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CAPÍTULO 2 O ESTADO BRASILEIRO E A PROTEÇÃO ASSISTENCIAL

2.1 A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

Elemento determinante na história do Brasil e que influencia muitas das relações econômicas e sociais ainda hoje estabelecidas no referido território foi o processo de expansão territorial e econômico realizada pela Europa desde o século XV - por influência do liberalismo – a partir do que o país se constituiu como uma colônia de Portugal.

A colonização portuguesa do Brasil se deu diante da busca pela expansão mercantil. É o que aponta Huberman (1959), ao discorrer que no século XVI, ocorreu um processo de estímulo a navegação e busca de expansão de áreas voltadas para a exploração de matérias primas, bem como, de possíveis mercados para a comercialização de produtos fabris.

O ouro e a prata expressavam o poder econômico de cada país no referido período, diante do que, Huberman (1959) descreve como as metrópoles passaram a definir estratégias protecionistas que acabaram por afetar diretamente as colônias.

Fazia parte do pensamento mercantilista a crença de que as colônias eram outra fonte de renda para a metrópole. Baixaram-se portanto, leis proibindo aos colonos iniciar qualquer indústria que pudesse competir com a indústria da metrópole. Os colonos não podiam fabricar gorros, chapéus, ou artigos de lã e ferro. A matéria-prima desses produtos existia na América, mas os colonos deviam mandá-la para a Inglaterra, onde seria beneficiada, e

comprá-la de volta na forma de produtos acabados. (HUBERMAN, 1959, p. 139).

A análise de Huberman (1959) permite relacionar com o nível da dependência criada nas relações coloniais no Brasil. Determinou-se a condição de mercado consumidor de bens produzidos em outros países35, bem como, de fornecedor de

matéria prima – inclusive de terra e de água36 - para regiões em que se permitia o

avanço na implementação de unidades industriais cada vez mais desenvolvidas tecnologicamente37.

A história da colonização no Brasil durou 322 anos (1500-1822). Já no início deste período, somente 30 anos após a sua “descoberta” é dado início a escravidão no país. A população indígena que não foi dizimada, foi submetida ao trabalho e exploração pelo colonizador. O estupro de mulheres indígenas e negras era uma regra no período da colonização – não havia mulheres brancas na colônia, assim surge também o problema da infância no país, pois conforme Costa e Moreira (2011, p. 57), “Do ponto de vista da infância, ser criança índia, negra ou branca definia, de partida, seu espaço na sociedade e sua condição de vida.”

Inicia-se na sequencia um longo processo de escravidão da população africana, “A escravidão entre nós não teve outra fonte neste século senão o comércio de africanos [...]. Os escravos são os próprios africanos importados.” (NABUCO, 2003, p. 89), o que durou aproximadamente 358 anos (1530-1888).

Conforme Nabuco (2003, p.94), “[...] até 1851 não menos de um milhão de africanos foram lançados em nossas senzalas. A cifra de cinquenta mil por ano não é exagerada.” estabelecendo-se através da exploração da mão de obra escrava nas terras brasileiras, a constituição de relações econômicas permeadas por muita violência e que foram determinantes para a origem da desigualdade social entre as classes no Brasil.

Conforme Oliveira (2012, p. 52), “Os descendentes das sesmarias e os descendentes das senzalas ocupam espaços sociais diferenciados ao longo dos séculos. A questão da desigualdade social é uma questão histórica no Brasil”, pois

35 Somente em 1808 com a chegada da Corte no Brasil, é que Dom João VI autorizou o início de

funcionamento de indústrias no país. (GOMES, 2007).

36 Carmo et al. (2007) descreve o conceito de água virtual e aponta que 60% do consumo da água no

país é realizado pela agricultura e que a maior parte deste consumo está voltado para a produção da soja e da carne bovina.

