4 A LEGALIZAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO DA CANNABIS NO URUGUAI E NO COLORADO
4.1 RECONSTRUINDO A REALIDADE
4.2.3 Fluxo Político
O governo do partido Frente Ampla, de Mujica voltou-se para o problema da insegurança pública no país, colocando-o na agenda política, junto à possível solução de mais controle sobre o tráfico de drogas, ao tirar a cannabis do mercado ilegal. As forças políticas organizadas e as mudanças no governo foram decisivas para tal processo.
Um dos maiores obstáculos domésticos que a questão da legalização da cannabis enfrentou, no Uruguai, foi o clima nacional: não havia apoio público à possível legalização. Entre junho e julho de 2012, foi realizada uma pesquisa – pela empresa uruguaia de consultoria pública CIFRA –, na qual 66% da população se opôs a uma nova legislação sobre a cannabis. Entre o ano de aprovação da legislação (2013) e regulamentação (2014), foram realizadas mais pesquisas, e a desaprovação variou de 61% a 66% (RAMSEY; WALSH, 2015).
Apesar de aproximadamente ⅔ da população ser contra a medida, Ramsey e Walsh (2015) apontam que a atitude pública foi flexível. Isso se evidencia com uma pesquisa de outubro de 2013, realizada pela empresa de consultoria uruguaia Factum, na qual 78% dos entrevistados apontaram que, se tivessem escolha, prefeririam que os usuários de cannabis tivessem acesso a ela por meio do Estado, e apenas 5% defenderam que a cannabis continuasse sendo vendida no mercado ilegal (GARAT, 2015) – o que demonstra como a alternativa era relevante.
Com esses resultados, o presidente Mujica propôs períodos de debates no país. Em um livro publicado pela Junta Nacional de Drogas (JND) do Uruguai, junto à Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung do Uruguai (GARAT, 2015), afirma-se que, antes da maconha, o debate sobre esta deveria ser legalizado. O governo entendeu como necessário explicar a ideia que causava tanto espanto na população. Assim, houve um esforço consciente das esferas governamentais para fornecimento de informação à população, pois o governo não queria que a maconha fosse legalizada forçosamente, mas sim, que os uruguaios entendessem a política de liberalização.
Dessa forma, entre 2012 e 2013, especialistas no tema, deputados, senadores, ministros e membros da JND viajaram por todo o país, pelos pequenos povoados e cidades grandes. Nas ocasiões, realizaram seminários, cursos, conferências, debates e rodas de conversa para esclarecerem as dúvidas da população em relação à legalização, e entenderem os motivos pelos quais eram contrárias a tal política pública (GARAT, 2015).
Grupos religiosos e famílias questionavam o ''grupo de campanha'' sobre os possíveis resultados de tal política, temendo que o uso de drogas aumentasse, e por qual atividade o narcotráfico se dirigiria, uma vez que a maconha não seria mais domínio deste. Receavam o turismo da maconha, perguntando como a liberalização melhoraria a segurança pública, dentre outras questões que demonstravam o medo de como seria o futuro do país, com a maconha legalizada (GARAT, 2015). Todos pareciam não se convencerem de que a política pública de liberalização traria resultados mais positivos do que negativos ao país.
Como é colocado no livro '' El Camino'' (GARAT, 2015, p. 80), ao se referir sobre a opinião contrária da população, ''muitos poderiam supor essas coisas, outras ou nada. Quando a informação é escassa todo mito é mais eficaz''. Isso mostra como o preconceito com a planta está arraigado na sociedade, e que apenas com as mudanças que vêm acontecendo e com informação será possível mudar esse estigma.
O governo uruguaio entendeu que era necessário mudar as imagens estereotipadas em relação à maconha, e com sua política de campanha, buscou levar evidência empírica à população, estabelecendo ''um debate com perspectivas científicas e não morais'' (GARAT, 2015, p. 82). Nesse sentido, o governo uruguaio depreendeu enormes esforços para levar informação a respeito da cannabis à população. O argumento básico era de que a maconha existe, o mercado existe e não vai acabar, portanto, o melhor é que o Estado regule esse mercado e garanta acesso seguro à planta (GARAT, 2015).
Destaca-se uma das campanhas, a campanha “Regulação Responsável” (Regulación Responsable), coordenada com a ajuda de organizações não-governamentais de direitos humanos e de política de drogas. Esse movimento promoveu argumentos mais definidos e testados para a legalização da cannabis, “dando corpo” aos argumentos do governo pró-segurança (RAMSEY; WALSH, 2015).
