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O entendimento do fracasso escolar vem movendo discussões e pesquisas de teóricos da área educacional desde a década de 60 e tem sido visto como um fenômeno perverso sustentado pelos grandes vilões da escola pública, ou seja, a repetência, a evasão e conseqüentemente a exclusão de significativa parcela de nossas crianças que se encontram à margem do processo de escolarização.

Vários são os aspectos apontados como causadores do fracasso escolar no decorrer de sua história e diversos foram os agentes considerados culpados pela sua existência, dentre eles os alunos, professores e a escola. Apesar da preocupação em encontrar os culpados por esta problemática, a partir dos anos 90 a busca de explicações para a existência do mesmo no meio educacional, perde espaço para os estudos voltados para as políticas neoliberais de enfrentamento do mesmo e sua ineficiência em combatê-lo.

Apesar de ser um fenômeno que abarca todas as áreas do conhecimento, avaliações externas às escolas e pesquisas realizadas no meio, apontam as disciplinas de língua portuguesa e matemática como sendo um “território minado”, propenso a refletir de forma enfática as conseqüências de uma educação historicamente excludente que hà décadas vem sendo pautada nos moldes do fracasso escolar.

Pensar o ensino e a aprendizagem de Matemática em nossas escolas hoje não é uma tarefa fácil principalmente quando associada à idéia de educação de massa – forte característica do governo do Estado de São Paulo, no entanto, não exclusiva do mesmo – na tentativa de promover a verdadeira democratização de ensino para os alunos, independente da classe social a qual pertencem, através de medidas como a progressão continuada e as classes de Correção de Fluxo.

Nos últimos dez anos, a disciplina em questão e inevitavelmente seu processo ensino aprendizagem passou por uma significativa mudança qualitativa, proveniente entre outros fatores, dos efeitos ilusórios, ou podemos dizer, negativos, dos ideais e aspirações políticas almejadas desde a Segunda Guerra Mundial, por diversos países. Era interesse dos governantes promoverem uma educação igualitária para todos aos olhos da sociedade.

As conseqüências curriculares permeadas por essa mudança qualitativa agregadas ao seu caráter de universalidade vêm perpetuando a Matemática como filtro seletor de elementos que serviram e ainda servem exclusivamente ao poder. Segundo D’ AMBROSIO

(1998):

A superioridade de quem atingiu um nível mais alto em Matemática é reconhecida

por todos, sendo a habilidade matemática uma marca de gênio. A abordagem crítica a cognição, à estrutura social e a independência do Estado, isto é, à organização geral do mundo, nos coloca numa posição de necessidade urgente de examinar o papel da Matemática no nosso sistema educacional, partindo de uma perspectiva nova. Problemas como a decadência do meio ambiente, violação de privacidade, falta de segurança, fome e doenças, ameaça de guerra nuclear, são idéias para o exercício de pensar sobre o futuro. (D’ AMBROSIO, 1998, pág. 25)

Para tentar combater a educação matemática que classifica os indivíduos, excluindo-os em sua maioria e gerando uma situação de fracasso escolar, faz-se necessário que critiquemos de forma consciente os mecanismos que levam a disciplina a cumprir este papel pouco digno em nossas instituições de ensino.

Como ilustração do processo de exclusão gerado pela matemática em nossas escolas, podemos citar a pesquisa realizada pela UNESCO em 2003, cujo objetivo foi checar a capacidade de compreensão matemática e científica entre os alunos com idade aproximada de 15 anos, ficando o Brasil classificado em 40º lugar entre os 41 países que participaram da pesquisa.

Em relatório emitido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo analisando os resultados do SARESP – de 2000, foram destacados três importantes itens – 25% dos alunos que fizeram a prova e que freqüentaram quintas séries no ano de 2000 já haviam sido reprovados uma ou mais vezes, 11,3% do total de alunos haviam freqüentado classes de aceleração e 38,7% dos alunos disseram ser a Matemática a disciplina mais difícil.

Os dados evidenciam como a Matemática escolar vem mostrando-se um obstáculo para os indivíduos que querem continuar a escolarizar-se.

Idealizar uma matemática que cumpra com mais eficácia seu papel nas vidas dos indivíduos é procurar entender e combater, segundo D’ AMBROSIO (1998, pág. 15) mecanismos como: programas obsoletos, terminalidade discriminatória e reprovação intolerável. O autor aponta estes três pontos como sendo inteiramente responsáveis pelo questionamento sobre a manutenção do saber matemático nas instituições escolares.

Quando destaca a reprovação intolerável, D’ AMBROSIO conclui:

É absolutamente significativo que um exame possa causar um retrocesso no decorrer do tempo biológico e psicológico de um indivíduo. Além disso, as conseqüências sociais, como por exemplo, marginalização culturais e econômicas da reprovação são intoleráveis para qualquer sociedade. (D’ AMBROSIO,1990, p. 15)

Quando abordamos a relação da matemática escolar com os altos índices de reprovação, podemos considerar nossa experiência pessoal e profissional. Se fizermos uma

análise em nosso percurso escolar nos lembraremos que ao chegar o final do ano letivo a disciplina que mais retinha e retém alunos, ou mesmo os deixavam de “recuperação” é a Matemática.

Construir uma nova concepção sobre a Matemática, enquanto um saber científico a serviço dos interesses sociais implicava entre outros, repensar o que há de mais complexo no processo ensino aprendizagem da disciplina, ou seja, a prática pedagógica.

A reflexão que deve permear esta prática, no entanto, necessita ser direcionada a partir da responsabilidade de construção de um futuro mais promissor, ou melhor, deve definir se reproduziremos o passado ou nos apoiaremos em modelos atuais, aderindo às pedagogias pós-modernas, onde apenas o imediato tem valor, ou seja, deixa-se de lado o conhecimento historicamente acumulado por alegar-se que este não servirá à “realidade” do aluno, sem considerar que tal conhecimento é a essência do saber escolar. Construir um futuro que seja melhor do que o passado e o presente seria resgatar em primeiro lugar a Matemática como uma disciplina acessível a todos os indivíduos.

D’ AMBROSIO (1998) destaca a opinião de Duncan Kennedy sobre a posição que o professor vem ocupando na relação Matemática/poder: “os educadores de matemática

ensinam os alunos a acreditarem que as pessoas e instituições se organizam em hierarquias de poder de acordo com sua capacidade matemática.”

Desta forma, aqueles que sabem menos matemática – como é o caso dos alunos – acabam que sendo excluídos a principio da comunidade escolar e posteriormente das instituições que poderiam vir a fazer parte na vida adulta. Os indivíduos passam a entender o conhecimento matemático como fator determinante para a posição de fracassado que poderá vir a ocupar.

Em estudo publicado pela Anped, 27ª reunião no ano de 2004, cujo tema foi

“Sociedade, Democracia e Educação: Qual universidade?”, Kessler retoma a teoria de Bourdieu – quando define habitus – relacionando o campo científico com a prática escolar na geração do fracasso escolar a que a autora atribui o nome de exclusão por conhecimento na disciplina de Matemática.

BOURDIEU (1994, p.65) define o conceito de habitus:

Um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepção, de apreciação e de ações, e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados

obtidos, dialeticamente produzidos por esses resultados. (BOURDIEU, 1994 apud KESSLER, 2004)

Ao estudar a relação entre a prática escolar e o saber científico, Kessler (2004) defende que o habitus – principio gerador e estruturador das práticas e das representações – sustenta um sistema de mensagens que permeiam o processo de ensino e aprendizagem de Matemática.

Para a autora, Bourdieu entende que o campo científico e o habitus se correlacionam dando origem um ao outro, ou seja, uma mentalidade produzida pela prática de forma a incorporá-la nos indivíduos que as realizaram gerando a exclusão por conhecimento. Assim sendo, KESSLER (2004) define o que para ela gera este tipo de exclusão como sendo:

[...] o processo de delimitação simbólica construída a partir de ações voltadas à restrição do campo de significação através do conhecimento. Isto significa que estas ações, mesmo que se apresentem envolvidas em um determinado conhecimento, não são apenas de ordem epistemológica, mas sobretudo política na medida em que se encontram envolvidas em diferenciadas relações de poder. (KESSLER, 2004, p. 2)

Ao discutir os sistemas de mensagens que dinamizam as práticas pedagógicas no ensino formal gerando tal exclusão, KESSLER (2004) cita BERNSTEIN (1985) e os definem como sendo o currículo, a pedagogia e a avaliação. Estes sistemas acontecem e reproduzem- se em um cenário de seleção, exclusão, organização e distribuição baseadas no que chamamos de conhecimento legítimo.

Não podemos pensar todos os fenômenos que permeiam o ambiente no qual se desenvolvem os sistemas abordados acima, como sendo neutros e alheios ao processo de ensino e aprendizagem desenvolvidos na sala de aula, pois são eles que produzem o sucesso ou o fracasso escolar.

Kessler conclui: “...a forma como o currículo de matemática se constitui e se

materializa na sala de aula, a pedagogia e a avaliação, neste espaço, desenvolvidas vinculam-se, na minha compreensão, ao habitus do professor de matemática”.(2004, pág.2)

A autora aponta também para a relação entre o poder e o controle existente nas aulas de matemática e o habitus do professor de Matemática. Não é de hoje que esta relação vem nutrindo a exclusão que neste caso é produzida pelo próprio sistema de ensino, reforçando as desigualdades existentes, tanto na sociedade como no ambiente escolar.

