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FLUTUAÇÃO TERMINOLÓGICA: REFLEXO DE UMA SITUAÇÃO

PARTE I – O PROBLEMA E O MÉTODO

1. FLUTUAÇÃO TERMINOLÓGICA: REFLEXO DE UMA SITUAÇÃO

SITUAÇÃO

As dificuldades em delimitar o objecto de estudo começam logo por ser evidentes quando se inicia a procura de uma designação consensual, pois verifica-se que as designações sobre a investigação que se faz na área da educação variam notavelmente, consoante as épocas, os países e os autores, sendo raros – se alguns – os tempos e os lugares em que todos se referiam à mesma coisa, da mesma forma e tendo na ideia um referente de contornos idênticos.

Esta situação tem vindo a ser reconhecida em diversos escritos, em diversos tempos e lugares. Assim, ainda no início dos anos 40 do século XX, Abelson (1943:681) escreveu que “os esforços para definir a investigação educacional estão rodeados de dificuldades”. Mais de meio século volvido, as expressões encontradas para designar as tentativas de cientificação da educação revelam-se labirínticas, como que espelhando algumas facetas da área que, precisamente, querem significar.

Com referência a projectos de estudo da educação que, explicitamente, privilegiassem a qualidade científica, face a outras qualidades, foram encontradas várias expressões com ligações semânticas cruzadas: “investigação sobre educação”, “investigação em educação”, “investigação para a educação”, “investigação educativa”, “pedagogia”,

4 De resto, a situação descrita acima não é atributo exclusivo da educação, pois,

mesmo na generalidade das disciplinas já sedimentadas, das Ciências Naturais ou das Ciências Sociais, constata-se falta de consenso, até no que diz respeito à organização das disciplinas, havendo, por isso, diversas propostas de conjugação de esforços para a reorganização das mesmas (Cf. Wallerstein, 1996).

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“investigação pedagógica”, “ciência educacional”, “investigação educacional”, “investigação da educação”, “pedagogia experimental”, “estudos científicos em educação”, “ciência específica da educação”, “investigação experimental em educação”, “estudos educacionais”, “movimento de cientificação da educação”, “pesquisa em educação”, “ciências da educação”, “educiência”, “investigação em ciências da educação”, “ciência da educação”, “ciência pedagógica”, “ciências pedagógicas”, “cientificação da educação”, “pedido sistemático de cientificidade para a educação”, “movimento científico em educação”, “cientificidade dos discursos científicos”, entre outras.

Algumas destas designações tendem a ser mais próprias de determinadas épocas, ou a estar mais conotadas com certas tradições académicas, mas não é fácil circunscrevê-las rigidamente a uma determinada época, tradição ou contexto.

Assim, a designação “pedagogia experimental” (que, como se verá, significou, em determinada época e para alguns sectores, a pretensão de circunscrever toda a investigação relacionada com a educação merecedora de apelido científico), lê-se mais em textos de influência francófona, da primeira metade do século XX, mas não deixa de se encontrar ainda em textos da segunda metade do século, como comprovam os textos de Mialaret (1959) e de Léon et al (1980).

A expressão “pedagogia experimental” esteve em uso na Europa, mais ou menos até cerca da década de 40, entremeada por vezes com a designação “ciência da educação”; nos EUA prevaleciam as expressões “science of education” ou “scientific movement in education”. Às diferenças de nomenclatura entre a Europa e os EUA não correspondem diferenças relevantes nos objectos que significam, como se verá, já que, não sem alguns matizes, ambas as designações evidenciam os mesmos compromissos epistemológicos.

Em França, a expressão “ciências da educação” ganhou terreno a partir dos finais dos anos 60 do século XX, segundo Not (1984b). Este autor,

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depois de traçar a desqualificação do vocábulo “pedagogia”, enquanto ciência da educação, e da sua substituição pela expressão “ciências da educação”, na década de 60 do século XX, argumentou em favor da constituição da “ciência específica da educação”, a “educiência”.

A designação “investigação educacional”, ou expressões muito idênticas (“investigação em educação”, “investigação educativa”) começou por ser mais usada em países de influência anglo-saxónica (“educational research”, “education research”).

A rota da designação “investigação educacional” não foi linear, mesmo nos países anglo-saxónicos, como se pode presumir seguindo o seu percurso, numa perspectiva diacrónica de décadas, em obras de referência (enciclopédias de educação e de investigação educacional), nos EUA, como mostra o quadro que se segue.

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Quadro n.º 1 – Relação de entradas em algumas enciclopédias (norte- americanas) subordinadas ao tema geral ‘investigação educacional’, desde a

década de 40 do século XX Década Enciclopédia Edição Título da

entrada Autor 40 “Encyclopedia of modern education” H. Rivlin & H. Schueler (1943) “Educational research” H. Abelson (1943) 50 “Encyclopedia of educational research” W. Monroe (1956) “Science of education” B. O. Smith (1956) 60 “Encyclopedia of educational research” R. Ebel (1969) “Research in education” F. Kerlinger (1969) 80 “Encyclopedia of educational research” H. Mitzel (1982) Não consta nenhum título congénere ________ 90 “Encyclopedia of educational research” M. Atkin (1992) “History of educational research” R. Travers (1992)

Como se pode ver, a “Encyclopedia of educational research” exibe variações, feitas também de ausências e de regressos, que reflectem, certamente, algo sobre o estado da arte da época a que se reportam.

