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Formação social brasileira: um debate com Caio Prado Júnior e

2 PARTICULARIDADE BRASILEIRA: FUNDAMENTOS PARA A

2.1 Formação social brasileira: um debate com Caio Prado Júnior e

Para a apresentação de algumas49 questões da particularidade da formação social brasileira elencamos as análises realizadas por Caio Prado Júnior50 e Florestan Fernandes51, ambos clássicos do Pensamento Social Brasileiro. Estes autores localizam-se, no âmbito da sociologia, em seu campo crítico de análise que situa a América Latina, o Brasil, no contexto histórico-concreto de desenvolvimento do modo de produção capitalista (MAZZEO, 201552).

As análises de Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes situam-se na tradição marxista. Marx apontou o caráter universalizante do modo de produção capitalista observando, também, as particularidades que este modo de produção

49 Não realizaremos uma análise da obra de Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes, mas sim o destaque de algumas discussões presentes na interpretação da formação social e econômica do Brasil que, ao serem abordadas, contribuem para a elucidação de fatos de nossa história recente na medida em que os situamos não como fatos isolados, mas como elementos de uma processualidade histórica. Advertimos que neste texto daremos mais ênfase ao pensamento de Florestan Fernandes.

50 Nossa opção pela interlocução com as formulações de Caio Prado Júnior (1907-1990) se deu pelo ineditismo de sua contribuição na interpretação do processo de colonização no Brasil. Este autor foi um intelectual marxista e um socialista militante que formou a corrente renovadora dos estudos sobre a sociedade brasileira a partir dos anos 1930. Suas análises, cunhadas a partir da tradição marxista, ao investigarem o “passado” colonial numa perspectiva histórico-crítica deram bases para a

compreensão do “Brasil moderno”. Sua obra influenciou o pensamento crítico brasileiro, inclusive as elaborações de Florestan Fernandes. Na avaliação de Coutinho (1988, p. 2): “Mesmo quando trata o passado, Caio Prado tem sempre em vista a investigação do presente como história, o que implica para ele, enquanto marxista, na análise dialética da gênese e das perspectivas desse presente. Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua reflexão historiográfica, isso indica que nela estão contidos, ainda que só implicitamente, conceitos de ‘transição’ ou de ‘modernização’”.

51 Florestan Fernandes (1920-1995), assim como Caio Prado Júnior, foi um intelectual marxista e um socialista militante. Contudo, conforme Ianni (2008, p. 15), é Florestan Fernandes “o fundador da sociologia crítica no Brasil”. Na análise de Ianni (Idem, p. 19-21) a sociologia de Florestan sintetiza contribuições de cinco fontes: 1) o diálogo com autores da sociologia clássica e moderna, dentre eles:

Comte, Durkheim, Weber, Giddens, Spencer, Parsons, Mannheim etc.; 2) a interlocução com o pensamento marxiano e marxista, com as obras de Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Gramsci; 3) o diálogo com a corrente mais crítica do pensamento brasileiro, dentre outros: Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Manuel Bonfim e Caio Prado Júnior; 4) a interlocução com os desafios postos em sua época, com as transformações societárias em curso – da urbanização, dos

movimentos sociais, dos partidos políticos etc.; 5) a presença em sua obra dos grupos e classes sociais, “descortinando” o panorama social e histórico brasileiro. Na análise de Limoeiro-Cardoso (1995, p. 2), “Florestan não aceita os ‘dados’ oferecidos pelo conhecimento comum e pelas ideologias dominantes como se de fato fossem dados. Não se deixa cair nem na ingenuidade de tomar como realidade a empírica imediata, nem no dogmatismo das teorias acabadas, que tudo ‘explicam’ antes mesmo de se confrontarem com a prática factual e concreta”.

52 Livro Estado e burguesia no Brasil. Origens da autocracia burguesa”.

assumiu em determinadas fronteiras nacionais (MARX, 198553; LUKÁCS, 197954).

Ou seja, certas particularidades nacionais do processo de expansão e reprodução do capital. Nesse sentido, as bases para a compreensão da particularidade do desenvolvimento do capitalismo no Brasil estão postas na relação estabelecida com a totalidade do modo de produção capitalista.

