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Gostaria de abordar agora, brevemente, a fortuna crítica de E. T. A. Hoffmann, especificamente os textos críticos sobre o conto “Das Fräulein von Scuderi”. Principalmente na Alemanha, mas também na França, país no qual as obras do autor foram muitas vezes publicadas, a bibliografia crítica concernente ao autor é bastante extensa e seria exaustivo comentá-la. Por conseguinte, eu precisei fazer um recorte e me detive em alguns estudos mais sugestivos e polêmicos relacionados a este conto, por considerar que, neste caso, as concepções contraditórias sobre a literatura de Hoffmann ficam mais evidenciadas.

Coincidentemente, quase todos os estudos que li sobre “A Senhorita de Scudéry” estão praticamente restritas à questão do gênero. Eu me reportarei, a seguir, aos estudos publicados na revista Comunicações da Sociedade Hoffmanniana (Hoffmann-Gesellschaft), instituição que busca polarizar as pesquisas sobre o autor e sua obra.

Em artigo publicado em 1964 na mencionada revista, Klaus Kanzog88 procura mostrar como o conto evolui sob a forma de uma

narrativa policial. Ele aponta os elementos criminalísticos presentes, concentrando-se na figura detetivesca de Scudéry, que, a partir do momento em que se torna ouvinte das confissões — de Olivier Brusson e do Conde de Miossens —, passaria a desempenhar o papel de advogada. Por exercê-lo com brilhantismo, ouve finalmente o elogio do rei, segundo o qual ela deveria ser advogada do parlamento.

Ainda segundo o estudo de Kanzog, os depoimentos das testemunhas e as revelações dos vários segredos (provas) que vão gradativamente se complementando adquirem um valor jurídico. Em

88 KANZOG, Klaus. “E. T. A. Hoffmanns Erzählung Das Fräulein von Scuderi als

Kriminalgegeschichte” (O conto A Senhorita de Scudéry de E. T. A. Hoffmann como Conto Policial). In: Mitteilungen der Hoffmann-Gesellschaft (Comunicações da Sociedade Hoffmanniana) 11, Bamberg, 1964. P. 1-11.

Hoffmann, então, seria possível reconhecer, além da figura do detetive, o “sistema de provas ocultas” (System der versteckten Hinweise) com relação ao criminoso. Ambos os pólos constituem aspectos determinantes na configuração das “histórias de detetive” e de crime (“policiais”).

No número 27, de 1981, a mesma revista publicou o artigo de Gisela Gorski, “’A Senhorita de Scudéry’ como História de Detetive”89.

A pesquisadora apresenta alguns elementos que conduziriam à classificação do conto como história de detetive, mas, no entanto, conclui refutando sua argumentação inicial. Segundo Gorski, as críticas de Hoffmann às máximas do Iluminismo e sua abordagem da noite impedem o estabelecimento de um gênero que alia justamente a clareza dos indícios e a astúcia para fazer combinações de pistas e decifrações de mistérios.

Nesse ensaio, Gorski apresenta várias restrições a respeito do conto de Hoffmann. Uma delas, por exemplo, parte da autoconfiança de Scudéry, que espera descobrir algumas pistas para a solução do caso durante a conversa com Brusson, isto é, ela acredita na própria perspicácia para perceber pormenores que a justiça talvez tenha negligenciado. Gorski chama a atenção para a configuração diametralmente oposta entre a detetive e la Regnie (representante da lei), uma oposição nem tanto intelectual, mas principalmente caracterológica. A pesquisadora critica tais diferenças e afirma que nos futuros romances de detetive essas gradações viriam a ser mais sutis.

Concordo com a pesquisadora: não por achar que a justiça tenha sido posteriormente representada de uma maneira mais flexível nos romances policiais do que o foi através do personagem la Regnie neste conto. Na literatura do gênero, desde os anos 20 do século passado, mais ou menos, alguns detetives incorporam atributos negativos tradicionalmente legados aos criminosos. Segundo uma tendência dos

89 GORSKI, Gisela: “Das Fräulein von Scuderi als Detektivgeschichte” (A Senhorita de

Scudéry como História de Detetive). In: Mitteilungen der Hoffmann Gesellschaft (Comunicações da Sociedade Hoffmanniana) 27, Bamberg, 1981. P. 1-15.

romances noir, surgidos, sobretudo, no rastro dos heróis Phillip Marlowe, de Raymond Thornton Chandler (E.U.A.: 1888-1959) e Spade, de Dashiell Hammett (E.U.A, 1894-1961), este último autor dos clássicos O Falcão Maltês, Continental Op e Seara Vermelha, os detetives passam a ser caracterizados, em vários romances, como sujeitos solitários, grosseiros e mesmo violentos. Uma ilustração representativa do tipo é o sarcástico e duro detetive Karl Craven, criação de um dos roteiristas mais requisitados pela produtora cinematográfica Hollywood no pós-guerra, Jonathan Wyatt Latimer (1906-1983). Naturalmente não estou incluindo todos os detetives nesse rol: Miss Marple, por exemplo, a curiosa velhinha, heroína de Agatha Christie é uma exceção.

Um outro importante ensaio referente ao conto “A Senhorita de Scudéry” é o de Richard Alewyn90. Trata-se da mais influente e

categórica postulação do pioneirismo do gênero “história de detetive” dentro da fortuna crítica de Hoffmann. Segundo Alewyn, esta narrativa encerra, juntamente com motivos secundários, os três elementos que constituem o romance de detetive:

- o primeiro elemento seria o crime, ou a série de mortes que sucedem no início, com a respectiva elucidação final;

- o segundo seria o suspeito inocente e o insuspeito culpado; e,

- o terceiro, a detecção, executada, não através da polícia, mas de alguém de fora.

Um outro elemento, não necessariamente indispensável, seria o “quarto fechado” (locked room).

Essa discussão a respeito do gênero do conto será por mim retomada e complementada no capítulo “Metamorfoses formais”, dedicado exclusivamente ao assunto. Adianto, contudo, essas opiniões

90 ALEWYN, Richard: “Ursprung des Detektivromans”. In: R. A., Problem und

Gestalten. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1974. Pp. 351-54.Originalmente: “Das

Rätsel des Detektivromans”. In: Definitionen, org. por Adolf Frisé, Frankfurt am Main: Klostermann, 1963. PP. 117-136.

sobre o conto, porque acredito que trazem contribuição relevante para os estudos sobre “A Senhorita de Scudéry”.

Finalmente, gostaria de mencionar o trabalho de Karin Volobuef, que, no ensaio mencionado “E. T. A. Hoffmann: ‘Urheber einer der ersten brasilianischen Kurzgeschichten’” (E. T. A. Hoffmann: ‘Autor de um dos primeiros contos brasileiros’), divulga a descoberta de que “Os Assassinos Misteriosos ou A Paixão dos Diamantes”, o conto de Justininiano José da Rocha, é uma versão para o português da versão francesa que Latouche fez de “A Senhorita de Scudéry”.

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