37 Indicadores da “Balança Comercial Brasileira” referente ao período de janeiro a março de 2017,

não permitiu-se aos escravos sequer a posse da sua força de trabalho, bem como, não tinham direito de constituição de família: “O direito de constituir família era restrito aos colonizadores, pois o negro na condição de escravo era objeto do seu senhor, não tendo nenhum poder sobre os seus filhos, considerados como um bem do senhor.” (COSTA; MOREIRA, 2011, p. 57), o que também impedia qualquer forma de manutenção de vínculos de pertencimento e proteção primária “[...] a vida das crianças revelava toda perversidade de abandono material e afetivo.” (COSTA; MOREIRA, 2011, p. 57).

As restritas ações que foram implementadas no período colonial para o atendimento às crianças e adolescentes ocorreram por intermédio das Igrejas e das Santas Casas, que, imbuídas do espírito “caritativo” propunham ações pontuais e isoladas voltadas para a acolhida de crianças e adolescentes brancas que eram “abandonadas” nas Rodas dos Expostos, já que as crianças e adolescentes negras constituíam-se como propriedade das elites brasileiras, a referida prática teria iniciado nas primeiras décadas do século XVIII, perdurando por mais de duzentos anos. (COSTA; MOREIRA, 2011).

As condições mencionadas foram vivenciadas pelas famílias, crianças e adolescentes negras e indígenas no período colonial e foram mantidas com a chegada da Coroa portuguesa no Brasil em 1808 e mesmo após a Independência do país ocorrida em 1822.

A vinda da Coroa se deu em meio ao período de guerras vivenciados na Europa e a invasão de Napoleão Bonaparte a Portugal. Era a Revolução Francesa com os seus ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, ecoando pelo mundo os seus princípios mercantis e liberais.

A coroa permanece no Brasil durante 13 anos (1808-1821), deixando seu filho D. Pedro que em 1822 proclama a “Independência” do país com relação a Portugal e instaura o Império.

A “Independência38” é apontada por Fernandes (1975) como a conquista da

condição de Estado-Nação no Brasil, no entanto, sem alterar as relações econômicas e sociais aqui presentes, mantendo-se desta forma as castas e

38A Independência foi apontada por Fernandes (2006) como uma escolha para a coroa entre

estamentos39 que permitiam a continuidade de existência dos senhores rurais e da

aristocracia agrária no país.

Graças e através da Independência, nação e Estado Nacional independente passaram a ser ‘meios’ para a burocratização da dominação patrimonialista [….] a preservação de velhas estruturas e o privilegiamento dos estamentos senhoriais possuíam na sociedade da época, um sentido revolucionário. Eram condições para o rompimento com o estatuto colonial, e ao mesmo tempo, para erigir-se a construção da ordem social a partir da herança colonial, ou seja, de uma ‘revolução dentro da ordem’. (FERNANDES, 2006, p. 76).

A manutenção da ordem que representa a preservação do instituído e a proteção ao patrimônio, permeia toda a história da constituição do país, que em cada “revolução” vivenciada, em cada alteração da forma de organização do Estado, por mais representativa que fosse, mantinha a condição anteriormente instituída, garantindo-se desta forma a manutenção da concentração de poder econômico e político. É o que aponta Fernandes (2006), ao descrever como ocorreu após a Independência a eliminação da expropriação colonial e a reorganização do excedente internamente, bem como, a concentração do poder político entre as elites nativas.

Apesar do significado da Independência para a história do país, o processo não ocasionou uma cisão, um rompimento com as formas conservadoras de exploração econômica e concentração do poder político, o que foi evidenciado através da manutenção da escravidão e conforme apontado por Gomes (2010) através da Constituição de 1824, que tendo sido elaborada após o fechamento da constituinte por Dom Pedro, teve suas previsões consideradas bastante avançadas para o período, no entanto “[...] excluía dos direitos políticos os escravos, os índios, as mulheres, os analfabetos, os menores de 25 anos e os pobres em geral.” (GOMES, 2010, p. 219). Ou seja, direitos avançados para a minoria da população.

A vinda da coroa representou também o estabelecimento de relações comerciais espoliativas da Inglaterra40 ao Brasil, o que se deu devido ao apoio e

proteção que o rei recebeu na sua vinda ao país (GOMES, 2007).

