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Fragmentos de uma poética do fogo

No documento Santa Cruz do Sul/RS 2016 (páginas 33-36)

3 OS QUATRO ELEMENTOS NA VISÃO DE GASTON BACHELARD

3.3 Fragmentos de uma poética do fogo

Bachelard explica que quando as imagens do fogo são consideradas, tem-se a oportunidade de abordar e estudar a linguagem inflamada, linguagem que ultrapassa a vontade de ornamento para poder atingir a beleza agressiva. O teórico complementa: “As imagens do fogo têm uma ação dinâmica, e a imaginação dinâmica é, certamente, uma dinâmica do psiquismo” (BACHELARD, 1990, p. 33).

É extraordinário, afirma o autor, perceber que a imaginação permite criar imagens novas a partir de uma antiga imagem. A imaginação encontra em um rasgo, algo fabuloso, belo que surpreende. É o caso da Fênix, ser que é considerado de dupla fábula, pois se inflama em seus próprios fogos e renasce de suas próprias cinzas. Contudo, é necessário acreditar nessa imagem para que ela possa viver na imaginação, para que essa imagem esteja viva aos olhos. É preciso crer na imagem inacreditável, sem se entregar à credulidade, para que o pássaro lendário venha à vida, para que essa imagem se torne um ser poético. Segundo o autor:

A função fabuladora adquire toda a sua extensão pela palavra. É preciso que uma imagem fabulosa seja dita e redita. E a cada repetição é preciso que um rasgo da palavra traga uma novidade. A imagem visual é apenas um instantâneo. A verdadeira fábula é a fábula falada e não recitada – gritada na verdade do entusiasmo e não declamada. Em suma, a função

fabulatória pertence ao reino do poético. A função fabulatória ultrapassa as imagens realizadas. A Fênix dos Poetas explode em palavras inflamadas, inflamantes. Está no centro de um campo ilimitado de metáforas. Uma tal imagem não pode deixar a imaginação tranquila. Ela não cessa jamais de renascer de suas expressões desvalorizadas, jamais acaba de sacudir o fenomenólogo preguiçoso. (BACHELARD, 1990, p. 53)

As palavras podem ativar a imaginação, principalmente no que se refere à Fênix, pássaro de fogo. As palavras quando libertadas de sua função dentro de frases, quando utilizadas em sua individualidade, podem acender a imaginação daquele que a ouve, pois quem está aberto à imaginação, conseguirá visualizar as imagens poéticas criadas a partir da verbalização dessas palavras.

Segundo o teórico, é necessário lembrar sempre que a Fênix é um ser do universo, única, solitária. É a mestra dos instantes mágicos da vida e da morte, pois ela atinge sua maior glória no abrasamento final de sua própria fogueira. Acredita-se também que é o sol que inflama a pira, ou seja, com um único raio de aurora o sol provoca o incêndio. Assim, pode-se dizer que a Fênix é um pássaro do céu, no qual sua vida e morte possuem um destino solar. A Fênix, no momento de sua morte, torna-se um fogo do céu.

A Fênix, pássaro ligado à contradição da vida e da morte, já que sua essência está ligada à morte e ao renascimento do corpo, possui uma grande sensibilidade a todas as belezas contraditórias, o que acaba por auxiliar a legitimar as contradições da paixão, dos sentimentos humanos mais profundos. De acordo com Bachelard: “A Fênix é um arquétipo de todos os tempos. É um fogo vivido, pois não se sabe jamais se adquire seu sentido nas imagens do mundo exterior ou suas forças no fogo do coração humano”. (BACHELARD, 1990, p. 87)

Segundo o teórico, não existem imagens gratuitas, pois quando se associa numerosos temas de devaneio, acaba-se por apreender na imagem singular um germe de imaginação poética. Nesse sentido, quando uma imagem descora, outra clareia, ou seja, a imagem irradia singularidade e se mantém numa existência poética (BACHELARD, 1990, p. 91).

O filósofo explica que, Prometeu, figura mítica que roubou o fogo do céu e entregou aos homens, possui um valor emblemático, ao ser analisado como palavra, porém se dispersa em imagens múltiplas. Não possui uma única imagem, revela uma grande gama de possibilidades imagéticas ao observador poético. O mito de

Prometeu leva a variados e distintos devaneios poéticos, sempre de acordo com a forma como for abordada a lenda.

De acordo com Bachelard, as imagens prometeicas poéticas mostram sempre uma ação física que acaba elevando a natureza do homem. Nesse sentido, uma atividade psíquica que consolida e dinamiza a vida do espírito, poderá ser colocada sob o signo de Prometeu:

Ela necessita, precisamente, de uma poética animada por uma participação constante na sublimação ativa de todos os fatos psicológicos. Finalmente, são os valores poéticos, mais exatamente os valores de uma poética do psiquismo, que mantêm o interesse, sem cessar renascente, pelas imagens do prometeísmo. (BACHELARD, 1990, p. 106-107)

Em uma análise profunda do mito, Prometeu roubou o fogo dos deuses e ofereceu aos homens não apenas calor, mas algo para que avançassem na história.

O fogo pode ser visto, e comparado, à consciência, pois quem traz o fogo, traz a luz, a luz do espírito. Prometeu ofereceu aos homens a consciência, o dom do fogo-luz-consciência que abriu aos homens um novo caminho, um novo destino.

O fogo, objeto de consciência, também pode se tornar elemento de morte. De acordo com Bachelard, a morte de Empédocles (filósofo, poeta e médico) no vulcão Etna é ultrapassado pela imagem, o que constitui um ato poético permanente.

Empédocles é uma das maiores imagens da poética do aniquilamento: “No ato empedocliano, o homem é tão grande quanto o fogo. O homem é o grande ator de um cosmodrama verdadeiro” (BACHELARD, 1990, p.113).

Para o filósofo, o ponto extremo no qual o ser se liberta de tudo aquilo que viveu, ou acreditou viver, é a morte de Empédocles. Nesse ato, o fogo está presente e é nesse ponto, nesse pequeno ponto, que o ser do homem quer se tornar a imensidão do fogo:

Precisamente o Ato empedocliano dá uma significação poética que ultrapassa a contemplação. A esse arremesso de todo ser na chama, dessa passagem da contemplação à participação, muitas poucas imagens literárias são comparáveis. Mas em toda a imagem empedocliana pode-se descobrir um índice de tentação. Aqui a Morte nos tenta concretamente, a Morte total, a Morte com provas, a Morte na imagem, pela imagem. Mas a tentação da Morte no fogo é sempre dominada. É, pois, uma tentação sutil, uma tentação que tem a bela marca do imaginário. Nós a vivemos sem perigo ao sonhar com a lenda empedocliana. Enquanto a vertigem diante do

abismo provoca marcas dolorosas em todo o psiquismo, a tênue vertigem empedocliana se tornou, na Poética do Fogo, uma vertigem de leitura. Lê-se a lenda de Empédocles sem estremecer. (Bachelard, 1990, 132-133)

Entretanto, em alguns momentos, é através de contradições, de uma oposição à imagem empedocliana, que é possível reencontrar o caminho da sedução empedocliana. A tentação de atirar-se ao fogo não se realiza, pois o homem hesita diante de uma simples queimadura e acaba se protegendo do calor, do muito quente. Essas são defesas psicológicas que permitem desfrutar, com segurança, das tentações empedoclianas. Nesse sentido, Empédocles se torna uma dessas raras imagens que jamais fizeram uma vítima (BACHELARD, 1990, p.134).

No documento Santa Cruz do Sul/RS 2016 (páginas 33-36)