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Formação do movimento de bairro

No documento Questoes Urbanas e Racismo (páginas 187-200)

Nesse contexto, a Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gam- boa de Baixo foi fundada em 07 de outubro de 1992. Essa organização foi resul- tado direto da Associação de Mulheres, anterior à de moradoras e moradores, que mobilizou as mulheres do local durante os anos 1980 para a demanda de serviços sociais, como acompanhamento pré-natal e vale-leite, e para o planejamento de eventos culturais que incluíam a celebração do dia das mães e das crianças. Du- rante o surto de cólera ocorrido em 1992 na Bahia, o qual, para citar só a Gam- boa de Baixo, causou muitas mortes, algumas mulheres montaram a associação de bairro para instituir uma gestão coletiva e representação legal da comunidade em suas demandas por recursos vitais, como água corrente potável e melhoria no sistema de esgoto. Entre as vítimas do cólera, estava o pai da primeira presiden- te da associação, e ele se chamava Gegê, que passou a ser o nome, também, da organização. A associação de bairro da Gamboa de Baixo se formou em torno a questões de vida e sobrevivência à morte7. A associação também lutou para des-

construir a imagem pública da Gamboa de Baixo como um espaço recipiente de cólera. Em geral, a mídia reportava as comunidades negras urbanas e rurais na

7 Em São Paulo, Teresa Caldeira (2000, p. 63) documentou alta no número de associações de mo- radoras e moradores para “obter melhores serviços e infraestrutura”. Os movimentos sociais de vizinhança surgem de uma noção da deterioração e declínio dos recursos públicos nas regiões pobres da cidade.

whom the organization was named. The neighborhood association in Gamboa de Baixo began around issues of life and death survival.5 The association also strug-

gled to deconstruct the public image of Gamboa de Baixo as a spatial container of cholera. In general, the media portrayed black urban and rural communities throughout Bahia as being the loci of the disease, which presented a health threat to the nearby affluent neighborhoods such as Vitória and Campo Grande. During frequent visits to local newspapers and radio stations, the main goal of the neigh- borhood association was to improve their material conditions as well as to dispel public representations of their community as unhealthy, unsafe, and dangerous to the public. An important act of contestation was their demand for the state to test the natural water sources and the public water pipes in their neighborhood. Testing proved that the victims of cholera had died from contaminated water provided by the city and not from the neighborhood’s natural water fountains.

Direct action protest has proven to be the most effective tactic of politi- cal struggle for Gamboa de Baixo community activists. At public meetings and street protests, they have engaged in confrontational politics with city officials. One important strategy for activism has been the closing of the major avenue that passes above the community, the Contorno Avenue. In May of last year, after unsuccessful requests for the water company to complete the installation of running water and sewer systems and for the Bahian development agency to repair poorly constructed homes in the neighborhood, they blocked traffic for several hours during the morning rush hour. In other instances, as described in the introduction, they have protested in front of the agencies themselves. The Contorno Avenue as a site of public protest is significant, because it divides the Gamboa neighborhood between poor and working class Gamboa de Baixo (Low- er Gamboa) and middle-class Gamboa de Cima (Upper Gamboa).

This spatial separation has upheld and reinforced hierarchies of racial, social, and economic differences between the two neighborhoods. The construc- tion of the Contorno Avenue in 1961 constrained the previously unrestricted movement of ideas, labor, and goods. Only in the mid-1990s, as a result of orga- nized struggle, did the municipal government construct a concrete staircase that

5 In São Paulo, Teresa Caldeira (2000, p. 63) documented the rise in the numbers of neighborhood associations to “obtain better services and infrastructure”. Social movements in neighborhoods stem from an awareness of the deterioration and decline of public resources in poor regions of the city.

Bahia como focos da doença, as quais representavam uma ameaça à saúde dos vizinhos prósperos, como Vitória e Campo Grande. Durante as frequentes visitas aos jornais e estações de rádio locais, o objetivo principal da associação de bairro era melhorar suas condições materiais e dirimir as representações públicas que as- sociavam a comunidade a insalubridade, insegurança e perigo às pessoas. Um ato importante de contestação foi a demanda da associação para que o estado testasse as fontes naturais e o encanamento público de água da vizinhança. A testagem comprovou que as vítimas do cólera haviam morrido devido à água contaminada proveniente da cidade, e não das fontes naturais de água da comunidade.

