassa a ascensão e o declínio de governos de caráter progressista que tivemos em grande parte dos países da região. Além da relação com estes, a educação popular também se torna ainda mais presente no meio universitário, constrói abordagens e paradigmas relacionados às novas estruturações sociais e, sobretudo, precisa responder às atuais ofensivas conservadoras neoliberais.

193 Novamente durante o curso Educação Popular, história e chaves éticas, políticas e pedagógicas: pensando