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Capítulo 2 – A AGROPECUÁRIA MODERNA IMIGRANTE

2.3 Florescer a Terra: a criação de animais

A criação de animais foi uma constante na colônia Ijuí. Desde os primeiros anos os animais criados pelos colonos são contabilizados nos relatórios da Intendência Municipal, bem como em Censos realizados na colônia. A contagem efetuada em 1896 contabilizou os habitantes e informações agropecuárias importantes, revelando alguns aspectos do desenvolvimento da colônia seis anos após sua fundação.

Tabela 2: Questionário de 1896 – Dados da Produção Agropecuária39

Bovinos 1.350 Muar 124 Cavalar 974 Suíno 6.900 Ovinos 20 Caprinos 270 Galinhas 61.545 Patos 15.320 Perus 1.370 Colméias 5.950 39

Tabela produzida por Daniel Schneider a partir de dados do Questionário ano 1896 – Museu Antropológico Diretor Pestana (MADP), Ijuí/RS – Arquivo Ijuí (A.I.) 1.1 Pasta 5, Documento 12, página 3.

Segundo dados do mesmo censo, a área ocupada por lotes rústicos seria de 267.102,500m² (26.710,25 hectares), dado que pode ser comparado com o espaço de pastagens que era de 50.000,000m² (5.000 hectares), enquanto que o destinado ao cultivo de cereais era de 60.000,000m² (6.000 hectares) e o espaço destinado ao cultivo de vinhedos, pomares, canaviais, hortas era de 23.000,000m² (2.300 hectares). Esses dados revelam que o espaço já transformado deveria ser usado, em sua grande maioria, para o plantio de produtos para a subsistência da família do colono, embora a produção animal ocupe o segundo lugar no que diz respeito à transformação da paisagem. Percebe-se que a finalidade da transformação da paisagem é para a produção de gêneros alimentícios outros que não de origem animal.

Os animais que se encontram em grande número, como porcos, aves e colméias poderiam ser criados em espaços menores, menos transformados, ou como as colméias mesmo na mata. Telmo Marcon40, quando estuda os caboclos, cita que a criação dos animais por esses era feita sem a utilização de cercados ou espaços que delimitassem seu espaço de circulação, técnica que pode ter sido adotada em Ijuí, embora não ocorra registro nenhum do acima afirmado.

As imagens fotográficas novamente constituem-se em uma fonte privilegiada para o estudo da agropecuária de Ijuí. A exemplo das imagens da produção agrícola existem entre os acervos pesquisados uma grande quantidade de imagens, cujo tema central gira em torno da criação de animais. Essas imagens do mundo rural buscam ressaltar a transformação da paisagem pelo colono, seu progresso. São construções imagéticas que refletem bem o espírito da época, bem como auxiliam na construção da representação do imigrante europeu como símbolo do moderno, de uma nova dinâmica aplicada à agropecuária no sul do Brasil, como a supremacia do moderno sobre o arcaico. Sob a ótica desses aspectos devemos analisar essas imagens e assim buscar compreender, para além do que foi eternizado nos planos das imagens, o que as mesmas buscam simbolizar.

Imagem 35 – Criação de porcos (Coleção Eduardo Jaunsem, sem data).

Esta imagem produzida pelo fotógrafo Eduardo Jaunsem, embora não possua data, revela alguns aspectos interessantes sobre os inícios da agropecuária em Ijuí. Um plano de detalhes revela a criação de porcos com espaço delimitado por uma cerca, construída com alguns postes de madeira e tela de arame. Dentro desse espaço os porcos circulam livremente, bem como são alimentados. De maneira geral, os porcos apresentam-se com o mesmo tamanho, certa uniformidade que revela a possível mesma idade dos suínos, mesma alimentação e possível mesmo período do nascimento, o que de certo modo permite inferir que a sua criação era para o abate e venda da carne e subprodutos, principalmente a banha.

Ainda direcionando o olhar para um plano de detalhes é possível observar que o espaço em que os porcos são criados, assim como a lavoura de milho que se desenvolve logo atrás do espaço destinado aos porcos foi recentemente aberta, sendo ainda possível a visualização dos troncos das árvores queimados entre o milho e entre os porcos.

O plano de fundo é composto pela lavoura de milho. O plano geral da imagem nos transmite a impressão da mata vencida pelo trabalho do colono e a prosperidade da terra antes inculta, que agora recebe a produção agropecuária, também revela um aspecto já mencionado, da técnica fotográfica de Eduardo Jaunsem: a abertura da lente fotográfica, que permite ver além do tema central da imagem.

