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Fragmentação temporal e discursiva

Nenhum livro de Graciliano deve ser menosprezado quando se faz uma análise de seu aspecto narrativo, pois sua obra é todo um conjunto. Embora suas histórias se passem em lugares diferentes, tempos diferentes e tenham narradores diferentes, existe algo em comum entre eles que está além do simples fato de terem sido escritas pelo mesmo autor. Essa semelhança faz com que recorramos a todos os seus romances16 para compreender o que Antonio Candido chamou de “unidade na diversidade” (1999). Com certeza, existe um enredo dominante em cada livro. No entanto, se estamos buscando aquilo que permeia a obra de Graciliano dando-lhe unidade, precisamos vasculhar as entrelinhas de sua narrativa em busca de elementos comuns. Até o momento, a investigação nos conduziu à fragmentação, ao uso excessivo do condicional (o aspecto verbal do futuro do pretérito), que determina a realização dos desejos no nível da idealização, e ao sentimento de angústia, a melancolia moderna. O que nos parece é que estes três elementos giram em torno de um simbolismo maior, a cegueira. No momento estamos abordando o aspecto da fragmentação em conjunto com o aspecto temporal para, somente mais adiante, discutir o que os narradores se negam a ver.

16Procuramos abordar sucintamente, com exceção de Infância e Histórias de Alexandre, toda a obra

de Graciliano. Porém reconhecemos que não demos atenção merecida a Memórias do Cárcere. Nossa mea culpa por essa falha.

Angústia e Vidas secas são livros que estão em oposição um ao outro no que concerne ao topos, ao cenário no qual se desenvolve o drama de cada um, mas tanto o meio urbano quanto o rural são hostis aos seus protagonistas, igualando-os, revelando a projeção de um tipo de caos interno. Uma análise psicológica de ambas as narrativas aponta para o fato. Outro aspecto que os une, ao mesmo tempo em que os afastam, é a fragmentação, um elemento constante. Em Angústia, a idéia de algo descontínuo e separado passa pela compreensão do psicológico. A narrativa de Luís da Silva é invadida pelo delírio que apaga as fronteiras entre realidade e imaginação, do tempo e do espaço, apresentando um sujeito cindido e perturbado, separado do mundo, pois uma parte dele se encontra perdida no passado, isolada no confinamento de quatro paredes. Tal processo está na construção de vários livros do autor.

Mas se a anamnese do personagem é fruto de seu saudosismo, ela também assinala o retorno a um tempo perdido que precisa ser resignificado. E que representação então teria o futuro? Este, especificamente, o autor constrói valendo- se do futuro do pretérito, usado freqüentemente nos romances citados, com exceção

de Histórias de Alexandre, que se diferencia dos outros livros no tocante a essa

questão. Talvez seja pelo fato de o personagem, já idoso e com poucas esperanças, não vislumbrar qualquer possibilidade de futuro, nem mesmo como impossibilidade. Mas também poderíamos dizer que Alexandre não quer revelar suas mazelas, pelo menos não explicitamente. O velho Alexandre, entretanto, prefere realizar-se num cenário idealizado, em suas histórias. E nesse ato fictício e delirante ele se faz herói e reconstrói um passado pelo menos tolerável.

Ainda no que concerne ao significado do futuro do pretérito, dizemos que ele possui um caráter duplo. Ele é um futuro ou um passado especial (Cf. Mattoso Câmara JR., 1973) e seguramente suscitaria muitas discussões. Alfredo Bosi (1994), comentando sobre “a forma do ciclo” em Vidas secas, o que ele estabelece como um movimento pendular, diz que o tempo do campesino é mais prolongado do que o do trabalhador das fábricas. Ele é mais vagaroso, arrasta-se, trazendo alento para o campesino, pois pode ser preenchido com fantasias. Em decorrência desse fato

temos a abundância do futuro do pretérito (condicional) no livro17. Esse tipo de futuro também é fruto da incerteza, da impossibilidade das chuvas, que indicam o renascimento do pasto (verde) que, resumindo, simboliza a esperança. O sertanejo Fabiano e os membros de sua família têm vários desejos. Desejos que são transportados para longe, para o lugar da impossibilidade no plano real, mas que se realizam no plano do imaginário, da fantasia: “A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta”.

(BOSI, 1994, p. 21). Tais idealizações, embora simples, são o máximo que Fabiano consegue desejar. Fernando Cristóvão, embora não faça uma distinção precisa dos modos de apresentação dos tipos de pretérito (perfeito, imperfeito, mais-que- perfeito) na literatura de Graciliano Ramos, afirma que nela existe um predomínio evidente do uso deste tempo. A predominância encontrar-se-ia em passagens em que o personagem assume uma posição de reflexão sobre algum assunto ou quando se encontra num momento de conflito.

No romance escrito na terceira pessoa, Vidas secas, esse domínio é absoluto, de tal modo que só adquirem significado na narração as diversas modalidades de pretérito e, dentro delas, as formas de condicional, pelo que o romance se afirma como exemplo típico de mundo narrado. (sic) (CRISTÓVÃO, 1986, p. 108).

Cristóvão não assume a posição de que o personagem-narrador estaria criando um mundo de possível realização de sua fantasia com a finalidade de fuga, mas descreve que ele é trazido à narrativa para ilustrar uma situação de conflito. Se o condicional é o tempo do devaneio, dentro de nossa abordagem, no qual os personagens de Graciliano se realizam, articulando suas partes dispersas, poderíamos dizer então, que esse lugar é o espaço da realização do sonho, do desejo e, conseqüentemente, da evasão da dor. Não eliminamos a possibilidade do uso desse tempo verbal para marcar situações de incerteza e probabilidade, na narrativa. Porém, nos exemplos apresentados, ele não passa de um esconderijo.

17O futuro do pretérito é descrito neste trabalho como o tempo da incerteza, da impossibilidade,

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