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4. O Caso Freixo/Santiago Andrade construído nas páginas d’O Globo

4.1. Freixo, O Globo e o contexto de insatisfação popular entre 2013 e

As duas partes envolvidas no embate político estudado são politicamente discordantes em diversos aspectos. O Globo, como já demonstrado neste trabalho é uma grande empresa midiática, cujos princípios editoriais estão alinhados aos interesses mercadológicos condizentes com sua condição industrial, e que esteve historicamente ativo na vida política nacional, algo que é capaz de fazer através de sua opinião publicada. O deputado Freixo é um dos principais representantes da oposição à esquerda do governo fluminense. Apesar de ser filiado a um pequeno partido socialista, o deputado ganhou projeção política por sua militância pelos Direitos Humanos e contra a atuação das milícias paramilitares no Rio de Janeiro. Reelegeu-se em 2010 como o segundo deputado mais votado naquele estado (com 177.253 votos25), e concorreu a prefeito da capital, sem

25 Segundo dados do TSE (“Estatísticas e resultados – resultado da eleição”. Acessado em: 22 de outubro de

46 sucesso. No início de 2014, Freixo era presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio.

O choque entre os dois personagens ocorreu durante um dos episódios finais do período de insatisfação popular iniciado em junho de 2013 e que se estendeu, com intensidade variada, até a realização da Copa do Mundo em julho de 2014. Para compreensão desse embate, se faz necessária breve recapitulação dos eventos que ocorreram nesse período.

Em junho de 2013, uma série de pequenos protestos de rua em São Paulo, contra o aumento de 20 centavos nas passagens de transportes públicos (que ocorreria em vários estados, inclusive no Rio de Janeiro) foi brutalmente reprimida pela Polícia Militar, e mais de 100 manifestantes foram presos26. Imagens da repressão, feitas através de câmeras e aparelhos celulares circularam intensamente nas redes sociais durante aquelas semanas e alimentaram a indignação popular em vários estados, principalmente, a princípio, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Diversos comentaristas políticos em meios de comunicação (notavelmente Arnaldo Jabor, colunista do Jornal da Globo, por ter declarado que os manifestantes “não valem nem 20 centavos”) se posicionaram veementemente contra os protestos, e a combinação desses fatores desencadeou uma onda generalizada de protestos populares, culminando nas passeatas dos dias 13, 17, 18, 19 e especialmente a de 20 de junho de 2013. Estima-se que mais de um milhão de manifestantes marcharam em diversas capitais, apenas nessa última data muitas das vezes entrando em choque com a polícia ao fim dos protestos.27 No Rio de Janeiro, a Câmara Municipal teve a fachada grafitada e os portões incendiados. Em Brasília, manifestantes invadiram o teto do Congresso Nacional e depredaram o edifício do Ministério das Relações Exteriores.

Inicialmente contrárias às elevadas tarifas de transporte público, as manifestações aos poucos diversificaram suas reivindicações, especialmente depois que os prefeitos do Rio e de São Paulo declararam a redução dos preços das passagens em função dos protestos. Os principais temas que passaram a nortear os manifestantes foram o Projeto de Emenda Constitucional 37, que retiraria poderes investigativos do Ministério Público; O projeto de lei que legalizaria a Cura Gay no Brasil, a desmilitarização da polícia, uma

26 Agência Brasil. “Mais de 100 pessoas detidas para averiguação em protesto contra o aumento da tarifa em

SP”. Acessado em: 13 de junho de 2013. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/ 2013-06-13/mais-de-100-pessoas-detidas-para-averiguacao-em-protesto-contra-aumento-da-tarifa-em-sp.

27 G1. “Protestos pelo país tem 1,25 milhão de pessoas, um morto e confrontos”. Acessado em: 22 de outubro

de 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/protestos-pelo-pais-tem-125-milhao-de- pessoas-um-morto-e-confrontos.html.

47 greve generalizada dos professores fluminenses, aumento de verbas para a Saúde e Educação públicas e os gastos públicos elevados com as obras para a Copa do Mundo da FIFA, a ser sediada no Brasil em 2014, e com as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. Nesse ponto, os protestos já afetavam todos os níveis da sociedade brasileira.