Na década de 70 do século XX, Clifford (1973:1) deu bem conta desta situação quando atribuiu sentidos mais profundos às mudanças de terminologia, como indicando mudanças no movimento científico da educação, ao registar a passagem da designação “ciência da educação” para “ciência educacional” e, finalmente, o que classifica de mais modesto, “investigação educacional” (“educational research”).

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Em Portugal, e apesar de uma certa tradição de ligação à linha francófona, a expressão “investigação educacional” tem vindo a ganhar terreno nas últimas décadas.

Contudo, neste país – e não obstante a expressão “investigação educacional” (ou as similares “investigação em educação”, “investigar em educação”) tender a ser cada vez mais usada – as expressões “ciência da educação” e “ciências da educação” continuam a estar no cerne de intensas reflexões (e nem sempre como sinónimos de “investigação educacional”), de formas que não colidem com o uso da expressão “investigação educacional”, como mostram os textos de A. Estrela (1992) ou de A. de Carvalho (1994).

O caso português, de que se fala a seguir, é ilustrativo do que se passa noutras latitudes.

Neste país, se aparenta existir algum consenso, ainda que tácito, é no reconhecimento das insuficiências, equívocos ou ambiguidades de qualquer uma daquelas expressões e seus significantes, como é visível através das expressões escolhidas por distintos autores para designar a área, que se afigura a todos os títulos nebulosa, de estudos científicos em educação.

Assim, A. Estrela (1992:12) referiu as “ciências que se dedicam ao estudo dos fenómenos da Educação (impropriamente designadas por Ciências da Educação)””, mostrando, desse modo, a sua discordância com esta designação e abrindo caminho para outras formulações. 5

Nóvoa (1996:89) usou a expressão “investigação educacional”, Alarcão (1996:82) a expressão “investigação em educação” e Campos

5 Estes exemplos sobre as preferências demonstradas por alguns autores não

significam que estes autores não tenham usado outras expressões análogas, nos escritos citados, ou noutros. O que se pretende deixar claro com esta breve enumeração é a variedade de designações encontrada, em textos recentes, em Portugal.

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(1995:9,107) utilizou as expressões “investigação em educação” e “investigação educacional.”

Lima (2003:7), por seu turno, recorreu à expressão “pesquisa em educação”, no editorial de revista de publicação recente cujo título – “Investigar em educação” – parece revelar uma posição de grande descomprometimento face à questão das designações.

Estas expressões parecem, de facto, implantadas em Portugal, como é atestado pelo trabalho de Oliveira, Pereira & Santiago (2004) sobre as grandes orientações, concepções e opções dos programas de metodologia de investigação da formação inicial de professores, neste país. De acordo com este trabalho, naqueles programas, verifica-se que os títulos das disciplinas apresentam maioritariamente enunciados afins da expressão “investigação educacional”.

Quanto a Correia (1998), recorreu preferencialmente às expressões “cientificação da educação”, “cientificidade educativa”, “movimento de cientificação da educação”, “‘démarches’ cientificizantes em educação” ou “pedido sistemático de cientificidade para a educação”, parecendo evitar as restantes supramencionadas, e mais comuns, expressões.

As preferências de Correia parecem espelhar um reconhecimento da notável variedade de versões dos percursos das tentativas de cientificação da educação, a par de uma atitude de aparente despreocupação com o estatuto dessa mesma cientificação. De resto, as expressões preferidas por Correia são idênticas às preferidas por Hadji & Baillé (2001:14) que organizaram análises em torno das possibilidades da “cientificidade dos discursos sobre a educação”.

Quanto a A. de Carvalho (1994), ora recorreu à expressão “investigação educacional”, ora recorreu à expressão “Ciências da Educação”, com isso tornando plausível a hipótese de ambas as expressões serem consideradas como significantes de um mesmo significado, não fora a ambiguidade, por quase todos reconhecida, que estes conceitos transportam.

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A. de Carvalho (1994:85) observou também que, enquanto em países como Portugal ou França se preferiu a expressão “Ciências da Educação”, em países Anglo-saxónicos dava-se preferência “à expressão ‘educational research’ com repercussões epistemológicas, à partida, bem mais vagas.”

De certa forma, pode dizer-se que A. Carvalho (1994) colocou em plano idêntico as expressões “investigação educacional” e “ciências da educação”, conceitos, a propósito dos quais, este autor abordou a confusão e o défice de credibilidade geralmente associados aos resultados ou às realizações que lhes são inerentes.