A campanha deixou claro que a legislação: iria aumentar a segurança pública, ao separar os usuários de maconha dos usuários de drogas perigosas; melhoraria a segurança pública, ao permitir o acesso à maconha medicinal com controle de qualidade e ao investir a receita fiscal da maconha medicinal em educação, tratamento e prevenção de uso problemático de drogas; e, por fim, mostrou que a legalização resolveria a contradição do consumo legal, pois o acesso ilegal alimentava o tráfico e enriquecia o crime.
Os resultados das pesquisas subsequentes à campanha mostraram que o movimento não mudou a opinião da população que se opunha às medidas. Entretanto, a oposição não impediu que a cannabis se tornasse política pública no Uruguai, nem a aprovação da nova legislação e sua regulamentação. Destaca-se que o fator determinante para o fluxo político convergir, no Uruguai, foi o papel governamental, compreendido nas forças políticas organizadas e na mudança de governo com o início do mandato do Partido Frente Ampla, do presidente Mujica.
4.2.3.1 Forças Políticas Organizadas
Enquanto mais da metade da população se opunha à legalização da cannabis, a coalizão do Partido Frente Ampla negociava internamente para convencer os dissidentes do governo em relação à tal alternativa para o problema da insegurança pública no país, e para garantir uma votação majoritária nas instâncias governamentais e passar a legalização (BEWLEY-TAYLOR; BLICKMAN; JELSMA, 2014). O partido progressista obteve sucesso, e as propostas de uma nova legislação dentro do plano “Estratégia para vida e Coexistência” conseguiram apoio considerável dos legisladores do governo – até mesmo de alguns da oposição (RAMSEY; WALSH, 2015).
Segundo o relatório “The Rise and Decline of Cannabis Prohibition” (BEWLEY-TAYLOR; BLICKMAN; JELSMA, 2014), isso não teria acontecido sem o comprometimento de um grupo dedicado de parlamentares, de ativistas e da forte convicção do presidente e do seu principal orientador, Diego Cánepa, sobre essa alternativa para o problema da insegurança pública.
As forças políticas organizadas foram a principal razão para que a nova legislação passasse, no Congresso e na Câmara de Representantes 21, com votação
majoritária. Por fim, o Senado aprovou a lei, em dezembro de 2013 (BEWLEY-TAYLOR; BLICKMAN; JELSMA, 2014).
De maneira geral, as forças políticas e os grupos de interesse alinharam-se, em relação à legalização da cannabis, graças, principalmente, ao Partido de Mujica. Apesar de o clima nacional não ser favorável, a alternativa de uma nova legislação entrou para a agenda política do país, por ser relevante ao problema de insegurança pública. Portanto, considera-se que o ambiente político era propício, e que o consenso entre as forças políticas fez com que a cannabis como política pública fosse possível.
4.2.3.2 Mudanças no governo
Além das forças políticas organizadas, as mudanças no governo (com o início do mandato do Partido Frente Ampla) também foram fundamentais, dentro do fluxo político, para a abertura das janelas de oportunidade. Nota-se que os fluxos político e problema foram decisivos para que a cannabis se tornasse política pública no Uruguai, e para que fosse legalizada e regulamentada.
O processo contou com a influência de diversos atores e grupos de interesse, mas foi Mujica quem teve papel de destaque, tendo sido fundamental para colocar a legalização da cannabis na agenda política do país, com sua iniciativa e com seu posicionamento progressista.
Como destacado anteriormente, o melhor momento para mudanças na agenda política de um país é com o início de um governo. Com o início do mandato do Partido Frente Ampla, com presidência de Mujica, em 2010, foi quando a cannabis integrou a agenda do Uruguai, podendo tornar-se política pública. O novo governo, à época, logo identificou o problema da segurança pública no país e a possível solução de tirar a cannabis do mercado ilegal, que alimentava o crime. Já em 2010, começaram a surgir projetos de lei sobre autocultivo da planta.
Com o novo governo, houve mudança de atitude em relação à cannabis (pelo menos, na esfera governamental, apesar de as percepções da população
indicarem a relevância da alternativa de tirar a cannabis do tráfico). Isso, somado ao êxito do partido em obter maioria no Congresso, nas eleições de 2009, resultou no sucesso em colocar a legalização da cannabis na “mesa política”. Não demorou para o governo estar preenchido de legisladores abertos a acabar com a proibição da cannabis (RAMSEY; WALSH, 2015).
Por fim, com a definitiva “Estratégia pela vida e pela Coexistência”, empreendida por Mujica, por meio do discurso de garantir os direitos humanos e a segurança de seus habitantes, o país reconheceu a necessidade de tirar a cannabis do tráfico, tornando-a legal. Em dezembro de 2013, estava a aprovada a Lei n° 19.172/2013, e um ano depois (dezembro de 2014), era aprovado o Decreto n° 372/014, que regulamenta a referida lei.