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3.3   DIMENSIONAMENTO PRATICADO 86

4.3.3   Flexibilidade 180

Para que um projeto permaneça adequado, deverá haver possibilidade de acomodação de mudanças. Consequentemente, o dimensionamento se entrelaça com a flexibilidade da solução adotada na organização da planta e na técnica construtiva.

Dada uma atividade prevista, haverá um espaço crítico (determinado por uma profundidade e uma largura características) que é o menor espaço capaz de acomodar o mobiliário e os equipamentos requeridos, assim como as necessidades de espaço cinestésico (envoltória livre) associadas a eles (OKAMOTO,1996, p. 120; HABRAKEN, 2000, p. 77, 80). O espaço crítico, com frequência, permite uma única solução e representa uma situação limite. Como lógica geral, partindo do espaço crítico, quanto mais justo seja o dimensionamento que define a compartimentação do espaço, mais flexível precisará ser a solução desta compartimentação. Espaços maiores, porque são mais capazes de acomodar usos imprevistos, requerem compartimentação menos flexível.

Conforme visto, a coordenação modular pode, através da racionalização, equacionar custos, viabilizando (ao menos em teoria) espaços mais amplos. Tanto quanto, pode ser parte de um método de projeto que crie resultados flexíveis a partir de padrões combináveis e parâmetros replicáveis.

Para explicar essas possibilidades, é possível fazer referência ao método de desenho de suportes apresentado por Habraken (2000) no livro El diseño de soportes.

Conforme contextualiza o autor, na década de 1960 o governo holandês promoveu uma política habitacional fortemente centralizada e estandardizada. Os arquitetos do país se alarmavam com a qualidade dos espaços resultantes e entendiam que

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faltava no processo de projeto a participação dos usuários. Sentiam-se, todavia, limitados por regulações estatais e pelos sistemas construtivos impostos. Diante desses desafios, fundaram o SAR (Stichting Architecten Research), um grupo dedicado a buscar estratégias para o problema do projeto e da construção de habitações em grande escala.

O conceito de suporte desenvolvido pelo SAR é um reconhecimento da condição humana e de seu reflexo na variabilidade do espaço (HABRAKEN, 2000, p. 7-9). Os suportes constituem uma base fixa comum, que costuma incluir estrutura e serviços prediais, oferecendo elementos necessários para o funcionamento da residência e para sugerir uma organização básica do espaço. Dentro dele, o usuário tem controle sobre a compartimentação dos ambientes por meio do que o método chama de “unidades separáveis”. Unidades separáveis são elementos adaptáveis, capazes de serem acoplados em combinações diferentes, conforme as necessidades e desejos do usuário no transcorrer do tempo.

A flexibilidade é um aspecto fundamental da investigação, mas o autor explica que há limites para que sua contribuição seja positiva. Uma estrutura em esqueleto, que oferece liberdade total, requer mais unidades separáveis, que podem, por exemplo, prejudicar o desempenho térmico e acústico da unidade. Além disso, é difícil para o residente se identificar e se apropriar de espaços completamente indefinidos. Na verdade, quanto mais vazio o suporte, maior é o ônus criativo, técnico e financeiro transferido ao usuário. Desenvolver um suporte não se trata, portanto, de criar um espaço vazio qualquer. Habraken (HABRAKEN, 2000, p. 20) explica que um bom suporte é aquele capaz de oferecer diferentes tipos de espaços reconhecíveis, evocando possibilidades de apropriação ao residente. Existe, por isso, um sistema que cria e testa essas possibilidades.

O método de suportes desenvolve parâmetros e procedimentos baseados na coordenação modular para dimensionamento e distribuição de elementos sobre uma malha de multimódulo 3 M. Seus instrumentos são examinados na subseção 6.2.2, “Posicionamento horizontal dos elementos”, mas alguns aspectos pertinentes às análises de espaços e funções merecem ser adiantados na presente seção.