A importância da aquisição de animais e a sua produção também estão presentes na imagem, já que a fotografia não era algo corriqueiro na vida das pessoas, mas uma espécie de celebração, ato para o qual as pessoas se preparavam, vestiam suas melhores roupas. A fotografia da criação de porcos e a não-presença de nenhuma pessoa nos planos da imagem revela algo interessante e de certa forma incomum, que visa mostrar a prosperidade e o trabalho do sujeito proprietário da unidade produtiva.

Imagem 36 – Cercado para criação de porcos (Coleção Família Beck, sem data).

Esta imagem pertencente à Coleção Família Beck também apresenta como tema central de sua composição a criação de porcos, nesse caso, do maior produtor de porcos de Ijuí, João Michel. No primeiro plano pode-se observar os dois sujeitos que se encontram ao longe trajando camisas brancas, calça ligeiramente mais escura que a camisa e chapéu, ambos têm em suas mãos balaios nas quais provavelmente levaram alimentos para os porcos. Os sujeitos posam para a imagem olhando na direção do fotógrafo, buscando representar-se como trabalhadores/criadores de porcos, pois encontram-se com material de trabalho nas mãos e posaram para a imagem próximos aos porcos.

Um plano de detalhes apresenta-nos os porcos se alimentando provavelmente do que parecem ser sementes de coloração mais clara que a terra espalhadas pelo chão entre os

animais. Pode-se observar uma grande quantidade desses dispostos na imagem. Todos possuem tamanho e cor parecidos, o que vem assinalar, como na imagem anterior, a uniformidade da criação que certamente era voltada para o mercado. Atrás dos sujeitos podemos perceber a existência de uma cerca feita de tábuas ora dispostas verticalmente, ora horizontalmente, a distância das mesmas da posição do fotógrafo possibilita observar quão grande era o espaço destinado à criação suína pelo colono.

O plano de fundo é composto por uma série de árvores, coqueiros, a cerca e o céu claro que produz uma quebra na coloração da fotografia um pouco acima do meio da imagem.

No plano geral a técnica do fotógrafo é ressaltada, o foco principal direcionou-se sobre os porcos, mas a abertura da lente põe também os sujeitos em evidência, ressaltando assim o papel desses enquanto criadores/trabalhadores da criação suína. A lateral direita da imagem é fechada pela abertura da câmera, no entanto é possível notar que a criação de porcos não se limita somente ao espaço de recorte da imagem, mas sim, que ela se estende para além desse. A disposição dos porcos, a presença dos sujeitos atrás desses e a cerca ao fundo produzem uma bela sensação de profundidade na imagem.

Em primeiro plano nesta imagem produzida pela Família Beck, tomada em 1942, tendo como espaço de recorte uma propriedade familiar na Linha 4 Oeste, vemos a família se colocando próxima aos suínos. Disposta horizontalmente, da esquerda para a direita, temos uma mulher que usa um vestido, chapéu de palha, uma das mãos na cintura e a outra segue a linha do corpo, ao seu lado outra mulher, também com vestido, chapéu de palha, ambas as mãos seguem a linha do corpo. Em seguida temos um menino trajando calças curtas, camiseta e um pequeno chapéu, o mesmo encontra-se sobre parte do cercado de madeira em que os porcos se encontram para alcançar uma estatura próxima a dos adultos. Ao seu lado encontra- se provavelmente sua mãe que o sustenta com uma das mãos, também usando vestido e chapéu que a mesma segura com uma das mãos. Ao seu lado encontra-se o patriarca da família, trajando chapéu e camisa clara. Todos os sujeitos posam claramente para a imagem, buscando construir uma representação do trabalho com os suínos, de orgulho e status com sua produção.

Um plano de detalhes mostra os grandes e gordos suínos que se encontram dentro de um cercado de madeira bem rústico. Num plano de detalhes através da inscrição do fotógrafo sobre a imagem é possível saber o peso médio dos porcos: 226 kg, o número total de porcos 26 e o peso total da vara de porcos 5.869 kg. Algo que vem a demonstrar a seleção de raças, neste caso a Duroc, empenhada pelo governo municipal, assunto a ser analisado no capítulo seguinte.

No plano de fundo visualiza-se o restante da propriedade familiar com galpões, cobertos com tabuinhas e bem à direita algumas árvores que se desenvolvem na propriedade.

O plano geral da imagem horizontalizado pela disposição do cercado e dos porcos tem presente a importância dos animais para a família, bem como a necessidade de ressaltar a quantidade produzida, que encontra-se inscrita sobre a imagem.

Imagem 38 – Colméias (Coleção Família Beck, 1915).

No primeiro plano desta imagem, composta em 1915, na Linha 3 Oeste, posa para a imagem o colono trajando roupas simples, com camisa e calça, mãos na cintura, um calçado que se aproxima muito dos tamancos poloneses. O mesmo posa levemente virado para a esquerda da imagem, como que se apontasse com o posicionamento do seu corpo para as colméias que se encontram atrás dele.