Como demonstrou Marx, analisar uma realidade concreta a partir do conceito de totalidade implica em investigar a particularidade – a “parte” – em relação de interação na totalidade e em relação dialética entre si. Uma formação social é uma totalidade que é parte de outra totalidade. Depreendemos das análises de autores como Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes que a formação social e econômica brasileira se desenvolve como parte funcional da totalidade econômica que é o modo de produção capitalista. E, como apontou Lukács (1979, p. 37): “é a própria essência da totalidade econômica que prescreve o caminho a seguir para conhecê-la”. Na mesma direção, é crucial entendermos o processo histórico enquanto uma totalidade que é composta de múltiplas determinações e, nesse sentido, concebemos que essa direção é, ao mesmo tempo, teórica e metodológica.

Ao tratarmos aqui de alguns elementos da formação social brasileira estamos necessariamente nos referindo a direção social, econômica e política que persiste, comparece historicamente e que permanece constantemente se atualizando na dinâmica social brasileira. Como assinala Lukács em sua fala:

[...] o persistente é entendido como aquilo que continua a se manter, a se explicitar, a se renovar nos complexos reais da realidade, na medida em que a continuidade como forma interna do movimento do complexo transforma a persistência estática e abstrata numa persistência concreta no interior do devir (LUKÁCS, 1979, p.78).

Na esteira das análises de Prado Júnior (193355) e Fernandes (196856, 197557, 1976a58), o desenvolvimento do capitalismo no Brasil se expressa sob a

53 Em O Capital.

54 Na obra Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx.

55 Obra Evolução política do Brasil: Colônia e Império. Leandro Konder (1989, p. 139) demarca que no seu entendimento esta obra de Caio Prado Júnior é a primeira aplicação bem sucedida do método do materialismo histórico aos estudos da realidade brasileira.

56 Livro Sociedade de classes e subdesenvolvimento, primeira publicação em 1968.

57 Obra Capitalismo dependente e classes sociais na América, primeira publicação em 1973.

forma de dependência econômica, cultural e política do capitalismo central. As interpretações destes autores têm base histórica e concreta e, ao mesmo tempo, nos apontam um caminho metodológico para a análise do Brasil presente.

O Brasil torna-se um Estado Nacional em 1822, neste momento a maioria dos trabalhadores brasileiros eram escravos. Este é um país que se torna politicamente emancipado tendo com base econômica a escravidão e o latifúndio (PRADO JÚNIOR, 1933; FERNANDES, 1976a).

A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil acontece em 1808 e a partir daí o Brasil passa a ter um protagonismo na administração do capital português. Nesse contexto, devido ao fim do monopólio comercial, aumentam consideravelmente os lucros da burguesia rural brasileira e esta passa, assim, a ter um maior controle sobre os fluxos de capitais produzidos internamente. Uma das contribuições centrais da interpretação de Prado Júnior sobre o processo de colonização é a sustentação de que no Brasil não houve feudalismo e, em função desta constatação histórica, segundo o autor, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil não demandou uma “revolução agrária e anti-imperialista59” (PRADO JÚNIOR, 196660). Nessa esteira, Prado Júnior (201161, p. 28) apontou a colonização no sentido da construção de “uma vasta empresa comercial” de negócios voltados à produção de bens primários para o mercado externo. Desse modo, na interpretação

58 Obra A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica, primeira publicação em 1975.

59 Essa discussão foi realizada no livro A revolução brasileira, publicado em 1966. Nessa passagem Caio Prado Júnior estabelece diálogo contrário ao que era corrente no Partido Comunista Brasileiro (PCB), a partir da III Internacional Comunista: a ideia de que no Brasil teria tido um passado feudal.

Segundo Ricupero (2000, p. 204), o “modelo que inspira a teoria predominante na esquerda brasileira sobre a revolução a realizar no país é o das teses da III Internacional sobre os ‘países coloniais ou semi-coloniais e dependentes’, elaboradas no seu VI Congresso de 1928. Caio Prado Júnior assinala que essas teses realizaram uma ‘generalização apressada e injustificada’, que não deu maior

atenção às diferenças existentes entre os países coloniais e semi-coloniais da Ásia e da África, de um lado, e os países dependentes da América Latina, como o Brasil, do outro”.

60 Obra A revolução brasileira.

61 Obra Formação do Brasil contemporâneo: colônia. Florestan Fernandes, em artigo publicado sobre Caio Prado Júnior no jornal Folha de São Paulo, em 7 de setembro de 1991, intitulado “Obra de Caio Prado nasce da rebeldia moral”, ao analisar esta obra observou que nela: “A sociedade colonial e o modo de produção escravista encontram, finalmente, o intérprete que iria considerá-las como uma totalidade ‘in statu nascendi’ e no seu vir a ser. Ela não seduziu só os leitores eruditos e obrigatórios.