Protestos de ação direta provaram ser a tática de luta política mais efetiva para as(os) ativistas da comunidade da Gamboa de Baixo. Em reuniões públicas e protestos de rua, elas e eles se confrontaram politicamente com as autoridades da cidade. Uma estratégia importante ao ativismo tem sido a interdição da avenida principal que passa acima da comunidade, a av. Contorno. Em maio de 2008, após várias solicitações não respondidas para que a companhia de água termi- nasse a instalação dos sistemas de água corrente e esgoto, e também para que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia reformasse casas mal construí- das na vizinhança, a comunidade bloqueou o tráfego por várias horas durante o período de pico matutino. Em outras ocorrências, como descrito na introdução, elas mesmas protestaram em frente às repartições. Como lugar de protesto, a av. Contorno é significativa, pois divide a vizinhança da Gamboa entre a Gamboa de Baixo pobre e operária, e a Gamboa de Cima classe média.

Essa separação espacial tem sustentado e reforçado as hierarquias das di- ferenças raciais, sociais e econômicas entre ambos os bairros. A construção da av. Contorno em 1961 constrangeu o que era antes uma movimentação irrestrita de ideias, trabalho e bens. Somente em meados dos 1990, como resultado de luta organizada, o governo municipal construiu uma escada de concreto que forneceu acesso da Gamboa de Baixo ao resto da cidade. Muitas e muitos residentes se lembram da dificuldade de subir as precárias escadas de madeira para chegar à av. Contorno. Por muitos anos, mudanças de infraestrutura na cidade separaram e isolaram a Gamboa de Baixo como os lá de baixo. Como um documento da associação de bairro da Gamboa de Baixo argumenta:

Essa não é a primeira vez que o governo intervém em nossa área, sempre com consequências desastrosas para as comunidades locais. Na década de 1970, a construção da Avenida Contorno trouxe uma série de danos para nossas

provided access from Gamboa de Baixo to the rest of the city. Most residents still remember the difficulty of climbing the shaky wooden stairs to reach the Con- torno Avenue. For many years, infrastructural changes within the city separated and isolated them as those below. As a Gamboa de Baixo neighborhood associa- tion document states:

This is not the first time that the government intervenes in our area, always with disastrous consequences for the local communities. In the 1970s, the construction of the Contorno Avenue brought a series of damages to our communities, standing out among them, the barring of access to the community Unhão, with the closing of the road Castelo Branco, that has its opening at the present-day Radio Bahia, in Gamboa de Cima, and that continues along the upper part of the community near the arcs. This action restricted our access to a rustic route of stone and clay that begins right after the entrance of Solar do Unhão and that, due to its precariousness, caused our relative isolation and the entrance of some marginais (criminals), turning the area into a poorly viewed neighborhood discriminated against by the rest of the city’s inhabitants (Neighborhood Association Communiqué, 1996).

Former activist, Elena, who has always lived below the Avenue points out that some women work as domestics in Gamboa de Cima and nearby neighbor- hoods such as Vitória that literally look down on their homes in Gamboa de Baixo. Nearly 80 percent of females (including adults and adolescents) in Gam- boa de Baixo are domestic workers. Even today, identifying Gamboa de Baixo as your place of residence might prevent you from getting a job, since as Elena claims, some employers “still think we’re all thieves” (Personal communication, 2001). Sentiments of inferiority and superiority have run deep since the Con- torno Avenue separation of the Gamboa neighborhoods, demonstrating that the construction project had more than symbolic significance. In stark difference from the flourishing city-center above the Avenue, the public relegates the com- munity literally living below the asphalt to a cluster of undesirables who linger behind in both space and time.

The Gamboa de Baixo protests on the Contorno Avenue transform the ways in which we conceptualize black mobilization and resistance, particularly our understanding of black antiracism and antisexism struggles in Brazil. Getting things done for poor black women in Gamboa de Baixo has meant that, when necessary, they must collectively get in the face of the powerful and demystify their power and control. This political approach is unlike the culturalist tendencies

comunidades, se destacando entre eles o impedimento do acesso à comunidade Unhão, com o fechamento da estrada Castelo Branco, que teve sua inauguração na atual Rádio Bahia, na Gamboa de Cima, e que segue ao longo da parte superior da comunidade, próxima aos arcos. Essa ação restringiu nosso acesso à trilha rústica de pedra e barro que começa logo depois da entrada do Solar do Unhão e que, devido a sua precariedade, causou nosso relativo isolamento e a entrada de alguns marginais (criminosos), tornando a área num bairro visto como pobre e discriminado pelo resto da população da cidade. (Comunicado da Associação de Bairro, 1996).