O dimensionamento dos suportes e das unidades separáveis se baseia no estudo dos espaços críticos. Para um dormitório, por exemplo, consideram-se as dimensões

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de uma cama, um armário, uma cadeira, uma mesa etc. e as necessidades de espaço livre associadas a estes móveis (HABRAKEN, 2000, p. 80). A partir disso, testam-se vários arranjos de mobiliário possíveis, verificando para cada possibilidade a largura e a profundidade requerida para o espaço. Esse estudo pode ser sistematizado graficamente como feito nas figuras reproduzidas a seguir. Nelas, Habraken demonstra a análise do espaço crítico para um dormitório individual (Figura 49) que resulta em 240 x 210 cm e 180 x 330 cm; e para diferentes arranjos de banheiro (Figura 50). As duas análises consideram o multimódulo de 3 M para a definição dos limites da compartimentação.

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Figura 49 – Análise do espaço crítico

Sem escala.

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Figura 50 - Análise do espaço crítico

Sem escala.

Fonte: Habraken et al. (2000, p. 57).

A sistematização gráfica dos espaços estabelecida sobre uma mesma referência dimensional fornece elementos para composição de diferentes arranjos. É interessante observar que o princípio de flexibilidade permite que a conformação de alguns espaços críticos seja uma escolha do usuário e não uma imposição predefinida pela tipologia da habitação.

A Figura 51 e a Figura 52 a seguir trazem simulações de aproveitamento para diferentes larguras e profundidades de suporte a partir dos ambientes previamente estudados. Por meio de estudos como esses, é possível identificar, para um dado

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projeto, as dimensões e proporções de suporte que proporcionam melhores possibilidades de arranjo das unidades separáveis.

Figura 51 - Análise de composição dos espaços

Sem escala.

Fonte: Habraken et al. (2000, p. 78).

Figura 52 - Análise de composição dos espaços

Sem escala.

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Outro aspecto relevante do método desenvolvido pelo SAR é uma classificação baseada em três características de uso dos espaços – espaços para usos gerais, espaços para usos especiais e espaços de serviços (HABRAKEN et al., 2000, p. 103). Um espaço para usos gerais é aquele que receberá uma combinação qualquer de atividades que não pode ser determinada previamente, por exemplo, uma sala. Um espaço para usos especiais, como um dormitório ou um escritório, é destinado à permanência prolongada e tem dimensões mínima e máxima possíveis de serem estimadas, baseando-se em sua função principal. Os espaços de serviço prestam-se a ocupações de curta duração e têm caráter utilitário, como banheiro ou área de serviço; seu tamanho e distribuição se determinam a partir de uma análise mais precisa das funções e equipamentos que acomodam.

Tal classificação diferencia os espaços que precisam de mais área para acomodar atividades espontâneas dos que aceitam dimensionamento mais próximo do espaço crítico. Também permite criar parâmetros de posicionamento em relação aos acessos, à fachada e às colunas de instalação hidráulica. Dessa forma, contribui para a hierarquização de espaços e dimensionamento. Para o programa residencial, isso significa que os serviços ‒ banheiro, área de serviços e, em alguns casos, a cozinha ‒ podem ter dimensionamento mais justo e solução mais rígida, associada à posição das instalações no edifício. Em oposição, as salas e os espaços comuns, que podem acomodar toda natureza de atividades simultâneas e espontâneas, frequentemente ocuparão os maiores espaços do suporte. Nesse caso, tratando-se da apropriação espontânea do espaço pelo usuário, a ideia de desperdício desaparece.

Uma vez estejam definidas as dimensões e a configuração do suporte, os elementos a serem acomodados e os parâmetros de posicionamento, é possível testar variantes de planta, avaliando a qualidade da solução obtida. O objetivo é que o suporte seja capaz de acomodar compartimentações tão variadas quanto desejáveis. A Figura 53 ilustra essa simulação conforme o método proposto por Habraken.

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Figura 53 – Possíveis variantes na ocupação do suporte

SUPORTE

VARIANTE 1 VARIANTE 2

VARIANTE 3 VARIANTE 4 Sem escala.

Fonte: Habraken et al. (2000, p. 87).

As estratégias descritas tratam de problemas de coordenação, avaliação e sistematização e não se restringem necessariamente ao programa habitacional. Conforme relata Habraken, fora do SAR foram adotadas por arquitetos para coordenar processos de projeto e também para apresentá-los de forma estruturada

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aos clientes porque, a cada estágio, as opções e decisões tomadas ficam demonstradas e registradas. Ademais, foi aplicado por construtores e industriais para desenvolver componentes e sistemas construtivos que se acoplam ao restante da construção e para ilustrar as opções de desenho por eles oferecidas.