A partir da proclamada “Independência” o país já apresentava uma dívida financeira com Portugal e com a Inglaterra, que apesar de todo o processo

39Apontado por Faoro (1979) como definição de classes representada pela posição que os indivíduos

ocupam a partir do seu nascimento e família de origem e as relações disto com os cargos públicos.

40“[...] reino do café, em expansão exportadora na primeira metade do século XIX e no fastígio nos

outros cinquenta anos, seria o negócio do inglês e a pobreza do povo brasileiro.” (FAORO, 1979, p. 403).

exploratório empreendido, permaneceu em “déficit”, o que também demarca a história das relações do Brasil no mercado mundial interferindo de maneira contundente contemporaneamente nas relações econômicas e políticas adotadas internamente.

O “déficit” mencionado pode ser identificado também no processo de abolição da escravidão, onde as medidas adotadas nas primeiras Leis voltadas para a libertação de crianças e idosos escravos - Lei 2.040 de 28/09/1871, a “Lei do Ventre Livre”, em que as crianças, filhos de escravos nascidas a partir dessa data estariam livres, destacando-se que as mães continuavam a ser escravas, negando-se o direito à convivência familiar.

A Lei 3.270 de 1885, Lei dos sexagenários, que previa a libertação de pessoas com mais de 60 anos – já estabeleciam a indenização dos donos dos escravos considerando o “prejuízo” perante o investimento realizado, prevendo-se inclusive no caso da “Lei do Ventre Livre”, que antes de ser liberto o escravo trabalhasse até os 21 anos de idade.

A abolição da escravidão ocorrido no Brasil em 1888, nas vésperas da Proclamação da República, se deu 66 anos após a Independência41, e quando isto

ocorreu, a população ficou dividida entre o “povo” e a “plebe”. Sendo que a plebe era constituída pelos libertos e marginais que não faziam parte do povo e desta forma estavam excluídos do conceito de nação. (FERNANDES, 1975).

Foi nas cidades de alguma densidade e nas quais os círculos ‘burgueses’ possuíam alguma vitalidade que surgiam as primeiras tentativas de desaprovação ostensiva e sistemática das ‘desumanidades’ dos senhores ou de seus prepostos [...] desses núcleos é que partiu o impulso que transformaria o antiescravismo e o abolicionismo numa revolução social dos ‘brancos’ e para os ‘brancos’: combatia-se, assim, não a escravidão em si mesma, porém, o que ela representava como anomalia, numa sociedade que extinguira o estatuto colonial, pretendia organizar-se como nação, e procurava, por todos os meios, expandir internamente a economia de mercado. (FERNANDES, 2006, p. 35-36).

Os núcleos mencionados eram constituídos no Brasil pelos ideólogos do liberalismo42, que passaram a fazer oposição ao poder estamental, constituindo a

ideologia da emancipação nacional que se apresentou de forma revolucionária, mas

41“Já no Brasil independente, mais de um milhão de africanos foram desembarcados no país,

condição única em todo o continente americano. Os elementos estruturais da desigualdade se mantiveram e até se ampliaram na nova etapa do Estado Nacional.” (OLIVEIRA, 2012, p. 63).

42“Dele saem os defensores mais ardorosos da ‘liberdade’, da ‘justiça’, da ‘nacionalidade’ e do

‘progresso’, os campeões da luta contra o escravismo e os primeiros advogados convictos da ‘causa democrática’”. (FERNANDES, 2006, p. 61).

não colocou em questionamento a manutenção dos privilégios sociais e políticos nas mãos das classes dominantes43 (FERNANDES, 2006). O fato é que a ordem

escravocrata não era mais condizente com a ordem econômica capitalista que se pretendia estabelecer no país.

Fernandes apresenta três conclusões analíticas com relação à ideologia liberal no Brasil: As motivações ideológicas do liberalismo foram de cunho econômico; As motivações utópicas do liberalismo foram de cunho político e tanto os conservadores como os liberais realizaram adaptações voltadas para “[...] alcançar e em manter, assim, o monopólio social do poder.” (FERNANDES, 2006, p. 71).

