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Chico Ceśar declarou, ter buscado, em Francisco Forró y Frevo, fazer um disco mais para o corpo que para a cabeça16. Sem desconsiderar a noção que o compositor tem da própria obra, mas sem cair também na “falácia da intenção”, diríamos que a polarização mente/ corpo nesse disco não se faz mais acentuada do que, admitindo-se que tenha existido, Chico viera praticando em trabalhos anteriores; Cuscuz Clã e Beleza Mano são discos igualmente dançantes e possibilitadores de reflexões de ordens conceituais variadas. O que se passa é que

em francisco forro y frevo há deliberadamente o estabelecimento de uma atmosfera que circunda os dois ritmos constituintes de seu título, fazendo o álbum remeter mais especificamente para o São João e o Carnaval. Contudo, nem essa anunciada unidade deixa de sofrer interferências externas. O forró e o frevo que encontramos aqui não estão em estado de pureza folclórica: se os naipes de sopro, notadamente os saxofones, remetem às frases e dicção características do frevo, e se as sanfonas e zabumbas garantem o alicerce do forró, são muitas também as intervenções dos sons sintetizados ao longo de todas as faixas, das batidas, ainda que discretas, eletrônicas. A esses elementos de ordem instrumental juntam-se as convenções rítmicas e as hibridações timbrísticas que se desviam um pouco do costumeiro naqueles ritmos nordestinos. É o caso da quinta faixa, “Humanequim”, que, embora esteja calcada na linguagem do frevo, possui uma divisão melódica mais jazzística, com a voz sendo seguida de perto, em vários momentos, pelo violão:

unir o nervo ao frevo é ir na fé

pela contramão pé-ante-pé

ilusão de quase voar inda não é no céu mas saiu do chão fez-se a combustão em que estado estou? […]

(f. 5)

Outra questão que diferencia esse disco dos demais (mas nem por isso o estabelece como obra em que corpo e mente, movimento e intelecto se opõem) é certo investimento em imagens sensuais e, por vezes, sexuais. Nisso aproxima-se de uma das tradições poéticas da música nordestina, quando esta toma por tema as festas, as danças e os movimentos dos que se evolvem no forró. São descrições ou reflexões sobre a realidade sensível das pessoas: é o sono do sanfoneiro17, o arrasta-pé, o suor, o resfolego da sanfona18, o ronco do trovão19, o homem que

17 “Proibido cochilar”, 1972 18 “Vem Morena”, 1982

dança armado, o peba apimentado na boca de Benta20. É também, maliciosamente, a “butique dela”21, o “talco no salão”, o gato “tico (que) mia”, o homem que afirma “não corto mas penteio”, numa intencional confusão entre conjunção adversativa e aditiva. Chico não pratica as insinuações picantes de um Genival Lacerda ou de certas canções de um Jacinto Silva, mas sua escolha vocabular e imagética não abre mão da ambiguidade sacana. Passemos brevemente em revista, com esse foco, algumas outras canções do álbum.

“Dentro” toma a palavra que lhe dá título como orientadora e geradora da sequência de associações que se sucedem na canção.

dentro dos seus grandes olhos lagos dentro dos seus grandes lábios logo dentro do seu grande peito fogo dentro de sua grande alma anjo dentro de seu corpo gente dentro de mim

[…] (f. 6)

A proximidade de versos entre olhos e lábios, como a sugerir a proximidade física dessas partes do rosto, não impede a leitura que o qualificativo grande agrega ao segundo termo; grandes lábios, numa espécie de inversão de uso da metáfora, é expressão estabelecida, que tem mais a ver com a vagina que com a boca.

Em “Comer na mão”, sétima faixa, o sentido de obediência e submissão que a expressão-título sugere vai sendo alterado ao longo do texto. Ora reforçando a relação entre o amor e a conotação fisiológica do comer (passar fome, lambuzar, lamber o prato, provar) ora utilizando o “comer na mão” como contraponto a uma determinada etiqueta amorosa, já que “a regra diz para comer na mesa”:

você vai comer na minha mão e só vai passar fome se quiser

por que é que eu lhe ofereço o coração e você fica pegando no meu pé?

você vai comer na minha mão se lambuzar e lamber o prato você vai comer sim

para provar em mim

20 “Peba na Pimenta”, 1957 21 “Severina Xique Xique”, 1979

o que é amor de fato

cê não tá vendo que é tempo perdido todo esse moído

essa pagação

passarim preso vive de olho comprido canta tão doído

pois não pode avoar não

o ser humano tem a mesma natureza vê tanta beleza

e abre o coração

a regra diz pra comer na mesa mas gostoso com certeza é comer na mão

“Pelado”, última faixa do disco, abre-se com uma referência à política cultural praticada por certos carnavais, que têm nos abadás e nas cordas limitadoras da “pipoca” uma marca de distinção:

o abadá está tão caro custa mais caro

que a máscara de carnaval eu vou é sair pelado

com você ao meu lado vai ser sensacional (...)

Associando as diversas referências corporais à declaração de Chico César sobre ter pensado o disco mais para o corpo que para a cabeça, pode-se observar uma tensão entre proposta e resultado. Na verdade, esse disco, em que o compositor parece vestir-se de personas experimentadas apenas de relance em momentos anteriores de sua obra, se agrega à obra de Chico César como a contribuição de mais um retalho diferente na colcha, mas sem perder, por isso mesmo, a coerência não da unidade mas do percurso sempre outro que conserva, contudo, a sua memória.

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