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5.3 CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

5.3.2 Forma

Quanto à forma, dividimos em tiras de quadrinhos e histórias em

quadrinhos. Poderíamos também considerar a tira como uma variedade específica

das histórias em quadrinhos. Groensteen (2015, p. 32) propõe a tira como a “faixa horizontal que é o primeiro nível de agrupamento dos quadros” ou painéis que constituem a prancha de quadrinhos. A distinção entre tira em quadrinhos e histórias em quadrinhos, ou entre comic strips e comic books, pode ser feita a partir do conceito de enunciado.

Ao propor seus conceitos acerca dos gêneros do discurso, Bakhtin (2011, p.291) considera que o sistema da língua, embora integrante, difere propriamente da comunicação discursiva viva, isto é, das situações sociais reais de comunicação. Dentro do sistema linguístico, a palavra e o conjunto de palavras que compõe uma oração possuem significado constante, mas só adquirem sentido concreto único e vinculado com a realidade quando se tornam enunciados.

Todas as atividades sociais e culturais estão ligadas ao uso da linguagem em uma comunicação discursiva que tem como unidade fundamental o enunciado, que por sua vez é definido “pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela

128 Sobre essas possibilidades e desenvolvimentos dos quadrinhos e da publicação digital,

sugerimos a leitura de autores como Anjos (2017), Castro (2016), Luiz (2013), Magalhães (2011 e 2016), McCloud (2000), Ramos (2013) e Santos (2010).

alternância dos falantes” (BAKHTIN, 2011, p. 275). A infinidade de atividades humanas dentro de uma série de relações dinâmicas únicas e irrepetíveis no tempo confere a cada enunciado um sentido concreto e único dentro de uma realidade específica. Histórias em quadrinhos são enunciados, bem como artigos científicos, romances e anúncios publicitários.

O enunciado é definido pela alternância dos sujeitos do discurso (que definem seus limites, começo e fim), pelo contato imediato com a realidade e pela relação imediata com enunciados alheios por meio de posições responsivas e suscitadoras de respostas. A partir da alternância dos sujeitos do discurso, Bakhtin (2011, p. 280) estabelece como característica dos enunciados a conclusibilidade específica.

A conclusibilidade do enunciado é uma espécie de aspecto interno da alternância dos sujeitos do discurso; essa alternância pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condições (BAKHTIN, 2011, p. 280).

Pensando na forma das histórias em quadrinhos, a conclusibilidade pode ser entendida como a propriedade pela qual o leitor percebe a história ou tira em quadrinhos como “completa”, “finalizada”. Isto é, a tira ou história em quadrinhos torna- se enunciado e o leitor compreende que, dentro daquele espaço e contexto, com aquele conjunto limitado e definido de painéis, imagens e textos, o autor de quadrinhos “disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer”, seja em uma linha de três ou quatro quadrinhos na página de jornal ou na conclusão da sequência de páginas de uma história em quadrinhos dentro de uma revistinha (inúmeras vezes assinalada com um pequeno e emblemático “FIM” para evitar qualquer dúvida para o leitor).

A forma da tira em quadrinhos se consolida pela publicação nos jornais do final do século XIX e início do XX, com limitações técnicas que restringem seu espaço e determinam uma estrutura narrativa. Com a publicação digital, os produtores de histórias em quadrinhos acabam retomando esse formato, que se mostra adequado ao espaço de visualização oferecido pelos diversos dispositivos digitais (tela do computador, do celular, etc). Ainda que esses dispositivos não determinem necessariamente um espaço limitado, a forma das tiras revela vantagens de produção e distribuição.

É menos trabalhoso para o autor de quadrinhos elaborar um enunciado que se conclui em três ou quatro painéis, ainda que esse enunciado possa se associar com outros que o precederam e com outros que o sucederão dentro de uma série ao

longo de dias ou semanas. Também é mais interessante elaborar uma peça de quadrinhos que precise apenas de um espaço visual limitado para sua leitura e compreensão e funcione de maneira independente como enunciado, porque isso facilita o compartilhamento e, portanto, amplia o alcance da tira pelas redes sociais129.

