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Fora da clínica: etnografando o(s) sujeito(s) e seu(s) mundo(s)

Capítulo I: Contexto da pesquisa: percursos etnográficos e teórico-metodológicos

1.1.2. Fora da clínica: etnografando o(s) sujeito(s) e seu(s) mundo(s)

Fora da clínica, utilizei a entrevista qualitativa como forma privilegiada para a coleta de dados, visando à reconstituição das trajetórias biográficas (MONTAGNER, 2007) das participantes das entrevistas. Esse recurso metodológico tornou possível perceber o modo como os/as participantes respondiam a questões aparentemente semelhantes em situações sociais distintas do espaço institucional da clínica, tornando um pouco mais factível a consecução do segundo objetivo. Oportunas são as palavras de Bourdieu, sobretudo, quando o sociólogo francês fala da importância do contexto em que as ações do sujeito se desenrolam:

como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quando tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social. (BOURDIEU, 2002, pp. 189-190).

A investigação das histórias de vidas das participantes da entrevista tentou seguir algumas das considerações críticas elaboradas por Bourdieu. Não se buscou “reconstruir um passado contínuo sem ruptura alguma. Pelo contrário, reconstruir as histórias de vida em suas descontinuidades e rupturas, tanto ao nível da vida individual como no nível da vida coletiva”

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(MARRE, 1991, p. 91). Rememorar, como já bem lembrava Maurice Halbwachs (2006), não é reviver integralmente o passado, de modo cronologicamente ordenado, mas reconstituí-lo a partir de interesses e valores instituídos socialmente. Além disso, toda história é, já e antes de tudo, um relato, uma reconfiguração, uma narração, e, portanto, ipso facto, uma seleção, uma representação e um modelo, com tudo que isso pode supor em termos de escolha, nos seus acontecimentos apresentados ou calados e nos elos estabelecidos como nas conclusões a que se chega. (BOUILLOUD, 2009, p. 50). As narrativas são, portanto, materiais a partir dos quais os indivíduos moldam suas identidades (GAGNE & TEWBSBURY, 1997). Ou, para dizê-lo na fórmula de Jacques Rhéaume (2009), o relato de vida individual mobiliza e implica a pessoa no seu projeto de vida, efeito identificado como eficácia narrativa do relato sobre o narrador.

Segundo Bouilloud (2009), nas ciências sociais, os relatos de vida, apesar dos numerosos trabalhos, tanto nos Estados Unidos, na tradição da escola de Chicago, quanto na Europa, são frequentemente percebidos como uma prática perigosa em termos de objetividade científica, susceptível de confundir as fronteiras entre psicologia e sociologia. A despeito disso, o sociólogo aposta na possibilidade aberta por Thomas e Znaniecki - e para uma boa parte da tradição sociológica de Chicago -, para quem não basta conhecer as condições objetivas de vida dos atores sociais, sendo também indispensável compreender o sentido que eles dão ao seu meio, sua situação ou suas ações, o que não pode ser bem levada senão no quadro de um relato de vida ou de uma autobiografia. Por isso, convém dizer, a coleta de relatos de vida, desde que se respeitem critérios metodológicos - como a variação da amostra e a saturação progressiva do modelo elaborado pelo pesquisador - pode, efetivamente, dar conta da realidade vivida de um mundo social ou de uma categoria de situação e permite coletar dados que jamais poderiam ser identificados por enquete via questionários (NIEWIADOMSKI; TAKEUTI, 2009, p. 15).

Foram entrevistadas 16 (dezesseis) participantes que se autodenominavam transexuais- mulheres. Infelizmente, a frequência dos transexuais-homens era baixa. Alguns deles só foram vistos uma ou duas vezes durante o período de campo, tornando difícil uma aproximação. Não foi possível entrevistá-los, portanto. Quando suas falas são recuperadas, estas se referem aos encontros terapêuticos coletivos. As pessoas escolhidas para a entrevista foram aquelas que faziam parte do programa de acesso à cirurgia de transgenitalização no HUC. Na reconstituição das trajetórias biográficas, explorei também o que as participantes

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pensavam sobre certas falas proferidas por outro/a participante em algum encontro terapêutico específico, de modo a confirmar ou refutar hipóteses em processo de gestação. Há, portanto, nas entrevistas perguntas que não se repetiram, mas no geral todas as entrevistadas foram convidadas a falar dos temas mais recorrentes dentro do processo terapêutico (transexualidade, cirurgia, corpo, relações afetivo-sexuais, trabalho, família, preconceito, prazer). Para colocar nas palavras do sociólogo Daniel Bertaux (2009), em certos momentos passei de uma utilização extensiva para uma utilização intensiva dos dados, ou seja, de uma utilização inicial cujo objetivo era a abrangência máxima de aspectos da vida das entrevistadas para uma exploração mais centrada em determinado aspecto.