A ex-ativista Elena, que sempre viveu abaixo da avenida, aponta que algumas mulheres trabalham como domésticas na Gamboa de Cima e bairros próximos, como Vitória, e elas literalmente olham do alto suas casas na Gam- boa de Baixo. Cerca de 80% das mulheres na Gamboa de Baixo (incluindo adultas e adolescentes) são trabalhadoras domésticas. Mesmo hoje, identificar- -se como moradora da Gamboa de Baixo pode impedir alguém de conseguir um emprego, pois, como afirma Elena, alguns empregadores “pensam que nós somos todas ladras” (Comunicação pessoal, 2001). Sentimentos de inferiori- dade e superioridade têm sido uma constante desde a separação das Gamboas pela av. Contorno, uma demonstração de que o projeto de construção teve significado mais que simbólico. Numa diferença extrema do próspero centro da cidade acima da avenida, a comunidade que vive literalmente abaixo do asfalto é relegada como um agrupamento de indesejáveis que é deixado para trás no espaço e no tempo.

Os protestos da Gamboa de Baixo na av. Contorno transformam as maneiras pelas quais conceituamos a mobilização e a resistência negra, princi- palmente nosso entendimento das lutas negras antirracismo e antissexismo no Brasil. Para as mulheres negras pobres da Gamboa de Baixo, pôr as coisas em prática tem significado que, quando necessário, elas precisam chegar na cara dos poderosos e desmistificar o poder e controle que estes exercem. Essa abordagem política é diferente das tendências culturalistas que Michael Hanchard defende como as características definitivas do ativismo negro no Brasil. Ele escreve que não há “nenhuma versão afro-brasileira de boicotes, manifestações pacíficas, desobediência civil e luta armada à sua disposição”. (HANCHARD, 1994, p. 139). Além disso, ele observa que as(os) ativistas negras e negros, devido a seu foco nas políticas das práticas culturais afro-brasileiras, não têm sido capazes de

that Michael Hanchard argues are the definitive characteristics of black activism in Brazil. He writes that there exists “no Afro-Brazilian versions of boycotting, sit-ins, civil disobedience, and armed struggle in its stead”. (HANCHARD, 1994, p. 139). Moreover, he observes that black activists, because of their focus on the politics of Afro-Brazilian cultural practices, have been unable to organize a mass political movement aimed at transforming institutionalized forms of racial inequality.

My research on black neighborhood struggles against state practices of land expulsion in Salvador indicates that blacks do identify as blacks and do en- gage in gender- and race-based political projects on a mass scale. Contrary to tra- ditional racial formation literature in Brazil, racial inequality, racism, and white privilege exist in Brazil though often manifested in different ways than in the United States, shaping everyday black experiences with racism and sexism in employment, housing, healthcare, and other vital resources.

Black politics are formulated through individual and collective experi- ences with systems of racial and gender domination and violence such as spatial segregation and forced displacement. Furthermore, the Gamboa de Baixo pro- tests illustrate that black activists do engage in acts of civil disobedience and vio- lent struggle for basic human rights issues such as clean water, housing, and local autonomy. Their actions confirm that social movements in Brazil are struggles for the valorization of black cultural history and identity as well as for the transfor- mation of material conditions in black communities.

Black women’s leadership in Gamboa de Baixo’s political organization shows the ways in which they use race and gender to mobilize their community. What is clear is that black women’s experiences with marginality and exclusion are one impetus for political mobilization. As the Women’s Association and the neighborhood association show, women have always been at the leadership base of community politics in Gamboa de Baixo. They claim that this is because they, as black women, are more conscious of the short- and long-term impact that land expulsion and relocation to the periphery would have on their families. A major question for residents is, “What will we do someplace else, someplace we do not know?” Displacement to a distant neighborhood diminishes their ac- cess to resources such as food (fishing), transportation, jobs, health care, and education.6 The hospitals are located within walking distance from Gamboa de 6 Richard Batley (1982, p. 233) asserts that, as a consequence of expulsion, “for poorer groups,

organizar um movimento político de base, direcionado a transformar as formas institucionalizadas da desigualdade racial.

