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3. A CONSTITUIÇÃO DOCENTE A PARTIR DA HETEROGENEIDADE DOS

3.1 A formação inicial

Ao olhar para a minha formação na Licenciatura em EF, composta 70% por um núcleo comum entre licenciatura e bacharelado e 30% por disciplinas específicas da licenciatura, por um lado, nota-se a produção discursiva e não discursiva de estratégias que tentam aproximar campos distintos de atuação, logo saberes, por meio de algo que é tratado em seu projeto pedagógico como comum a ambos os campos: a intervenção (pedagógica) sobre o corpo, o que indica a luta pelo controle da representação de EF. Por outro, percebe-se uma quantidade considerável de disciplinas das ciências do esporte derivadas de áreas-mães das ciências humanas e da Filosofia. Dentre elas: Antropologia, História da EF e do Esporte, Sociologia do Esporte, Teorias do Conhecimento, Teorias de EF, Teorias de Lazer. Além delas, há as que pautam aspectos específicos da

licenciatura, como estágio supervisionado24 e três que versam a respeito da relação da EF com os níveis de ensino infantil, fundamental e médio25, que pela própria nomenclatura expressa as forças que determinam a organização curricular. As mesmas apresentam ementas que direcionam o estudo da EF a serviço de uma realidade social específica, na qual o(a) professor(a) que será formado deverá atuar no sentido de transformar essa realidade, considerando principalmente que as camadas subjugadas da população deverão superar sua condição de dominação, acessando conhecimentos universais, específicos, que são reforçados no Projeto Pedagógico da faculdade sob a alcunha “conhecimentos clássicos da EF”26. O que corrobora com que Pérez Gómez (1998a) apresenta enquanto formação do(a) professor(a) para uma perspectiva de ensino de reflexão na prática para a reconstrução social.

O autor coloca que nessa perspectiva forma-se o professor

como um intelectual transformador, com o claro compromisso político de provocar a formação da consciência dos cidadãos na análise crítica da ordem social da comunidade em que vivem. O professor(a) é ao mesmo tempo um educador e um ativista político, no sentido de intervir abertamente na análise e no debate dos assuntos públicos, assim como por sua pretensão de provocar nos alunos(as) o interesse e compromisso crítico como os problemas coletivos, [...] (PÉREZ GÓMEZ, 1998a, p. 374).

No mesmo currículo estão presentes disciplinas com caráter técnico- instrumental, as quais visam o ensino de determinadas práticas corporais com maior ênfase em esportes hegemônicos como: basquetebol, handebol, voleibol, futsal, futebol de campo, natação, atletismo. Dentre o universo infinito das práticas corporais há disciplinas de lutas, nado, ginástica, atividades rítmicas e expressivas, esportes coletivos que demonstram o caráter contestado do currículo, pois são disciplinas que versam sobre algumas modalidades dessas categorias.

Em geral, essas disciplinas apresentam metodologias que não correspondem à perspectiva de reflexão na prática para a reconstrução social, mas, por meio da aprendizagem das regras e da própria lógica do jogo, objetivam desenvolver habilidades

24 Há quatro disciplinas de supervisão de estágio sendo: duas ofertadas pela Faculdade de Educação e duas

pela própria Faculdade de Educação Física. Nas primeiras, o estágio é conduzido por professores com formações diversas, nem sempre especialistas em práticas de ensino ou didática e propõem estágios também em áreas não escolares. Por sua vez, as da EF dividem-se em observação e participação.

25 São elas: Educação Física na Educação Infantil; Educação Física no Ensino Fundamental e Educação

Física no Ensino Médio.

26 Projeto Pedagógico da Faculdade em questão. Acessado em: 09/09/2020. Disponível em:

especificas requeridas pela modalidade estudada, o que também implica na confusão de fronteiras de suas funções, entre o ensinar e o aprender (NUNES, 2011a). É preciso destacar que em algumas delas há manifestações discursivas da preocupação com aspectos formativos globais, sem, no entanto, oferecer condições de aprendizagem para tal.

