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PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1.4. Flexibilidade: a ideologia neoliberal da competência privatizada

1.4.1. Formação humana: função logística na manutenção da ordem social

A globalização, enquanto processo hegemônico, consiste precisamente na universalização da racionalidade mercantil em sua versão neoliberal, a qual regula e orienta as relações sociais na contemporaneidade. A intensa dinâmica de desintegração produzida pela globalização do projeto neoliberal apresenta uma tendência à

precarização tanto material quanto espiritual e que, segundo Pablo Gentili (1996), se manifesta em três planos:

a) a destruição da esfera pública, através do enfraquecimento dos poderes estatais (espaço em que se materializam os direitos sociais); b) o aumento da pobreza e a exclusão social da expressiva maioria dos trabalhadores; e c) a expansão de um conjunto de relações sociais marcadas pela ausência de solidariedade, em conseqüência do resgate do individualismo do século XIX. (p.55)

Na fase inicial da modernidade, o objetivo da ideologia burguesa da harmonia administrativa (Tragtenberg, 2005) era o de suprimir toda incerteza, imprevisibilidade e indeterminação (para que o Estado pudesse eliminar suas contradições internas, através da repressão aos “não-adaptados”), tomando o ser humano como objeto a ser moldado pela racionalidade técnico-científica, a fim de interpelá-lo como produtor. Atualmente, porém, constata-se que o consumo adquire a centralidade nos processos de socialização regulados pela ideologia neoliberal, através de um discurso individualizante que gera o esvaziamento das relações sociais (Bauman, 2001a).

O projeto do progresso social típico da fase “sólida” da Modernidade é abandonado em prol da prática individual consumista que se torna, na modernidade líquida, suposta fonte principal de satisfação pessoal. Neste contexto, será então o mercado – e não apenas as instituições burguesas (Foucault, 2005)6 – a veicular o

discurso dominante da contemporaneidade, regulando/racionalizando os comportamentos subjetivos e ajustando as relações sociais aos seus imperativos. Assim, se na fase inicial da modernidade o sistema capitalista se definia pelo modo de produção fordista e o discurso dominante instituía o trabalho como único meio para o progresso

social, na contemporaneidade observa-se que o discurso ideológico do sistema-capital

6 Apesar de concordarmos com Foucault no que se refere à influência decisiva do poder institucional nos modos de

subjetivação da primeira fase do capitalismo (fordista), distanciamo-nos de sua teoria relacional de poder, pois, para nós, em uma sociedade cindida em classes, o “poder” é algo localizável – portanto transferível, conquistável... e “distribuível”.

elege o consumo enquanto mecanismo para um progresso estritamente individual. As consequências desse avanço [desenfreado] do capital e das transformações ideológicas que o legitimam refletem-se, naturalmente, no nível comportamental dos indivíduos, engendrando uma mudança essencialmente cultural.

As sociedades ocidentais do século XX foram marcadas por um exponencial crescimento do consumo que, enquanto fenômeno social, exerceu uma influência direta nos padrões comportamentais subjetivos. Com a globalização, o desenvolvimento desenfreado das forças produtivas deu origem a novas formas de produção de bens e serviços em massa que, ao tornarem a oferta excessiva, engendraram a necessidade de se aumentar a procura, o consumo – e, consequentemente, o descarte, para que o sistema possa recomeçar este ciclo.

Esse descarte passa a ser programado pelo mercado, a fim de produzir novos e diferentes produtos para serem comercializados, mantendo os gastos da população com o consumo sempre maiores do que seus ganhos com o trabalho, e permitindo ao capital financeiro-especulativo reproduzir-se. O tempo de vida dos produtos diminui; a procura se torna constante e também a busca [obsessiva] por novidades. As novas formas de consumo permitem escoar o grande volume de mercadorias, porém sem atender plenamente às necessidades das pessoas, permitindo que o ciclo recomece, o que, segundo Lessa (2004) “é conseguido através do consumo destrutivo: as guerras e o complexo industrial-militar em primeiro lugar, mas também o consumo perdulário e a obsolescência planejada jogam aqui um papel fundamental” (p.06).

Assim é que, de uma forma geral, consumimos, hoje, não o que necessitamos, nem o que nos faz bem, ou o que nos assegurará um futuro melhor: consumimos, simplesmente, o que dá lucro (idem). Opera-se uma deliberada confusão entre bem e mercadoria, satisfação e sobrevivência: “se o consumo da sobrevivência é algo que deve

crescer sempre, é porque a privação nunca deve ser contida. E se ele não é contido, nem estancado, é porque ele não está para além da privação, é a própria privação enriquecida” (Debord, 1997 § 44). De forma que o processo de formação humana, regulado pelo imperativo consumista, vai equivaler à conformação do indivíduo em uma função logística na manutenção da ordem social, pois, como afirma o economista estadunidense Galbraith (como citado em Baudrillard, 2008), “o indivíduo serve ao sistema (...) pelo consumo dos seus produtos. Não existe qualquer outra atividade religiosa, política ou moral, para a qual seja preparado de maneira tão completa, tão científica e tão dispendiosa” (p. 99).

Considerando que o discurso [que pretende-se] único visa a estabelecer os critérios para a “a seleção e a separação entre condenados e salvos” (Bauman, 2008, p.85) e, se entendermos por soberania – em um regime de dominação social – a prerrogativa de impor uma ideologia dominante, sucede que, no modelo disciplinar de gestão das vidas e condutas humanas, típico do modo fordista de produção, o Estado soberano, exercendo seu poder a serviço dos interesses burgueses, estabelecia relações as quais tinham alcance imediato sobre os cidadãos, selecionando os capazes de – ou suficientemente saudáveis para – desempenhar tarefas produtivas.

No ambiente líquido-moderno marcado pelo enfraquecimento da soberania estatal e de suas instituições (Bogo, 2008), observa-se, porém, que esta prerrogativa é transferida para o mercado de bens de consumo, pois é este que, atualmente, estabelece os critérios e funda os princípios de uma política segregatória calcada na separação entre consumidores adequados e inadequados: o “desempenho consumista se transforma no principal fator de estratificação (...), assim como orienta a distribuição do apreço e do estigma sociais, e também de fatias de atenção do público” (Bauman, 2008, p.71). Adequados são aqueles que, aptos a responderem aos apelos ou “passes sedutores” do

mercado, sustentam, através do padrão comportamental consumista, o ciclo econômico imperativo do “compre, desfrute, descarte”; marginalizados, os que, por falta de recursos materiais, não são capazes de fazê-lo de forma compulsiva, tornando-se “moralmente envelhecidos” (Marx, como citado em Bauman, 2008) e carregando o estigma da obsolescência – à semelhança dos bens que consomem. Como se pode inferir, trata-se, efetivamente, de um sistema de segregação que incide diretamente sobre as identidades de classe (Bogo, 2008), pois a atualmente tão celebrada “liberdade de escolha”, não está, de fato, ao alcance de todos [e, portanto, não é liberdade, em seu sentido pleno...]. A esse respeito, Ollman (2001 como citado em McLaren, 2007) questiona[-nos] se em vez de nos focarmos no momento da escolha, não seriam “as condições desiguais nas quais as pessoas fazem as suas escolhas e que prescrevem estreitamente o que pode ser escolhido, que deveria chamar a nossa atenção” (p.33).