Após a abolição da escravidão ocorreu um abandono dos “libertos” a própria sorte, diante da ausência de medidas públicas de proteção visando reverter as desigualdades estruturalmente consolidadas, ao mesmo tempo em que se intensificou a chegada dos imigrantes no Brasil – iniciado em 1870 - e esses passam a constituir a mão de obra assalariada no país.

Os imigrantes também enfrentaram adversidades em meio as condições degradantes de vida e de trabalho, no entanto, o novo momento político brasileiro permitiu que se constituíssem como agentes protagonistas no processo de expansão do capitalismo.

Foi garantido o direito à manutenção das relações familiares e constituição de vínculos comunitários aos imigrantes, o que possibilitou o fortalecimento de redes primárias de proteção, que foram utilizadas inclusive para a organização das formas de produção de muitos destes. (MARTINS, 1989), o que conforme Costa e Moreira (2011, p. 59), contribuiu para “uma valorização da cultura do trabalho de crianças e adolescentes, tanto junto à família, no trabalho agrícola como também na indústria e nos serviços domésticos”, consolidando um grave quadro de exploração do trabalho infantil, que já era regra com relação as crianças escravas, e que se deu pelo contexto social e econômico. Apesar dos avanços na legislação atual a questão do trabalho infantil ainda mantém-se presente e é endossado fortemente pelo fator cultural mencionado pelas autoras.

43“O que ocorreu com o Estado Nacional independente é que ele era liberal somente em seus

fundamentos formais. Na prática, ele era instrumento de dominação patrimonialista no nível político. [...] tratava-se de um Estado Nacional liberal, e nesse sentido ‘democrático’ e ‘moderno’”. (FERNANDES, 2006, p. 90).

Fernandes (2006) aponta as funções sociais do imigrante para constituição da economia monetária e de mercado no Brasil: agente original do trabalho livre; “[...] preencheu a função de transferir para as diferentes camadas da plebe rural ou urbana expectativas e padrões de consumo típicos de uma ‘sociedade moderna’ e ‘democrática.” (FERNANDES, 2006, p. 169); Contribuiu para o desenvolvimento interno do capitalismo, influenciou a produção destinada ao consumo interno com modelo de desenvolvimento auto-sustentado.

Ressalta-se que nos diversos momentos mencionados da história do Brasil as violações a que foram submetidos os escravos e indígenas tiveram conforme já mencionado, impactos diferenciados diante das crianças e adolescentes, o que também se deu com relação às mulheres, que foram subjugadas pela condição de ser mulher, e que nas diversas fases da vida, além da exposição a todas as formas de violência e crueldade já mencionadas, sofreram também violência e exploração sexual, além da exploração de funções especificamente atribuídas de trabalho como a amamentação e cuidado dos filhos dos “senhores” e demais atividades domésticas.

Conforme Faoro44 (1979) este processo contínuo de exploração permitiu a

constituição de latifúndios, o estabelecimento das relações patrimoniais, a escassez de mercado interno – como consequência inicial da ausência do trabalho assalariado e da importação de produtos manufaturados, especialmente ingleses - a condição de dependência devido ao envio dos excedentes para o mercado externo e ausência de investimento público voltado para o atendimento das demandas básicas da população.

Características que vão constituindo a sociedade no Brasil, entre os burgueses com um mundo de privilégios – considerados naturais e eternos – concentração de renda, status e poder, e entre os trabalhadores a vivência de uma condição de desigualdade econômica, social e política (FERNANDES, 1975).

O cenário mencionado vem determinando um impacto perverso para as crianças e adolescentes no país, que caracterizam de maneira exponencial o retrato de todas as formas de violência, exploração e descaso proposital que constitui a formação do Estado brasileiro, certamente o resultado não poderia ser diferente, o

44Numa perspectiva weberiana, mas que explica traços particulares do Estado brasileiro – uma vez

que precisa ser reconhecido como determinante para a vivência de situações de violação de direitos, violência e pobreza que demandam a alteração da condição estrutural e a presença de políticas públicas garantidora de direitos visando romper com este ciclo que já dura mais de cinco séculos da história do país.

2.2 O PERÍODO REPUBLICANO E A SOCIEDADE SALARIAL NO BRASIL: