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Fotografia e título

No documento Foto de Segunda (páginas 59-65)

3. FOTO DE SEGUNDA

3.2. Fotografia e título

Em uma palestra no MoMa, Duchamp afirmou que a curta sentença, que ele ocasionalmente insere no readymade, é uma característica importante, pois, ao invés de descrever o objeto, tem a intenção de levar a mente do espectador para outros lugares (1961 apud JUNGLE, 2014, p.53). É com esta citação a Duchamp que Tadeu

Jungle, em seu livro VIDEOFOTOPOESIA, inicia a descrição de seu trabalho Foto de Segunda.

Todas as modificações que Duchamp exerce nos objetos devem-se a pequenos indícios como a imposição de um título que indique um outro sentido, [...]. A relação entre o objeto e o título cria um questionamento não só da própria arte como permite uma multiplicidade de interpretações que acabam por estabelecer um ciclo vicioso: o urinol (Fountain) tanto pode ser uma fonte como uma fonte pode ser um urinol. A forma como se começaram a observar as coisas diárias mudou o paradigma de como o espectador observa tanto a realidade à sua volta como a dita arte, e os artistas tomaram como uma parte referencial o encontro com o objeto e a criação, aliando a arte à vida (MATEUS, 2010, p. 14).

Foto de Segunda se compõe do binômio fotografia e título. Atua como uma legenda do autor sobre a imagem. Reforça a presença marcante do textual na obra de Tadeu Jungle, que vem de suas pichações, stickers, poesia visual, postais e está presente também em sua fotografia (vide Estradas, Camas, Reflexões).

O título neste trabalho não cumpre a função de descrever a fotografia e sim de gerar uma composição de abertura, que permita idas e vindas, retornos e continuidades, derivas e associações, faz a imagem adquirir um outro tipo de visibilidade. (ABREU, 2011, p. 96).

Em A filha mais velha é a cara do pai (figura 13), vê-se na fotografia três molhos de alimentos, provavelmente alho, pimenta e shoyu, acompanhados por um saleiro e um paliteiro sobre uma mesa. Através do título se sugestiona que este conjunto, comum em restaurantes populares, seja a representação de uma família. Os “pais”, molhos de pimenta e shoyu, no centro do retrato familiar. A “filha mais velha” seria o molho de alho, que por ter a tampa vermelha, mesma cor do molho shoyu, seria a “cara do pai”. Os menores objetos, saleiro e paliteiro, seriam os “filhos mais novos”. A disposição dos objetos, após a leitura do título, permite visualizar certa referência a poses comuns em fotos de família.

Tem uma foto minha, logo no começo, era um título familiar, um vidro de pimenta, sal, açúcar, aquilo era uma família. Eu olhei aquilo e vejo uma família, estou humanizando aquilo, eu acho que ali que tem uma beleza. Uma graça, uma transformação, as coisas estão. Como você as vê, é que transforma ou muda, você coloca desejo em esses seres inanimados. Você vê ações, cria histórias. Tem uma outra com um bando de canudinho em cima de mesa, eu fiz muita foto em cima de mesa, um monte de canudinhos onde o título é “Ramalhete para sugar

você”. Aquilo é um ramalhete de flores. A hora que você vê a foto, você nem vê o canudinho direito. “Ah canudinhos, que beleza este abstrato”. A hora que você desce e vê “Ramalhete para sugar você”, o cara fala “uou”. Ali vira outra visão, a minha, entendeu? Mas a foto também está ali, tenta estar justificada, ser interessante, para o cara (JUNGLE, 2018, p. 132).

Figura 13: Tadeu Jungle , A filha mais velha é a cara do pai – Foto de Segunda (2003- 2010).

A fotografia, assim como qualquer imagem, utiliza-se dos próprios códigos para pôr em foco um elemento que queira ressaltar. Porém uma imagem não é nem uma proposição ou declaração. Esta falta de capacidade assertiva da imagem é sentida como polissêmica (JOLY, 2005, p.112). Comumente utiliza-se o textual para aplacar este caráter da fotografia.

Estas exigem um determinado tipo de recepção, não sendo mais adequadas a uma contemplação descomprometida. Perturbam o espectador, o qual percebe que deve procurar um determinado caminho para alcançá-las. As revistas ilustradas também começam a apontar-lhes caminhos, corretos ou falsos, pouco importa. Nelas, pela primeira vez, legendas se tornam obrigatórias. Evidentemente, as

legendas desempenham nessas fotografias um papel muito diferente daquele dos títulos de pinturas (BENJAMIN, 2012, p.20).

A legenda junto à imagem para diminuir seu caráter polissêmico, seja no jornalismo ou na publicidade (tão conhecida por Jungle), é o que se subleva do uso comum em Foto de Segunda. O título desvincula-se da premissa de especificar o que fora fotografado.

Figura 14: Tadeu Jungle, Ramalhete para sugar você – Foto de Segunda, (2003 - 2008).

O autor, ao colocar uma legenda, toma uma posição. Há simultaneamente uma lógica textual e imagética, que requer um tipo de leitura, uma deambulação. Solicita uma entrega ao que se apresenta de modo sensível através do olhar (ABREU, 2011, p.159).

Enfim, a legenda não implica apontar um significado, mas orientar a leitura destacando os possíveis e as contradições que podem ser percebidas no encontro com a imagem (ABREU, 2011, p.160).

É o título em Foto de Segunda, aparentemente documental, que revela o caráter, já explicitado, do que se entende como fotografia-expressão. A força do “eu” surge através do textual de maneira semelhante ao que ocorre na série já citada de

Raymond Depardon, Correpondance new-yorkais. Em ambos os trabalhos, as palavras junto a imagem denotam a onipresença do autor, opondo-se à rejeição da individualidade do operador da fotografia-documento.

A distância, recorrente na série, entre a imagem e o texto tem como efeito revelar o sujeito Depardon no âmago do fotógrafo; e, entre a realidade e a imagem fotográfica, interpor uma outra realidade [...]. Esse encaixe de uma imagem mental no interior da imagem da realidade, essa presença de um outro lugar dentro do aqui, essa mistura inextricável do virtual e do atual, do subjetivo e do objetivo, e sobretudo essa irrupção de um "eu", em um processo reputado em excluí-lo (ontologicamente), tudo isso derruba a ilusão de domínio, projeta a imagem para fora dos limites confortáveis do aqui e agora, e condena-a a perder para sempre o real, pelo menos o da fotografia- documento. Em resumo, tudo isso destrói o projeto documental. ‘É meu desafio, meu objetivo, fazer cinema e foto exprimindo-me’ confidenciará Depardon” (ROUILLÉ, 2009, p.168).

Havia uma onipresença de Jungle sobre toda Foto de Segunda pelo título da imagem, um revelar do autor naquela fotografia. Desafiou o projeto documental, inventou uma prática da fotografia que procurou apresentar que existe alguma coisa que não é apresentável (ROUILLÉ, 2009, p.175).

Figura 15: Tadeu Jungle, As amigas se reúnem para o chá da tarde 2 – Foto de Segunda (2003 – 2014).

A dissociação da coisa, vem lá de Duchamp, a ideia de separar alguma coisa de seu uso e colocá-la em outro lugar. E isso a fotografia é capaz de fazer. Você pega um vaso, tem uma foto minha que são vários vasos e denominei de senhoras ou chá da tarde, não lembro bem, mas chamando aqueles vasos de senhoras. Eu vejo isso, literalmente, eu vejo. Eu olho para aqueles vasos, para mim são senhoras que estão conversando, estão juntas, eu vejo isso (JUNGLE, 2018, p. 136). O nome deste trabalho já era um indício de uma produção guiada por uma política da ironia, certas vezes carregado de humor, outras por alguma melancolia, ou mesmo em um revelar do belo diante do banal. Foto de Segunda, ao mesmo tempo que afirmou em seu nome o dia de sua revelação, às segundas-feiras, fazia piada de si mesmo ao também levar a um entendimento de tratar-se de algo de segunda linha.

A percepção da ironia em Foto de Segunda não se dá como um recurso onde o sentido oposto substituirá o significado literal, mas sim como incongruência (que não é contrariedade). Título e imagem devem ser percebidos juntos, para a comparação incôngrua gerar a interpretação irônica.

Para invocar uma outra imagem, essa pode ser uma versão do que, em música, se chama voz tríplice: duas notas tocadas juntas produzem uma terceira nota que é, ao mesmo tempo, ambas e nenhuma delas. A ironia, então, compartilha com os trocadilhos uma simultaneidade e uma superposição de significados. Ao passo que, na realidade, é claro, uma das notas da ironia é literalmente muda, não dita, pensar em termos de tocar juntas duas ou mais notas semânticas para produzir uma terceira (irônica) têm pelo menos uma vantagem sobre a imagem relacionada da ironia com uma exposição dupla fotográfica: ela sugere mais que simplesmente o espaço superdeterminado de sobreposição ao implicar uma ideia de agir e interagir na criação de um terceiro significado – o irônico verdadeiro (HUTCHEON, 2000, p.93).

A ironia em Foto de Segunda funcionou pela inadequação do título em descrever a imagem, imprópria neste fim, mas que marca a presença do autor entre a coisa e a fotografia. O público foi compelido a reinterpretar o binômio foto e título, “o dito e o não dito trabalhando juntos para criar algo novo” (HUTCHEON, 2000, p.97).

A ironia tem alguma coisa mais elevada que a bufonaria. Pela primeira, faz-se uma brincadeira em vista de si mesmo, enquanto o bufão ocupa-se de um outro (ARISTOTE apud BRAIT, 1996, p.21).

No documento Foto de Segunda (páginas 59-65)