Minha pesquisa em lutas de comunidades negras contra as práticas es- tatais de expulsão territorial em Salvador indica que as pessoas negras de fato se identificam como negras e realmente se engajam em projetos políticos de larga escala baseados em gênero e raça. Ao contrário do que atesta a literatura tradicio- nal sobre a formação racial no Brasil, a desigualdade de raça, o racismo e o pri- vilégio branco existem no Brasil – embora muitas vezes se manifestem de formas diferentes daquelas nos Estados Unidos – e conformam as experiências negras cotidianas com o racismo e o sexismo no trabalho, na habitação, na saúde pública e em outros recursos vitais.

As políticas negras são constituídas através das experiências individuais e coletivas com os sistemas de dominação e violência racial e de gênero, como segregação espacial e remoção forçada. Além disso, os protestos da Gamboa de Baixo ilustram que ativistas negras e negros de fato se engajam em atos de desobe- diência civil e luta violenta em prol de direitos humanos básicos como água potá- vel, moradia e autonomia local. Suas ações confirmam que os movimentos sociais no Brasil são lutas pela valorização da história e identidade da cultura negra, bem como pela transformação das condições materiais nas comunidades negras.

A liderança das mulheres negras na organização política da Gamboa de Baixo mostra as formas com que elas usam raça e gênero para mobilizar sua co- munidade. Torna-se nítido que as experiências das mulheres com marginalização e exclusão dão impulso para a mobilização política. Como mostram a Associa- ção de Mulheres e a associação de moradoras e moradores, as mulheres sempre estiveram na base da liderança das políticas comunitárias da Gamboa de Baixo. Elas argumentam que isso ocorre porque elas, sendo mulheres negras, estão mais conscientes dos impactos que a expulsão territorial e a remoção às periferias tra- riam a suas famílias, a curto e longo prazos. Uma questão central às(aos) resi- dentes é: “O que vamos fazer em outro lugar, num lugar que não conhecemos?”. O deslocamento a um bairro distante diminui o acesso que elas têm a recursos como alimentação (pesca), transporte, empregos, sistema de saúde e educação8.

8 Richard Batley (1982, p. 233) afirma que, como consequência da expulsão, “para os grupos mais pobres, a remoção de áreas centrais implicou na perda de uma situação relativamente favorável, quase certa em termos de acesso a serviços públicos e emprego, e também, provavelmente, em termos de padrão de moradia”.

Baixo, which is essential for emergency care. As domestic workers in the nearby high-rise buildings, they can keep an eye on the happenings of the neighborhood while they work. More importantly, the beach is a central place for leisure activi- ties such as swimming and diving, playing soccer, rowing, and just hanging out.

The neighborhood’s traditional proximity to the ocean is also significant for Afro-Brazilian religious ceremonies. Each year on February 2nd, the fishermen and women honor Iemanjá, the goddess of the sea, placing gifts of appreciation such as flowers and perfume. A week after that celebration, a thirty-five-year-old woman, Maria José, conducts her own ceremony for Iemanjá, which also in- volves an elaborate procession to the oceanfront and then the delivery of the gifts to the middle of the ocean. When I asked Maria José, also a board member of the neighborhood association for several years, why she loves to live in Gamboa de Baixo, she proudly exclaimed, “Living here é bom, bom demais (is good, too good). Where else in the city could I have my own beach to hold these celebra- tions for Iemanjá?” (Personal interview, 2000).

The centrality of women’s participation and their collective gender con- sciousness fueled the community movement for the preservation of local culture and the improvement of social conditions. Ana Cristina, a neighborhood activist, provides the following explanation:

(Ana Cristina): The women believed more, women have this thing… They believed that they would remove us. And the men, I think they didn’t, because the men thought, and some still think that, that no, living outside is simple. That they were going to be able to return, to come, the boat stays here, to fish, but the women had a broader vision, more clear about what it was to leave Gamboa to live in another part of Salvador. So, like that, it is as if the women were defending their territory […] It is not because as they say, there are men who say ‘meeting is a woman’s little thing,’ but we did not see it that way. We see it like this, that women are able to reach a lot farther than the men. […] look, this broader preoccupation of the women was just this— preoccupation with the future. (Personal interview 2000).

removal from central areas implied a loss of a relatively favored situation, almost certainly in terms of access to public services and employment and probably also in terms of housing standards”.

Os hospitais estão localizados à distância de uma caminhada da comunidade, o que é essencial ao atendimento de emergência. Trabalhando como trabalhadoras domésticas nos prédios altos dos condomínios residenciais, elas podem ficar de

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