As histórias em quadrinhos longas distinguem-se das tiras não apenas por excederem o uso de três ou quatro painéis. Aliás, o número de painéis não necessariamente distingue as tiras das histórias longas. Como diferença maior, a história em quadrinhos longa ou comic book desenvolve seu enunciado por mais de uma prancha, demandando a virada de página impressa ou rolagem da página digital. Para Groensteen (2015), os quadrinhos são um sistema no qual a unidade básica é o quadro ou painel, isto é, a imagem que representa uma situação específica no espaço e no tempo (uma ação, personagens, objetos, etc). O quadro é isolado dos outros por vazios ou por contornos bem definidos chamados requadros. Através da solidariedade icônica, os quadros relacionam-se entre si, criando significados. O espaço compositivo no qual os quadros são dispostos, permitindo sua visualização simultânea, é chamado de prancha. Em termos práticos, a prancha é do tamanho da folha de papel disponível para o artista desenhar, mas as dimensões desse desenho devem ser pensadas visando atender às demandas de espaço das publicações. Assim, a prancha pode conter a tira horizontal para os jornais (o formato típico das

comic strips), a tela de computador, a página de revista ou o conjunto de páginas

duplas. Entendemos, portanto, a história em quadrinhos longa como aquela que pede a virada de página para o desenvolvimento de seu enunciado.

A produção brasileira de quadrinhos se desenvolve, nessas décadas iniciais do século XXI, em torno dessas duas formas: a tira e a história em quadrinhos, sendo que, dessa última, destaca-se a forma de álbum ou livro de quadrinhos, com uma história fechada e voltado para a venda em livrarias, comic shops e lojas online.

5.3.3 Condições de produção

Nesse aspecto, as questões são relativas à distinção entre as publicações de histórias em quadrinhos convencionais ou mainstream e as publicações consideradas independentes.

129 A respeito dessas especificidades da produção de tiras digitais, sugerimos as leituras de

Pensar no independente como uma prática relacionada à autopublicação pode ser bem eficaz em um primeiro momento, mas, como vimos, mostra-se um tanto impreciso para certos casos. O “independente” baseado em autopublicação acaba encobrindo outras características que são mais interessantes como a postura crítica e política. Muitas histórias em quadrinhos consideradas “independentes” assumem formas e discursos mainstream visando intencionalmente esse mercado convencional e estabelecido, de modo que podemos tomar essa suposta produção independente como um curioso “mainstream autopublicado”.

O termo “independente” também é associado ao controle que o produtor tem sobre os aspectos ideológicos e formais da sua produção de histórias em quadrinhos. Nesse sentido, o termo “autoral” surge como sinônimo de “independente”. Um trabalho “autoral” seria aquele que apresenta aspectos estilísticos muito particulares de um produtor, que supostamente não estão presentes quando este produtor realiza um trabalho sob encomenda. O termo frequentemente denota uma intenção de separar a produção “artística” da “comercial”.

Assim, o produtor que realiza sua história em quadrinhos de modo independente faz um trabalho “autoral”, mas, quando usa de suas habilidades para criar um trabalho sob encomenda, submetendo-se às demandas de uma editora, perde essa condição. O termo “autoral” é problemático porque deprecia o trabalho de diversos produtores que atuam ou atuaram em condições de proletário, reforçando a alienação e expropriação desse trabalho. Mesmo atendendo a demandas externas ou sendo obrigado a fazer concessões, o produtor sempre mantém certos traços muito particulares em suas criações.

É importante considerar também o teor ideológico das obras, porque eles também demonstram e são materializações de questões e intenções dos processos de composição e produção da obra, situando-a na realidade. O teor ideológico da obra, sua composição, é inextricável de suas condições de produção e revelam muito sobre nosso atual cenário e sociedade.

Muitos autores e autoras de quadrinhos apresentam algum engajamento em suas obras. A autopublicação é uma condição insuficiente para ponderar sobre os aspectos alternativos e opositores de uma obra, que devem ser pensados na totalidade dessa obra, suas condições de produção e sua relação com o entorno social.

Assim como há muitas publicações independentes que reproduzem e almejam a condição de mainstream, é possível encontrar dentro das publicações de editoras “convencionais” obras que apresentam, em sua composição, um teor ideológico genuinamente alternativo ou mesmo opositor. Para ilustrar esse ponto, tomamos quatro casos de autores de histórias em quadrinhos: os autores Pedro Franz, Bianca Pinheiro, Marcello Quintanilha e Marcelo D’Salete.