Segundo Habraken (2000, p. 54), o princípio de classificação, que articula espaços de diferentes tamanhos e características, é identificável na Escola Montessori, em Delft, de Herman Hetzberger (Figura 54). Nela, os espaços para usos especiais (salas de aula) e os espaços de serviço (sanitários) organizam-se em torno do grande espaço de uso geral para reuniões, recreação e atividades físicas. As salas de aula também se dividem em três espaços com características diferentes – os armários, a pequena zona de atividades de concentração e o salão principal (Figura 55). A esse respeito, cabe fazer referência ao próprio Hertzberger em entrevista dada em 2016 ao website Architecture and Education (DYER, 2016). Na entrevista, o arquiteto fala da importância da articulação de espaços de diferentes escalas para promover, ao mesmo tempo, experiências individuais e apreensão do conjunto. Explica também que regras de composição proporcionam condições para a variedade, mas que a variedade virá do uso feito pelos ocupantes. Então, seu método não trata de liberdade total, mas de possibilidades e de encorajamento para escolhas individuais.

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Figura 54 - Escola Montessori, Delft

Fonte: Dyer (2016).

Figura 55 - Sala de aula na Escola Montessori, Delft

Fonte: Dyer (2016).

Percebe-se, nos casos citados, soluções em que o dimensionamento e a rigidez não são homogêneos; a racionalização do sistema obedece a uma hierarquia que é proveniente das características dos espaços desejados. No caminho oposto a tais experiências, a atual miniaturização dos espaços, identificável na arquitetura

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habitacional no Brasil, se agrava, pela adoção de soluções rígidas de técnica construtiva e compartimentação dos espaços. Especialmente, a adoção da alvenaria estrutural como modelo de racionalização construtiva e paradigma de aplicação da coordenação modular merece exame.

A estreita ligação entre alvenaria estrutural e coordenação modular pode ser verificada nas pesquisas de Zechmeister (2005), Pereira (2005) e Lacerda (2005). Ademais, em outros autores, como Lucini (2001) e Soares (2008), a associação acontece com a alvenaria de vedação racionalizada. A importância das vedações dentre os subsistemas do edifício e a predileção, no Brasil, da alvenaria em relação a sistemas leves de construção justificam essa ligação.

A alvenaria tradicional, absolutamente artesanal em projeto e execução (SOARES, 2008, p. 19), tem como característica a não marcação das fiadas, cortes e preenchimento entre peças e falta de controle sobre processos. Comparada a ela, a alvenaria racionalizada, desenvolvida a partir de um projeto para produção, resulta em obras mais eficientes, com redução de custo, prazo de construção, manifestação de patologias, desperdício de material e retrabalho. Ademais, a racionalização da alvenaria costuma acompanhar a racionalização de outras atividades, como instalações elétricas e hidráulicas (ZECHMEISTER, 2005, p. 45). Já as vantagens trazidas pela alvenaria estrutural estão vinculadas à eliminação da estrutura convencional, que é incorporada à própria vedação. Entre essas vantagens é possível mencionar economia de formas, redução de espessuras de regularização e eliminação de etapas com consequências positivas sobre o gerenciamento de mão de obra e materiais, e sobre o ritmo de execução (ZECHMEISTER, 2005, p. 45). A leitura de Zechmeister (2005) e Soares (2008) conduz ao entendimento de que a coordenação modular tem extrema relevância para a alvenaria, seja estrutural ou apenas de vedação. Tratando da alvenaria estrutural, Zechmeister (2005, p. 23) afirma que o uso da coordenação modular tem resultados positivos em praticamente todas as etapas do empreendimento porque permite a introdução de procedimentos de execução, de detalhes padronizados e de técnicas precisas. Para Soares (2008, p. 32-33), a coordenação modular, aplicada desde a concepção do projeto e também na produção dos blocos, reduz dificuldades típicas de um projeto para produção de alvenarias. Seu papel está em diminuir a necessidade de adequação da geometria

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dos projetos às dimensões do bloco e de compatibilizar as disciplinas de arquitetura e estrutura porque o projeto já é concebido dentro de um parâmetro dimensional único. Ela tem também impacto positivo sobre os cronogramas e sobre os custos, pela diminuição de detalhamentos e dos problemas advindos da variedade dimensional excessiva dos componentes disponíveis no mercado.