Em um plano de detalhes está presente a técnica da criação de abelhas da época, na qual as colméias dispostas horizontalmente na imagem são protegidas por uma cobertura feita com tabuinhas e encontram-se elevadas do solo. O plano de fundo é completamente fechado pelas colméias, a vegetação que se estende atrás dessas praticamente não é possível visualizar. No plano geral da imagem a importância atribuída às colméias pelo colono, bem como a intencionalidade de construir uma imagem do trabalho desse com as abelhas, são claramente visíveis.

Imagem 39 – Granja leiteira (Coleção Família Beck, sem data).

Nesta imagem foi capturada uma granja leiteira de Ijuí. Em primeiro plano há um grande número de pessoas à esquerda da imagem, todas colocadas uma ao lado da outra, formando como que uma meia lua na imagem. Na frente dos animais da granja dois meninos posicionam-se olhando na direção onde o fotógrafo e sua câmera estão posicionados. Os sujeitos posam para a imagem fotográfica como que cedendo espaço aos animais que assim passam a ter um maior grau de importância no tema da imagem.

Um plano de detalhes apresenta o plantel de gado leiteiro da granja, que se encontra disperso ocupando quase toda a imagem. Na frente dos animais há um filete de água cortando horizontalmente a imagem, que pode ser proveniente de uma fonte natural servindo de bebedouro para os animais. No plano de fundo temos o que possivelmente seja o estábulo onde os animais são ordenhados. Há também uma série de árvores que dão um aspecto horizontal para a imagem.

No plano geral, o somatório da maneira e local como o fotógrafo se posiciona, fazendo a tomada fotográfica de um ponto mais elevado em relação às pessoas e aos animais. A maneira como as pessoas se posicionam e os animais se encontram, produz uma curiosa sensação de profundidade na imagem, fato que nos permite aproximá-la da imagem da criação

de porcos anteriormente apresentada. Como as duas imagens pertencem à coleção Família Beck, essas nos revelam a técnica dos fotógrafos que ajudaram a construir uma cultura fotográfica no sul do Brasil.

Imagem 40 – Criação de gado (Coleção Eduardo Jaunsem, 1940).

Esta imagem foi produzida em 1940 pelo fotógrafo Eduardo Jaunsem e apresenta como tema central a criação de gado. As rezes estão em um plano de detalhes, uma delas ocupa o centro da imagem, havendo também mais duas à esquerda e outra à direita da imagem. Os animais se encontram em uma pastagem composta que se estende ao longe, não sendo possível determinar onde ela termina.

O plano de fundo é composto pelo campo, alguns capões de mato e uma vegetação que pela distância do ponto em que o fotógrafo se encontra não é possível identificar qual a espécie.

A composição dessas imagens, como vem sendo ressaltado, auxilia na construção da representação do imigrante como um sujeito trabalhador, o modernizador desse espaço inculto, da imagem do colonus. A necessidade de ressaltar os frutos do trabalho do colono também se fazem presentes, muitos dos aspectos que constituem a cultura fotográfica a que

essas coleções pertencem contribuem para isso. Os fotógrafos também são imigrantes e buscam construir representações imagéticas dos seus pares, ressaltando suas virtudes, os frutos do seu trabalho e seu progresso, imagens em que a família, a terra, o trabalho, são aspectos centrais e que compõem parte da representação acerca do colono.

Para além disso, no entanto, as imagens fotográficas constituem-se num aparato de fixação da memória coletiva41 e, nesse sentido, sua importância é ressaltada na medida em que por uma reação físico-química fixam em planos uma memória que aqui nesse trabalho foi construída por sujeitos que ocuparam a região em um período específico do passado, aqui recortado entre os anos 1890-1950. Passam assim, para a posteridade, aspectos do cotidiano42 desses sujeitos que a documentação escrita não permite conhecermos, buscando ressaltar a ascensão do imigrante que “venceu” a partir do trabalho e prosperou no novo mundo.

Permite-nos também conhecer a relação dos sujeitos com o espaço em que viviam, com a terra e aqui o ponto mais importante de nosso trabalho – técnicas e tecnologias que são constituídas por uma construção sócio-cultural-ambiental. Ocorre então um processo híbrido que, relacionando-se com o meio-ambiente, concorre para a construção de uma cultura técnica agropecuária, utilizada no cotidiano desses sujeitos, os quais estão preservados enquanto memória dessa sociedade nas imagens fotográficas.

Agora, após compreender as nuances que a cultura técnica agropecuária de Ijuí (1890- 1950) apresentou, passaremos a compreender como essa moderna agropecuária foi constantemente “modernizada” e como ela teve, algumas vezes, de se render ao arcaico.

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LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 2003.