Impregnou a imaginação histórica de Caio Prado Júnior, convertendo-o em inventor e propagador de uma visão própria da história do Brasil”.

pradiana, o Brasil se constituía como uma grande unidade produtora de gêneros62 tropicais e minerais (Idem, p. 123).

Cabe destacar que, segundo Coutinho (2000, p. 247), Prado Júnior e Fernandes divergiam quanto às formulações do Partido Comunista Brasileiro (PCB) acerca da “imagem do Brasil”63. Conforme Coutinho, na interpretação do PCB o Brasil continuaria sendo um país “atrasado” (semifeudal) por carecer de uma

“revolução democrático-burguesa” que deveria ter sido realizada a partir de uma

“burguesia nacional” presumidamente anti-feudal e anti-imperialista. Na análise de Coutinho, tanto Prado Júnior quanto Fernandes rompem com essa visão, e assevera:

[...] para eles, o Brasil contemporâneo é um país plenamente capitalista, que já teria experimentado portanto uma “revolução burguesa”, mas – e é esse ‘mas’ que torna tão significativas as suas obras, inclusive no quadro do nosso marxismo – uma revolução burguesa de tipo ‘não clássico’

(COUTINHO, 2000, p. 248).

Uma das diferenças apontadas por Coutinho (2000, p. 251) na comparação entre as obras de Prado Júnior e Fernandes assenta-se justamente no tratamento teórico da “revolução burguesa” no Brasil. Coutinho alude que embora os dois autores tenham sido fundamentais para o descortinamento da “revolução burguesa brasileira”, Prado Júnior constrói suas análises de forma mais “intuitiva” e, por vezes, imprecisa, enquanto Florestan apoia sua argumentação a partir de tratamento conceitual, discutindo as bases e as implicações da relação de dependência econômica.

Em Prado Júnior (2011, p. 129) isto está fortemente relacionado ao que o autor entende serem as características fundamentais da economia colonial brasileira: “[...] de um lado, essa organização da produção e do trabalho, e a concentração de riqueza que dela resulta; do outro, sua orientação, voltada para o exterior e simples fornecedora do comércio internacional”. Conforme o autor, essas características acompanharam os três séculos do Brasil colônia. Nesse sentido, na elaboração pradiana, a economia colonial brasileira funcionava como um polo

62 Principalmente ouro, diamantes, açúcar, tabaco e algodão (PRADO JÚNIOR, 2011).

63 A “imagem do Brasil”, conforme Coutinho, se refere a imagens que “articulam sempre juízos de fato com juízos de valor, na medida em que não se limitam a fornecer indicações para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso país [...], mas se propõem [...] a nos dar uma visão de conjunto, que implica não só na compreensão para entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspectivas para o futuro” (COUTINHO, 2000, p. 245).

“produtor” que concentrava a riqueza na mão de poucos dirigentes e para a realização desta “produção” se valia da exploração de uma massa de trabalhadores escravos. E essa produção brasileira atendia a um comércio internacional, ou seja, uma produção voltada para o consumo externo.

Conforme Coutinho (1988, 2000), não há na obra de Prado Júnior referências explícitas aos conceitos de “via prussiana64” e “revolução passiva65” que expressavam vias “não clássicas” de passagem ao capitalismo, contudo, conforme Coutinho, nos estudos pradianos encontram-se formulações fundamentais para a compreensão dos processos de modernização conservadora ocorridos no Brasil.

Em 1821, Dom João VI retorna a Portugal almejando reestabelecer as estruturas de exploração colonial anteriores a 1808, entretanto essa possibilidade não era considerada pela burguesia agroexportadora brasileira. Na avaliação desta burguesia o caminho não era o embate direto, mas a conformação de um bloco histórico que teve em Dom Pedro I a figura de “líder da Independência”. Dessa forma, diferente do que aconteceu com outros países da América Latina, a

“Independência” brasileira se dá de forma cooperativa entre “colonizados” e

“colonizadores”, sem embates violentos. Como asseverou Prado Júnior (1933),

Os meses que medeiam da partida de D. João à proclamação da Independência, período final em que os acontecimentos se precipitaram, resultou num ambiente de manobras de bastidores, em que a luta se desenrolava exclusivamente em torno do príncipe regente, num trabalho intenso de o afastar da influência das cortes portuguesas [...]. Resulta daí que a Independência se fez por uma simples transferência política de poderes da metrópole para o novo governo brasileiro. E na falta de movimentos populares, na falta de participação direta das massas neste processo, o poder é todo absorvido pelas classes superiores da ex-colônia, naturalmente as únicas em contato direto com o regente e sua política. Fez-se a Independência praticamente à revelia do povo; e Fez-se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política. A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em conjunto (PRADO JÚNIOR, 1933, p. 52-53).