Para além da variedade de expressões para referir as sucessivas e diversificadas formas assumidas pelos “pedidos sistemáticos de cientificação da educação” (para utilizar a expressão de Correia, 1998), nem todos os autores coincidem nas definições que lhes fazem corresponder (nos casos em que as explicitam, pois casos há em que não se registam propriamente definições), mesmo para os anos mais recentes, ou seja, não tendo em conta as alterações explicadas pela passagem do tempo, pois, mesmo nos últimos anos, encontram-se definições que chegam a ser antagónicas ou, até, que revelam alguma singularidade.

A título de exemplo, Elliott (1994:34-38) justificou detalhadamente as diferenças entre “investigação educativa” e “investigação sobre a educação” estabelecendo que (e em resumo) a investigação educativa é fundamentalmente qualitativa, enquanto que a investigação sobre a educação é de recorte quantitativo.

Por seu lado, Berger (1993), referindo-se ao problema da identidade da investigação em educação, observou que a distinção mais sensível é entre “investigação sobre educação” e “investigação em educação.” Para Berger (1993:28), “a investigação sobre educação é constituída por um conjunto disperso de práticas investigativas e de conhecimentos”. Nela caberiam os trabalhos de sociologia ou psicologia da educação bem como as investigações que a medicina faz sobre, por exemplo, os tratamentos para indivíduos com

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dificuldades de aprendizagem ou certos programas construídos pelos informáticos. Quanto à

“investigação em Ciências da Educação, a investigação em educação está ... menos dependente das disciplinas já constituídas e define o seu objecto a partir do conjunto de práticas que dizem respeito ao acto educativo, sejam elas práticas familiares, práticas de ensino ou práticas institucionais.” (Berger, 1993:29)

Já Antoine Prost preferiu a expressão “investigação educacional”, como indicando toda a investigação que se faz sobre, em e para a educação e que engloba genericamente três categorias (A. de Carvalho, in AA. VV., 1989:62; Sequeira, 1989:5-6):

- “Investigação sobre educação”, que implica, principalmente, o olhar das ciências clássicas sobre a educação, por exemplo, os estudos da sociologia da educação, da psicologia da educação, da economia da educação ou da filosofia da educação;

- “Investigação em educação”, que tem a ver com a investigação que se faz na sala de aula ou outros contextos educativos, focando os vários processos (relativos, por exemplo, à planificação de aulas ou programas educativos, execução, reflexões), os alunos ou a avaliação;

- “Investigação para a educação”, que corresponde à investigação que tenta dar resposta a problemas pontuais, como por exemplo, a produção de materiais para a sala de aula ou para um programa educativo na televisão.

A designação “investigação educacional”, quer ela tenha uma abrangência tão ampla quanto o estipulado por Prost, quer não, parece, então, ser uma das designações mais frequentemente utilizadas na actualidade, mesmo quando os autores expõem algumas questões de fundo acerca das suas repercussões epistemológicas.

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Por exemplo, Lagemann (2000) optou por esta designação – “investigação educacional” – não sem reconhecer que permanece controverso se existe uma ciência da educação, e identificou várias denominações afins, como sejam “educational scholarship,” “educational study,” “education research”.

De resto, a própria obra de Lagemann é, ela própria, um exemplo expressivo daquela situação, pois, apesar de a autora ter afirmado, no corpo do texto, que preferia a designação “investigação educacional”, no título optou pelo vocábulo “science”, mas qualificado de “elusive” (elusivo, esquivo). Ou seja, o próprio título pode ser considerado como uma manifestação de uma dupla contradição, pois, não apenas não segue à risca a opção expressa pela autora no corpo do texto, como atribui a uma ciência um qualificativo espúrio, dado que o que menos se espera de uma ciência é seja elusiva.

Todavia, Lagemann (2000:x) conferiu um sentido mais profundo a esta situação quando comentou que “aquilo que aparenta ser uma terminologia imprecisa parece ajustar-se à situação” (do que se passa na área da investigação educacional), o que está em consonância com o adjectivo que escolheu para figurar no título da sua obra. Esta autora sintetizou assim, de forma certeira, uma situação de ambiguidade que desde há muito tempo acompanha a investigação educacional.

Deve ficar claro, por isso, que não se pode dizer que as expressões apresentadas como mais conotadas com determinadas épocas, contextos ou tradições académicas ou alguma vez o tivessem sido de formas exclusivas ou claramente demarcadas, pois, de quase todas as expressões se verificam ocorrências em distintas épocas e contextos e variando, até, dentro de escritos do mesmo autor, como se verá mais à frente.

Em síntese, a visível flutuação terminológica nas designações e nas definições, bem como o recurso a expressões compostas por múltiplos vocábulos, são o espelho das dificuldades maiores quanto à obtenção de consensos sobre a delimitação, a autonomia e a identidade do objecto de

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estudo que sempre acompanharam o movimento de cientificação da educação, sendo que, desde o seu início, em finais do século XIX, e à medida que o século XX avançava, se tornaram mais visíveis os sinais de que aumentou a percepção de tais dificuldades.

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