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FRONTEIRA ENTRE TESTAMENTO VITAL E EUTANÁSIA

No documento O testamento vital (páginas 71-75)

9. REGISTO DO TESTAMENTO VITAL E DA PROCURAÇÃO DE CUIDADOS

10.1 FRONTEIRA ENTRE TESTAMENTO VITAL E EUTANÁSIA

Era também imprescindível fazermos uma análise à fronteira que existe o Testamento Vital e a Eutanásia, pois estas duas figuras confundem-se muitas vezes.

A expressão “eutanásia” deriva do grego “eu”, bom, e “tanathos”, morte, ou seja, significa boa morte. A eutanásia opõe-se assim à “distanásia” que deriva também do grego “dis”, mal, e “tanathos”, morte, ou seja, uma morte dolorosa, em sofrimento. É importante referir que a doutrina distingue eutanásia ativa direta e eutanásia ativa indireta. Na eutanásia ativa direta o agente, por norma o médico ou paramédico, faz morrer intencionalmente o paciente utilizando meios adequados a provocar-lhe a morte diretamente. Eutanásia ativa indireta significa que o agente não pretende matar o paciente diretamente, mas antes minorar o seu sofrimento, ainda que os meios usados para o ato possam encurtar a sua vida. Existe ainda a eutanásia passiva, em que, perante um doente em estado terminal e em sofrimento, o médico exime-se de lhe ministrar o tratamento que poderia mantê-lo vivo artificialmente.

Neste sentido, tem-se debatido a eutanásia como a possibilidade de encurtar a vida a doentes terminais, pelo sofrimento constante com que eles se debatem diariamente. No entanto, esta questão está longe de chegar a um consenso. No que diz respeito à autonomia do paciente, subsiste que ele tem direito à auto-determinação. Direito este que abarca o direito a morrer, e que possa pedir que a sua morte seja executada por outra pessoa. Em relação à compaixão, este argumento é sustentado com o dever de ajudar os outros quando estes estejam em sofrimento, mesmo que esse dever seja causar-lhes a morte, caso não exista outra alternativa. Os defensores da legalização da eutanásia alegam ainda, que este ato iria ser aplicado apenas a um número muito reduzido de casos.

Aqueles que se opõem a esta legalização argumentam que este pedido do paciente de por termo à vida pode ser irracional. Pondo em causa se estes doentes têm ou não capacidade para tomar uma decisão consciente e racional. Alegam ainda que a permissão da eutanásia em certos casos pode levar a uma extensão da sua prática em

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casos que os doentes não a tenham requerido. Desta forma, podemos concluir que a questão da eutanásia é muito controversa, tornando muito difícil a resposta do Direito.

No ordenamento jurídico português a eutanásia é proibida. A vida humana é um bem indisponível e é nessa qualidade que encontra proteção na ordem jurídica portuguesa.

E no que diz respeito à nossa lei é fundamental distinguir a eutanásia ativa direta, ativa indireta ou passiva. Encontramos a eutanásia ativa direta incluída nos crimes de Homicídio Privilegiado preceituado no artigo 133.º do Código Penal e no Homicídio a Pedido da Vítima consagrado no artigo 134.º do Código Penal. A eutanásia ativa indireta até poderá ser lícita, dependendo da intenção do agente e dos meios por ele utilizados. Caso o agente não tenha intenção de matar e utilizar meios que respeitem a arte médica, não existirá um crime de homicídio mas um conjunto de riscos aceitáveis na prática da legis artis. Por último, a eutanásia passiva é admissível, desde que seja comprovado o estado terminal do paciente, sendo o mesmo irreversível e por isso nem sequer é considerada eutanásia92.

E é este o motivo pelo qual a regulação da eutanásia no ordenamento jurídico português seja a sua proibição. No entanto a lei não a considera como uma situação de homicídio simples. Ora vejamos. No que respeita à eutanásia ativa, o Homicídio Privilegiado, consagrado no artigo 133.º do Código Penal, é punível com prisão de um a cinco anos e terá de ser praticado pelo agente dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa. Já o Homicídio a Pedido da Vítima, plasmado no artigo 134.º do Código Penal, é punido com pena de prisão até três anos. Este pedido tem de ser sério, instante e expresso. O crime de Incitamento ou Ajuda ao Suicídio, preceituado no artigo 135.º do Código Penal, é também punido com pena de prisão até três anos para o auxílio ao suicídio, no caso de este vir a ser efetivamente tentado ou consumar-se, salvo se a pessoa incitada for menor de 16 anos ou tiver, por qualquer motivo, a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída, em que a pena passa a ser de prisão de um a cinco anos. Porém, existe a possibilidade de se levantar a dispensa de pena, nos termos do artigo 35.º, n.º 2, do Código Penal, alegando estado de necessidade desculpante.

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Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, tomo III – Pessoas, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p.172.

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O Código Deontológico da Ordem dos Médicos considera a eutanásia como falta deontológica grave (artigo 47.º, n.º 2). No entanto, estabelece no seu artigo 47.º, número 4 que “não é considerada eutanásia, para efeitos do presente artigo, a abstenção de qualquer terapêutica não iniciada, quando tal resulte de opção livre e consciente do doente ou do seu representante legal”. Além disso, o artigo 49.º da mesma lei refere que “em caso de doença comportando prognóstico seguramente infausto a muito curto prazo, deve o Médico evitar obstinação terapêutica sem esperança, podendo limitar a sua intervenção à assistência moral do doente e à prescrição ao mesmo de tratamento capaz de o poupar a sofrimento inútil, no respeito do seu direito a uma morte digna e conforme à sua condição de ser humano”.

O Testamento Vital (living will) como já analisámos, é um “documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja ou não receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”. Em Portugal, foi após a entrada em vigor da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, que o Testamento Vital surge no nosso ordenamento jurídico. O Testamento Vital é a expressão da recusa do consentimento para as intervenções ou tratamentos medico- cirúrgicos, que, uma vez desrespeitados, poderão fazer os médicos incorrer no crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (artigo 156.º do Código Penal). O artigo 47.º, número 4, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos também determina a relevância do Testamento Vital ao não considerar a abstenção de qualquer terapêutica não iniciada, quando tal resulte de opção livre e consciente.

É importante salientar que o Testamento Vital não se enquadra no artigo 134.º do Código Penal, uma vez que para preencher os requisitos do Homicídio a Pedido da Vítima, o pedido tem de ser instante, não podendo a declaração escrita anteriormente elaborada valer como tal. Do Testamento Vital também não pode constar uma autorização para os médicos porem termo à vida do doente, uma vez que essa interpretação seria qualificada como uma renúncia a um direito fundamental e como tal absolutamente nula.

Assim, o Testamento Vital deve ser reconhecido como a legítima expressão da decisão do doente, sendo considerado vinculativo para os médicos em relação às

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terapêuticas consentidas por aquele, legitimando a abstenção de cuidados médicos, que muitas vezes apenas prolongam o sofrimento do paciente.

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