A prática racionalizada do projeto para produção de vedações em alvenaria começou no final da década de 1980 e ganhou importância na década de 1990 (SOARES, 2008, p. 20). Com uma trajetória similar, a alvenaria estrutural, que teve início no Brasil na década de 1970, também evoluiu significativamente somente a partir da década de 1990. Antes disso, a tecnologia importada dos Estados Unidos apresentava patologias advindas da adaptação inadequada à realidade nacional (ZECHMEISTER, 2005, p. 44). A reportagem da revista Construção Mercado (ANTUNES, 2009) relata que, nas décadas de 1970 e 1980, a alvenaria estrutural era sinônimo de construção popular porque foi aplicada em larga escala em construções habitacionais com financiamento do Governo Federal. Na década de 1990, os construtores passaram a investir em pesquisa para melhorar seu desempenho, buscando ganhos em custo e rapidez. Disso resultou uma evolução rápida que consolidou a alvenaria estrutural como uma opção atraente para as construtoras. De acordo com a reportagem, o desenvolvimento foi significativo em São Paulo, onde a alvenaria estrutural já é aplicada em edifícios de apartamentos entre 15 e 25 pavimentos e destinados a padrão de consumo mais elevado.

Todavia, como qualquer outra técnica construtiva, a alvenaria estrutural tem algumas desvantagens inerentes. Dentre elas, destacam-se a necessidade de paredes internas enrijecedoras, que subdividem o espaço em cômodos relativamente pequenos, e a inviabilidade técnica de remover paredes portantes, que prejudica a adaptação de novos usos (ZECHMEISTER, 2005, p. 46; ANTUNES, 2009). Conforme explica a reportagem da revista Construção Mercado (ANTUNES, 2009), para a alvenaria estrutural, grandes vãos são possíveis com o emprego de técnicas adequadas, mas acabam neutralizando a vantagem que é ter as paredes como os principais elementos estruturais.

A alvenaria de vedação com estrutura de concreto armado não apresenta as mesmas limitações. Ainda assim, os Projetos para Produção de Vedações Verticais

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em Alvenaria (PPVVA) justificam-se à medida que haja uma certa repetição e constância da configuração de compartimentação proposta, porque mudanças exigem reestudo das amarrações e interfaces entre componentes.

Limitar a coordenação modular à resolução do projeto de produção das vedações em alvenaria e, sobretudo, da alvenaria estrutural, cria um sistema que tem como marca principal a permanência da compartimentação. É um método fundamentalmente oposto ao sistema de suportes, por exemplo, que usa coordenação modular para articular uma compartimentação flexível (HABRAKEN, 2000, p. 18).

É interessante, quanto a isso, resgatar uma crítica feita por Habraken sobre a industrialização da construção habitacional da década de 1960 na Holanda, que parece pertinente ao momento atual do Brasil. O autor relata que o programa do Governo para enfrentar o déficit habitacional foi, a princípio, bem-sucedido. Era uma solução razoável a um problema emergencial e teve êxito econômico porque foi bem organizado e aplicado em larga escala. Todavia, segundo ele, a produção massificada de arquitetura passou a ser usada de forma crescente e se converteu na norma para todas as situações. A uniformidade era defendida como um mal necessário para alcançar uma produção mais eficiente, mas, o que a princípio foi uma medida de emergência, havia se convertido em paradigma (HABRAKEN, 2000, p. 7-9).

Na verdade, sobre a situação brasileira, a crítica a ser feita não é acerca da aplicação da alvenaria como sistema estrutural ou de vedação. O julgamento reside sobre dois pontos principais: a) a prevalência de estudos que transformam a alvenaria racionalizada em paradigma de coordenação modular; b) a rigidez na compartimentação resultante, que agrava o problema principal que é a miniaturização dos espaços.

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