Pérez Gómez (1998a) compreende essa forma de ensino a partir da perspectiva técnica e aponta que “o docente deve se preparar no domínio de técnicas derivadas desde fora, por especialistas externos, que ele deve aprender a aplicar; por isso, sua formação não requer um currículo mais dilatado, nem um nível superior de preparação” (PÉREZ GÓMEZ, 1998a, p. 358). Para além da formação inicial, é possível localizar a presença dessa racionalidade ao notarmos o considerável número de cursos oferecidos por plataformas da Educação e dentro na própria universidade que tratam de temas específicos como: Lutas na EF escolar; Jogos e brincadeiras na EF escolar; Ginástica na EF escolar; Circo na EF escolar. Formações que abordam aspectos específicos do fazer de cada uma dessas modalidades, atribuindo a elas um trato pedagogizado, pensado dentro do debate acadêmico sobre a melhor forma de ensinar e aprender.

É curioso pensar que nesse mesmo espaço coexistem diferentes formas de olhar para a formação desse(a) professor(a), e que uma produz a crítica a outra. Por exemplo, autores que reivindicam a hegemonia das práticas reflexivas apontam críticas a essa racionalidade técnica pela redução da intervenção pedagógica a uma atividade instrumental e pela aceitação das situações como dadas, permitindo que metas/ objetivos de ensino sejam traçados por especialistas externos à escola.

Acrescido a isso, nesse mesmo currículo também estão presentes as disciplinas: Anatomia Humana I e II, Fisiologia I e II, Primeiros Socorros, Bioquímica, Crescimento e Desenvolvimento, Biomecânica, Estatística Aplicada à Educação Física, Adaptações dos Sistemas Orgânicos, Fundamentos Neurofuncionais do Movimento Humano, Psicologia da Educação Física, Treinamento e Preparação do Desempenho, Processo de Envelhecimento e Educação Física, Fundamentos de Nutrição e Gestão em Esporte. Disciplinas que abordam o conhecimento formulado a partir das ciências-mãe e transmitidos aos modos da racionalidade (PÉREZ GÓMEZ, 1998a)

Pérez Gómez (1998a) menciona que nessa perspectiva de formação “confunde-se o docente com o especialista nas diferentes disciplinas, não se distingue com clareza entre saber e saber ensinar, dando-se pouca importância tanto a formação

didática da própria disciplina, como à formação pedagógica do docente” (p.355). É a representação de um docente que se apresenta enquanto intelectual que pauta sua prática na aquisição do conhecimento científico, mas não se preocupa com as formas de transmissão do mesmo. Há de se destacar também um paradoxo: o modo como se apresentam no currículo as disciplinas do campo das Ciências Médicas e Biológicas reforçam a hierarquia de saberes entre disciplinas teóricas e práticas, entre corpo e mente, condição criticada pela própria área (BRACHT, 1999b; 2003).

Pérez Gómez (1998a) ainda ressalta que essa é uma característica bastante evidente dos professores das universidades e daqueles que lecionam no ensino médio. É fazendo a crítica a essa racionalidade e a racionalidade técnica, na qual o professor resolve seus problemas, aplicando rigorosamente as teorias científicas, que a racionalidade prática e prática reflexiva ganham força, reivindicando a escola enquanto um espaço de produção de conhecimento sobre o que ela é. Este tema será melhor elaborado no próximo subitem.

Com relação à formação inicial, ainda é importante pontuar sobre as disciplinas realizadas na faculdade de Educação da Unicamp sendo elas: Escola e Cultura, Políticas Educacionais, Psicologia da Educação e dois estágios supervisionados obrigatórios. Disciplinas estas também ministradas no sentido da produção de uma docência sob enfoque da perspectiva da prática reflexiva para a reconstrução social, o que permite inferir uma hegemonia do pensamento crítico.