64 Conforme Carlos Nelson Coutinho o conceito de “via prussiana” foi “elaborado por Lênin com o objetivo principal de conceituar a modernização agrária” (COUTINHO, 1988, p. 3), ou seja, se refere à transição do capitalismo no campo, que conserva formas pré-capitalistas.

65 Também conforme Coutinho (1988, p. 3) o conceito de “revolução passiva” foi “utilizado por

Gramsci para determinar processos sociais e políticos de ‘transformação pelo alto’”, isto é, processos de modernização a partir de “conciliações” entre as frações das classes dominantes. Para consulta sobre Caio Prado Júnior em relação às vias “não-clássicas” de desenvolvimento do capitalismo, ver Carlos Nelson Coutinho no livro Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas, especialmente nas passagens “Cultura e sociedade no Brasil” e “A ‘imagem do Brasil’ na obra de Caio Prado Júnior” (COUTINHO, 2000).

Desse modo, ao promover um “acordo” com a monarquia, a burguesia anulou a possibilidade da participação popular no processo de Independência, assim como anulou a possibilidade de construção de ideias efetivamente republicanas. Na interpretação de Fernandes (1976a),

A Independência, não obstante a forma em que se desenrolou, constitui a primeira grande revolução social que se operou no Brasil. Ela aparece como uma revolução social sob dois aspectos correlatos: como marco histórico definitivo do fim da ‘era colonial’; como ponto de referência para a época da

‘sociedade nacional’, que com ela se inaugura (FERNANDES, 1976a, p.

31).

Conforme assinalou Fernandes, a Independência brasileira é o marco do rompimento do estatuto de colônia, contudo esse “rompimento” não altera as condições internas da ordem social vigente. E destaca:

Assim, sem negar a ordem social imperante na sociedade colonial e reforçando-a, ao contrário, as referidas elites atuaram revolucionariamente ao nível das estruturas de poder político, que foram consciente e deliberadamente adaptadas às condições internas de integração e de funcionamento daquela ordem social. Dessa perspectiva, a Independência pressupunha, lado a lado, um elemento puramente revolucionário e outro especificamente conservador (FERNANDES, 1976a, p. 32).

Ou seja, a Independência do Brasil acontece mantendo preservadas estruturas sociais e econômicas baseadas no trabalho escravo, no latifúndio, na concentração de renda e na concentração do poder nas mãos da elite brasileira.

Nas análises de Prado Júnior (1933, 1966, 1978) e Fernandes (1968, 1976a) acerca da formação social, econômica e cultural é patente que no Brasil o surgimento do “novo”, a realização da mudança e da “modernização” aconteceram de forma a garantir a continuidade do que já está posto, do “antigo”, do que é capaz de conservar estruturas econômicas de exploração. A lógica analítica apontada por estes autores permanece atual e em constante renovação.

A contribuição das análises de Fernandes (1968, 1976a) demonstra que a Independência do Brasil não aconteceu desvinculada do movimento da totalidade do modo de produção capitalista do seu tempo. E, nesse sentido, o Brasil apresentou-se como baapresentou-se de acumulação para o capital. Como colônia participava da expansão do comércio europeu, já como Estado amplia sua participação no movimento de acumulação capitalista. Pode-se dizer que o Brasil deixa de atender aos interesses diretos de Portugal e vincula-se à expansão direta dos interesses do capital em geral representados naquele momento pela Inglaterra.

No processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, desde os primórdios, observa-se, pois, uma constante reafirmação e recomposição do caráter subordinado e dependente observado por Fernandes (1968, 1976a, 199566).

Na análise fernandiana o caráter dependente da economia brasileira inviabilizou transformações no sentido democrático e, ao mesmo tempo, no bojo do desenvolvimento capitalista no país, criou estruturas de dominação sobre os trabalhadores. E estas estruturas de dominação se realizam sob a forma histórica de ações “autocráticas67”, reacionárias e conservadoras.