Algumas entrevistas foram realizadas no próprio ambiente do HUC. No entanto, sempre que possível optei por realizá-las em outros espaços para que as entrevistadas pudessem ficar mais à vontade. Afinal, certos pesquisadores têm apontado que os/as transexuais, geralmente, apresentam apenas certos aspectos de suas vidas quando em terapia (BOLIN, 1988), sendo bastante comum a reprodução das “narrativas clássicas sobre transexualidade” com vistas à adequação ao papel institucional que lhes é imposto (NAMASTE, 2000). A maioria delas foi realizada em suas casas/apartamentos, em parques, shoppings etc. As entrevistas duraram em média 60 (sessenta) minutos, estendendo para mais ou para menos a depender das interações. A reconstituição das trajetórias biográficas das entrevistadas viabilizou a percepção de como os sujeitos em questão agiam em contextos pragmáticos específicos. Viabilizou, em outras palavras, o exercício da sociologia como uma ciência cujo objetivo é traçar as associações (LATOUR, 2005, p. 5). E esse “traçar associações” tornou exequível perceber como a construção das identidades de gênero é indissociável de uma relação com o mundo humano e não-humano. A exploração das trajetórias biográficas propiciou ainda a comparação de comportamentos dentro da clínica e fora dela, entrevendo de modo mais explícito os regimes de subjetivação da clínica também abstraídos a partir da observação participante.

No rol dos documentos necessários para aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa estava o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O modelo enviado ao Comitê foi aprovado com a ressalva da importância da não utilização de uma linguagem excessivamente técnica. A despeito disso, optei por não apresentá-lo às entrevistadas em sua forma escrita, uma vez que a exigência de assinatura e de registro do número de documentos de identificação pessoal soa um tanto invasiva, sobretudo, quando

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apresentado antes da entrevista. Preferi relatar, oralmente, às participantes da entrevista o teor do TCLE, assegurando-lhe, portanto, sigilo dos dados e da identidade delas, bem como o fato de que os dados de pesquisa seriam utilizados apenas para fins acadêmicos etc. Todas as entrevistadas autorizaram a gravação de suas falas. Recorri ainda, na medida do possível, a conversas informais com algumas das participantes, em especial antes do início da terapia, quando ainda estávamos esperando a chegada do psicólogo responsável pelo encontro terapêutico. Essas “situações informais” não foram gravadas.

As entrevistas às transexuais foram, pelo menos em parte, uma espécie de etnografia daquilo que Erving Goffman designa de “carreira do paciente”, “qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida” (GOFFMAN, 2008, p. 111). A carreira se refere ao período psicoterápico a que a participante esteve sob os cuidados da autoridade terapêutica/pericial do HUC. A entrevista foi realizada, de modo a entender a “seqüência regular de mudanças que a carreira provoca no eu da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros” (GOFFMAN, 1970, p. 112), a dialética entre os “ajustamentos primários” - viver na organização de acordo com o que está programado e “ajustamentos secundários” - formas pelas quais “o indivíduo se isola do papel e do eu que a instituição admite para ele”. (GOFFMAN, 1970, p. 112). As entrevistas quando voltadas para a compreensão do contexto institucional não pretenderam, portanto, apreender as mudanças “reais” nesses sujeitos, mas “os jogos de verdade”, os saberes e poderes que regulam as práticas e as formas pelas quais o indivíduo pode e deve se reconhecer como indivíduo de determinada sexualidade, os “jogos entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, (...), como podendo e devendo ser pensado.” (FOUCAULT, 1984, p. 12).

Além das mulheres transexuais, foi entrevistado o terapeuta responsável pelos encontros analíticos. As perguntas se dirigiam explicitamente para os temas amplamente debatidos nos encontros terapêuticos. Explorei saber como e por que trabalhar esses temas com os/as participantes dos encontros terapêuticos. A psicóloga não foi entrevistada apesar de ter havido muitas conversas informais durante toda a pesquisa de campo. As tentativas de realização de entrevista foram frustradas sob a alegação de falta de tempo por parte dela. As conversas informais e rápidas tornaram possível o aprofundamento de algumas hipóteses formuladas ao longo da pesquisa. Por fim, cumpre dizer, toda a pesquisa aqui proposta tem cunho qualitativo. A pesquisa qualitativa, utilizada na maioria das vezes como alternativa às formas de quantificação, se orienta para aquilo cuja mensuração experimental não pode ser

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realizada em termos de quantidade, volume, intensidade e/ou frequência. Trata-se, em outras palavras, de uma via de acesso a dimensões de objeto inacessíveis caso se permaneça na perspectiva quantitativa (GOLDENBERG, 1999, p. 16).

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CAPÍTULO II – O NASCIMENTO DA CLÍNICA MODERNA:

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