Salienta ainda que a Matemática escolar, na maioria das vezes, foi apresentada a nós professores e aos nossos alunos enquanto saber científico, como algo pronto e acabado, sem uma história, como se não houvesse erros, o que vem alimentando a idéia de que esta

ciência e as pessoas que com ela trabalham são totalmente desprovidas de sentimentos, emoções e vida.

KESSLER cita ainda LANGEVIN (1993):

Aprende-se as leis, as fórmulas que as traduzem e, posteriormente sua utilização. Este ensino, ao negligenciar o ponto de vista histórico, acaba dando a impressão falsa da existência de um conhecimento pronto e acabado; de que a ciência é uma coisa morta e definitiva. (LAMGEVIN, 1993 apud KESSLER, 2004)

A autora ressalta, “a matemática apresentada aos alunos é uma Matemática árida,

asséptica, um solo fértil para a instalação de inflexibilidade, da intolerância, da rigidez.” (KESSLER. 2004, p. 6)

Uma outra questão que agrava a forma excludente como a matemática vem sendo trabalhada na sala de aula é que o saber matemático encontra-se arraigado em nossa cultura como algo sagrado, o que faz com que o fracasso escolar nesta área seja encarado com naturalidade, inclusive pelos pais que também passaram por situações de fracasso, o que não ocorre em outras áreas do conhecimento. Ver a Matemática como algo sagrado também faz parte do hábitus do professor de Matemática.

Sendo visto como algo sagrado, o conhecimento matemático passa a ser considerado uma propriedade privada, não sendo visto como direito e sim como algo a ser ganho, merecido.

Ainda segundo Kessler, ver a Matemática como conhecimento privado, dando a quem a domina o status de detentor de um monopólio, vem se perpetuando desde os pitagóricos, em cuja sociedade somente as mentes brilhantes eram aceitas.

Alguns fatores desde aquela época vêm propiciando a situação de fracasso escolar vigente na disciplina de Matemática na sala de aula: isolamento entre o conhecimento puro e aplicado, o não estabelecimento de relações entre o saber matemático e o cotidiano do aluno, a falta de espaço para iniciativas individuais. Há uma idealização do aluno e predominância do tempo didático sobre o tempo de aprendizagem, ou seja, há uma preocupação contundente por parte do professor de Matemática no cumprimento do programa que lhe é estabelecido.

Há no meio educacional, principalmente quando falamos em ensinar e aprender Matemática, uma pedagogia visível, que silenciosamente dá ritmo ao que o aluno deve aprender em cada faixa etária – trata-se do currículo coleção.

Espera-se do aluno que freqüenta a 6ª série do ensino fundamental, por exemplo, que o mesmo esteja apto a aprender o conceito dos números inteiros em determinado bimenstre, sem levar em consideração, que aquele pode não ser o momento ideal para tal

aprendizagem. A estreita associação entre os conteúdos, séries e idade cronológica dos alunos caracterizam o currículo coleção. Sobre isso, KESSLER cita BERNSTEIN (1985):

O conceito de progressão da criança é explícito e, em certa medida, a própria criança sabe o que dela se espera, podendo ou não se identificar com esse modelo. Conhecendo os sinais indicadores da progressão, é lhe possível ler a sua significação. (BERNSTEIN, 1985 apud KESSLER, 2004)

Este tipo de “regra” persiste em nossas escolas privilegiando apenas uma pequena quantidade de alunos, excluindo os demais, ou seja, condenando-os ao fracasso escolar, situação predominante não apenas na disciplina de Matemática, mas destacavelmente nela. A competitividade passa a ser um obstáculo principalmente para os alunos que estão em defasagem de conhecimento, ou melhor, aqueles que não dominam a comunicação pedagógica prevalecente.

O aluno, perante o currículo estabelecido por séries, é visto como uma pessoa incapaz, com poucos direitos, pois quanto mais fortes forem as regras deste currículo, maior a hierarquização das relações sociais, reforçando assim a exclusão por conhecimento.

Para BERNSTEIN (1985):

À medida que decorre a vida escolar e que vai se processando a especialização, os alunos vão sendo selecionados de modo a serem eliminados aqueles que não são capazes de atingir a última etapa da caminhada em que todos estavam inicialmente envolvidos. Assim, os alunos que ultrapassam a etapa do “noviciado” adquirem uma identidade educacional que dificilmente será alterada, enquanto aqueles que fracassam, sentem o conhecimento como violência simbólica. (BERNSTEIN, 1985 apud KESSLER, 2004)

O ensino de Matemática definido nos moldes que estes autores colocam não traz benefícios aos alunos e nem oportuniza ao professor um redirecionamento de sua prática pedagógica, o que alimenta ainda mais a situação de fracasso escolar dentro da disciplina de Matemática.