No que se refere ao desenvolvimento capitalista, ou o então chamado

“subdesenvolvimento” Fernandes problematiza as elaborações em torno do

“desenvolvimentismo”68, e faz isso a partir da crítica às ideias oriundas do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Aqui também está presente uma diferença importante do pensamento de Prado Júnior e Fernandes: no último há um aprofundamento das análises e proposições que o levaram para além da realização da crítica, chegando a apontar caminhos para uma “revolução social”. Na obra de Fernandes houve um processo de amadurecimento teórico que possibilitou esse desfecho.

Ao discutir a natureza do problema do padrão de desenvolvimento na América Latina e no Brasil, Florestan Fernandes (1976b69, p. 238) adverte que havia uma busca pela superação da “situação colonial”, contudo essa “mentalidade” se instalara sem que houvesse uma construção social e histórica no sentido de uma maturação econômica, política e cultural nos países latino-americanos. Fernandes apontava haver um descompasso “entre o avanço ocorrido nas atitudes e aspirações de ‘progresso’ e o domínio alcançado sobre as técnicas de controle, requeridas pela ordem social em emergência” (Idem, p. 239). Entretanto, neste período, não vinculava essa análise à possibilidade de superação da lógica capitalista.

66 Livro Em busca do socialismo: últimos escritos & outros textos.

67 Na esteira do pensamento de Fernandes, a ditadura brasileira instaurada a partir do golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964 foi um momento de coroamento da autocracia burguesa.

68 Ou seja, as elaborações de Florestan Fernandes sobre o desenvolvimento capitalista no Brasil são marcadas pela crítica à lógica do “desenvolvimentismo” e da “modernização”.

69 Referimo-nos à obra A sociologia numa era de revolução social, primeira publicação em 1962.

A partir do conceito de “capitalismo dependente e combinado70” Fernandes afirmou a existência histórica de peculiaridades vinculadas à formação e ao desenvolvimento do capitalismo nos países periféricos, como no caso do Brasil.

Contudo, conforme o autor, essas “particularidades” estão vinculadas à totalidade do modo de produção capitalista; a questão era entender quais as características dessa vinculação. Como asseverou em 1968, no livro Sociedade de classes e subdesenvolvimento,

Pelo que afirmamos, a articulação de formas de produção heterogêneas e anacrônicas entre si preenche a função de calibrar o emprego dos fatores econômicos segundo uma linha de rendimento máximo, explorando-se em limites extremos o único fator constantemente abundante, que é o trabalho – em bases anticapitalistas, semicapitalistas ou capitalistas. Por isso, estruturas econômicas em diferentes estágios de desenvolvimento não só podem ser combinadas organicamente e articuladas no sistema econômico global. [...] Sob o capitalismo dependente, a persistência de formas econômicas arcaicas não é uma função secundária e suplementar. A exploração dessas formas, e sua combinação com outras, mais ou menos modernas e até ultramodernas, fazem parte do ‘cálculo capitalista’

(FERNANDES, 1968, p. 64-65).

Como aponta a citação, a concepção de capitalismo dependente e combinado está na base da interpretação de Fernandes sobre as estruturas sociais e econômicas brasileiras. Daí depreende-se que na leitura fernandiana o “arcaico” não se apresenta como residual, mas como funcionalidade ao capitalismo nas economias dependentes em processo de modernização conservadora. Nesse sentido, conforme o autor, em economias como a brasileira há uma convivência tensionada e funcional entre o “arcaico” e o “moderno71”, ou seja, o processo de modernização se realiza mantendo estruturas da antiga sociedade colonial, onde a

70 No tratamento do desenvolvimento capitalista no Brasil a partir de uma lógica “combinada” aparece em Fernandes a influência das ideias de Trotsky. Conforme Coggiola (1995, p. 10) “o conceito de desenvolvimento desigual e combinado das sociedades pertence ao arsenal do pensamento de Trotsky, e a própria relação de Florestan com o socialismo só se deixa entender pela militância inicial (isto é, que precedeu à sua trajetória acadêmica) nos anos 40, no Partido Socialista Revolucionário, seção brasileira da IV Internacional fundada por Leon Trotsky em 1938 [...]”. Nas análises de Florestan Fernandes as ideais de Trotsky estão presentes seja na exposição da natureza

“combinada” do desenvolvimento do capitalismo nas áreas periféricas, seja no destaque à

“combinada” do desenvolvimento do capitalismo nas áreas periféricas, seja no destaque à