Franz é um representante da produção efetivamente alternativa, que se desenvolve fora das lógicas de mercado, priorizando não a comercialização de suas obras, mas as propostas de arte e a meta de atingir as pessoas sem a intermediação do comércio.

Bianca Pinheiro é uma autora que inicia suas atividades produzindo histórias em quadrinhos autoeditadas online e impressas, trabalhando com elementos comumente relacionados com as produções de entretenimento de gêneros infantil, fantasia e terror. Participa de diversas publicações independentes, sendo convidada pelo editor Sidney Gusman para produzir o álbum Mônica – Força para a Maurício de

Sousa Produções (MSP).

Quintanilha e D’Salete representam autores que trabalham com editoras comercialmente estabelecidas. Os dois, no caso, com a editora Veneta, de Rogério de Campos. Operam dentro de uma lógica de produção muito similar à produção literária.

A intenção em analisar esses autores e suas obras é ilustrar como aspectos alternativos ou mesmo opositores podem ser encontrados tanto na produção independente quanto na suposta produção mainstream.

5.4 PEDRO FRANZ

Pedro Franz130 nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 1983. Estudou

artes na UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina), graduou-se em Design Gráfico pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) em 2008 e ganhou seu primeiro Troféu HQ Mix em 2009 por seu trabalho de conclusão de curso (TCC), A

130 O nome completo é Pedro Franz Broering e é utilizado na autoria do TCC e da dissertação

aqui citados. Assim, optamos por referenciar os documentos acadêmicos pelo nome completo (BROERING, 2015), enquanto que as obras em quadrinhos são atribuídas apenas à forma nominal mais usada pelo autor em sua atividade de artista visual: Pedro Franz.

quarta dimensão do trabalho de Breccia131. Concluiu o mestrado em Artes Visuais em

2015, no programa de pós-graduação da CEART/UDESC e sua dissertação132 fazia

parte de um projeto chamado Incidente em Tunguska, também constituído por uma exposição e por uma publicação de histórias em quadrinhos.

A primeira experiência de Franz com histórias em quadrinhos foram duas edições de um fanzine chamado Café com Leite, produzidas entre 2001 e 2003. Depois disso, perdeu qualquer interesse pelo meio (MANOEL, 2010), até que, após um período de 2 anos morando na Argentina, redescobriu as histórias em quadrinhos, principalmente por causa do contato com a produção de Alberto Breccia, que foi tema de seu trabalho de conclusão de curso.

Em 2009, após a conclusão do TCC, Franz começou seu primeiro grande projeto de história em quadrinhos, a série Promessas de amor a desconhecidos

enquanto espero o fim do mundo.

Promessas de amor... foi planejada para três publicações impressas de

histórias em quadrinhos, cada uma apresentando um formato físico e narrativo diferentes. A variação de formatos entre as três publicações foi uma escolha consciente de Franz.

Desde o começo eu tinha claro o que eu queria: dividi a história em 12 capítulos – cada capítulo com 12 páginas –, e os separei em 3 volumes. Já tinha a ideia de que cada um teria uma linguagem diferente, mas não tinha uma noção exata de como se daria essa diferença. Eu queria que o primeiro [Limbo] tivesse uma cara mais pop, uma cara de gibi mesmo, em papel jornal e em um formato um pouco maior. Enquanto eu desenvolvia o primeiro, passei a me interessar em explorar a relação texto e imagem por outro caminho, menos convencional (FRANZ, 2011).

A princípio, as páginas foram publicadas na internet, em um blog133, que

também apresentava registros do processo de produção. Depois, contemplada pelo Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, da Fundação Catarinense de Cultura, a primeira edição foi publicada no início de 2009.

131 Disponível em: <https://sobreofim.files.wordpress.com/2009/04/breccia_pfranz.pdf>. 132 Disponível em: <http://www.tede.udesc.br/bitstream/handle/717/1/DISSERTACAO_

INCIDENTE_EM_TUNGUSKA.pdf>.

133 A íntegra das três edições ainda está disponível em uma versão digital para leitura online

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