Apesar do clamor popular e de, em determinado momento, as marchas terem gozado do apoio de 84% da população28, houve, como é de se esperar, muitas controvérsias. Os protestos escalaram em violência conforme choques entre a polícia e manifestantes se tornaram comuns, especialmente no Rio de Janeiro. O black bloc29, uma nova tática de protesto calcada na depredação de patrimônio por manifestantes mascarados e vestidos de preto, até então pouco conhecida no Brasil, passou a tomar a dianteira de atos de depredação de patrimônio público e privado e dos confrontos com policiais. Uma lei que proibia o uso de máscaras em manifestações de rua foi usada como prerrogativa para a prisão de 70 manifestantes que ocupavam a frente da Câmara Municipal carioca no dia 16 de outubro.

Duas controvérsias envolveram diretamente o jornal O Globo. A primeira foi a atitude de condenação generalizada da postura do periódico diante do golpe militar de 1964 por conta do apoio manifestado pelo jornal ao ato, em artigo de fundo publicado na primeira página do dia posterior ao golpe. Para que se lhe faça justiça, O Globo não foi o único dos periódicos a tomar essa atitude, tendo sido acompanhado pela maioria dos grandes jornais, mas os manifestantes usavam palavras de ordem contra as Organizações Globo, depredavam suas fachadas e barravam seus repórteres de fazer a cobertura dos protestos. Em resposta, o jornal O Globo publicou um novo editorial admitindo publicamente ter cometido um erro em 196430 em 31 de agosto de 2013.

O artigo voltado para o público geral arrefeceu a indignação coletiva contra o veículo. A segunda controvérsia a ter o envolvimento direto do periódico foi a cobertura da ação policial de 16 de outubro. O jornal publicou o fato em primeira página sob o título “Crime e Castigo”, apresentando os manifestantes presos em fotos 3x4, comuns no noticiário policial para retratar criminosos (imagem 4). Uma das manifestantes presas e

28 Segundo pesquisa do Ibope divulgada para a imprensa em 6 de agosto de 2013. Acessado em 22 de

outubro de 2014. Disponível em: http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/85-da-populacao-e-a-favor- da-reforma-politica.aspx.

29 Embora a maioria dos veículos de imprensa, inclusive O Globo, se refira a “os black blocs”, no plural, este

trabalho se refere à tática e não ao rótulo atribuído a seus usuários.

30 O Globo. “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. Acessado em 31 de agosto de 2013. Disponível em:

48 exibidas na primeira página do dia seguinte foi Elisa Quadros Sanzi, que adotara o codinome “Sininho” após as manifestações.

Imagem 4: Capa d’O Globo noticiando a prisão dos ativistas.

Fonte: Acervo O Globo.31

Embora quase todos os manifestantes presos nessa ação tenham sido libertados após tempo relativamente curto, esse foi o início da exploração da imagem de Sininho na mídia nacional como uma liderança ligada ao black bloc. É importante que esses dois episódios consolidam a atmosfera de antagonismo entre o periódico e parte significativa dos manifestantes de rua nesse período.

Em fevereiro de 2014, a prefeitura do Rio de Janeiro voltou a subir o preço das passagens em R$ 0,20. Um grupo de 800 pessoas voltou a se reunir na Central do Brasil em protesto no dia 6 de fevereiro, e houve conflito com a polícia. Em meio ao protesto, que era extensivamente coberto pela mídia, um fogo de artifício aceso por manifestantes atingiu a cabeça do operador de câmera da TV Bandeirantes Santiago Andrade, resultando em sua morte dias depois, em 10 de fevereiro. Houve uma caçada aos responsáveis, sob suspeita de que fossem usuários da tática black bloc. O primeiro suspeito preso foi o tatuador Pablo Raposo, representado pelo advogado Jonas Tadeu Nunes. Tadeu fora

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49 advogado de defesa de Natalino José Guimarães, líder de uma milícia paramilitar investigada pelo deputado Marcelo Freixo.32 No dia 9 do mesmo mês, o advogado declarou ao Globo que seu estagiário havia recebido uma ligação da ativista Sininho na qual ela ligava Marcelo Freixo aos suspeitos do crime, que supostamente integrariam o black bloc. Em Assim, fica estabelecida a cadeia de eventos que transbordaria no caso que se deseja estudar a seguir.