Na época em que cursei boa parte dessas disciplinas, participava na FEF de um grupo de estudos sobre Educação Física Escolar, que trata a área a partir da pedagogia histórico-crítica de Dermeval Saviani27. Lembro-me de que concomitante ao momento de escolha dos horários e dos docentes que ministrariam a disciplina que eu iria realizar, estava lendo em um período o livro Escola e Democracia e, em outro, A Pedagogia Histórico Crítica, ambas de Saviani, o que torna inegável a influência dessas na minha formação.

Durante a graduação, também participei de dois grupos de estudos que pensavam a pedagogia do esporte, no mesmo período em que fui técnica de basquetebol em equipes universitárias e ministrava aulas de basquetebol para adultos e iniciação

27 Bracht (1999) pontua que Dermeval Saviani foi a ponte entre as teorias marxistas e a EF, pois ao adentrar

o território universitário brasileiro, ela acaba por incorporar as discussões pedagógicas da época (1970- 1980).

esportiva para crianças no projeto de extensão da Faculdade. O que também reforçou em minha formação aspectos da perspectiva técnica.

Em 2016, iniciei minha participação no grupo Transgressão, o qual frequento até os dias de hoje. Esse trata a EF a partir da vertente pós-crítica de currículo e busca formular/pesquisar uma proposta denominada Currículo Cultural. Tal vertente, ao distanciar-se das concepções centradas no conhecimento e no aluno, pauta-se na centralidade da cultura. Toma a educação escolar e a cultura corporal28como territórios contestados, nos quais se disputam forças que tanto problematizam a uniformização dos modos de ser a partir de uma cultura hegemônica, como também produzem a intensificação dos debates por uma sociedade menos desigual e a afirmação de outras formas de conduzir-se em sociedade (NEIRA; NUNES, 2006; 2009).

Essa perspectiva, apesar de construída e formulada a partir também do fazer pedagógico dos(as) professores(as), não corresponde às racionalidades pontuadas por Pérez Gómez (1998a). O currículo cultural se constrói a partir do que são as teorias pós- críticas de currículo, as quais ainda apontam os limites da racionalidade crítica para a reconstrução social, que constrói o currículo, a partir de ideários totalizantes de sociedade e de sujeitos, pautados nas metanarrativas da superação da relação opressora entre classes e da emancipação do sujeito por meio do despertar da consciência.

Tais discursos circulam em diferentes contextos e produzem o sujeito da docência nas diferentes ordens discursivas, que manifestam verdades sobre esses corpos. As instituições de formação em EF29, por exemplo, produzem os professores para atender demandas sociais de ordem mundial; demandas hoje referentes ao projeto de sociedade vigente, que corrobora com a organização social neoliberal, como é caso da produção de um sujeito que investe em si mesmo, sendo assim, autorregula seu comportamento para com as questões da produtividade e do consumo (NUNES; NEIRA, 2014; 2015, 2017, 2018a 2018b). As mesmas, associadas às formações que ocorrem no cotidiano da labuta docente nas escolas da educação básica reforçam esses discursos e também produzem professores a partir de demandas locais – estaduais, municipais, comunitárias, que

28 Este conceito será melhor abordado no próximo subitem, mas adianto desde já que cultura corporal foi e

é utilizado por diferentes autores na EF que trabalham a partir de diferentes perspectivas epistemológicas. Desse modo, apesar de localizarmos em diferentes concepções de EF esse mesmo objeto, a noção de cultura é trabalhada nessas concepções a partir de diferentes autores e por diferentes campos da Antropologia e da Sociologia.

29 Nos referimos àquelas responsáveis pela formação inicial e continuada, que inclui cursos de capacitação,

especialização e os próprios momentos formativos que correspondem a carga horária das professoras na escola, como HTPC e HTPI.

buscam inserir esses contextos na ordem global, a fim de atingir índices de desempenho também específicos. Demandas essas que são criadas por grupos de interesses diversos, tais como as agências do Estado, órgãos supranacionais, instituições financeiras, etc. (BALL, 2002; 2004; 2010), e que influem diretamente na construção de representações sobre a docência que, por sua vez, invadem as escolas e compõe enunciados recorrentes sobre a mesma por meio de documentos curriculares e cursos de formação continuada.