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Fronteiras entre (tele) jornalismo, documentário e videorreportagem

2. Uma história da videorreportagem

2.2. Fronteiras entre (tele) jornalismo, documentário e videorreportagem

A comparação entre telejornalismo e documentário não será tratada com o propósito de categorizar semelhanças e diferenças e elencá-las em uma tipologia genérica. Nosso intuito é mostrar como a videorreportagem se constrói nesta complexa relação de aproximações e afastamentos entre a reportagem jornalística e o documentário.

Nesse sentido, foi importante para o presente estudo o levantamento feito pelo pesquisador Julio Carlos Bezerra, em sua pesquisa de mestrado Documentário e Jornalismo: propostas para uma cartografia plural, concluída em 2008. Partindo da premissa de que documentário e reportagem jornalística são formas audiovisuais que se apropriam do mundo real para construir suas narrativas, o autor primeiro resgata as tensões e disputas que configuram o debate entre os dois campos.

John Grierson, principal articulador e pensador do movimento britânico dos anos 30, justificou a existência do “documentário” (termo cunhado por ele) distinguindo-o dos cinejornais. Outro bom exemplo são os documentaristas dos anos 60. Foram os integrantes do chamado Cinema Direto Americano, alguns oriundos do jornalismo, que tornaram realidade recursos como, por exemplo, a câmera na mão e o som sincronizado. Robert Drew, figura de liderança deste movimento, dizia almejar um novo tipo de jornalismo audiovisual (BEZERRA, 2008, p. 10).

John Grierson usou o termo documentário pela primeira vez para comentar os filmes de Robert Flaherty, e definiu o gênero documentário como o “tratamento criativo da realidade”, fazendo o contraponto com os cinejornais. A lista de elementos e argumentos que unem e separam documentário de jornalismo é tão extensa quanto a polêmica que provocam. As distinções e semelhanças gravitam em torno de questões relacionadas à autoria, criatividade, objetividade, unidade temporal, efemeridade versus profundidade, suporte tecnológico e industrial (cinema e televisão), presença ou ausência de narradores, rotinas de produção, comprometimento com a ética, tema e expectativas da recepção, para citar algumas mais recorrentes45

Além disso, há uma estrutura sincopada no telejornal, na qual cada notícia representa uma unidade enunciativa em si, com início, meio e fim, e é sucedida por outra notícia, com a mesma estrutura. O autor nota ainda que os programas, diferente

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Tratando das distinções entre reportagem e documentário, Ramos (2008) afirma que a questão artística está superada. No documentário, de acordo com o autor, há um espaço mais denso para a expressão do viés autoral, ou seja, da possibilidade de uma articulação discursiva mais elaborada que inclui a participação de especialistas em som e imagem, geralmente ausente da reportagem.

Embora ressalte o aspecto autoral, a diferença para o autor está no formato enunciativo. “O documentário constitui uma forma narrativa que é geralmente fruída na unidade de uma extensão temporal determinada” (Ramos, 2008, p.58), sendo apresentado ao espectador como algo muito próximo ao filme. A reportagem, por sua vez, é uma forma narrativa que se articula dentro do formato enunciativo do programa, o telejornal, uma unidade discursiva específica da televisão. A reportagem se constrói a partir do que é historicamente característico de um telejornal, como a presença dos apresentadores e repórteres, ausentes no documentário, o modo como os mesmos dialogam com o telespectadores através do eixo olho a olho mediado pela câmera.

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dos filmes, são apresentados em blocos e a reportagem, ao contrário do documentário está vinculada a acontecimentos cotidianos de dimensão social, ou seja, à notícia. Ramos (idem), no entanto, reconhece a existência de outras formas narrativas e programas jornalísticos que possuem vínculos mais tênues com a forma narrativa documentária.

Nesse embaralhamento entre os dois domínios, identificamos os programas de videorreportagem. Seguindo o raciocínio de Ramos, os programas de videorreportagem analisados nesta pesquisa incorporam características de ambos os gêneros. São programas televisivos constituídos por blocos, que por sua vez estão intercalados pela programação comercial da emissora. Se tirarmos os programas da grade televisiva e unirmos os blocos em uma única unidade, nos aproximamos da narrativa do filme documentário, tal qual descrita por Ramos, ainda que nela estejam presentes os videorrepórteres no papel de apresentadores.

Em outro exemplo que trata das diferenças, Bezerra (2008) cita que a as relações entre personagem e documentarista e entre personagem e jornalista, não mais se justifica, pois há reportagens jornalísticas que são resultado de uma longa convivência entre o jornalista e entrevistado, assim como no documentário. Do mesmo modo, para o autor,

atestar a ausência de repórteres em filmes documentários ou alegar uma diferença essencial de duração entre eles seria simplificar a questão. Até mesmo a autoreflexidade, particular a uma linha de documentário, já não é mais estranha aos telejornais e seus âncoras. Também não faz sentido acusar o jornalismo de não ser simplesmente inventivo (BEZERRA, 2008, p. 11).

Para Bezerra, as discussões em torno da relação entre jornalismo e documentário, em geral, tendem a submeter os dois domínios a estruturas estanques, impermeáveis e fechadas, sendo que, cinema e televisão são duas formas culturais audiovisuais e institucionais que compartilham valores, usos e tecnologias. Uma história que tente dar conta das diversas dimensões do cinema – capital cultural, financeiro, político em articulação com a textualidade, os elementos de imagem e som e o modo como são usados para produzir determinados sentidos – terá que levar em conta que em um dado momento histórico, nos anos 50 no Brasil, os meios passam a coexistir. No processo de globalização, tanto o cinema quanto a televisão se tornaram uma dos maiores pólos industriais de produção de informação e entretenimento, condição esta que lhe exige modos distintos de organização dos seus produtos. Ambos organizam seus

produtos sob a etiqueta genérica (comédia, drama, documentário, policial, ficção científica, novela, telejornal, programas de entrevista) onde cabem outras tantas subcategorias, ou subgêneros.

Documentário e reportagem não são a mesma coisa, mas são conceitos em aberto que se tangenciam. Há uma diversidade de modos de documentários, assim como há diferentes formas de construir reportagem. No documentário, Bill Nichols (2001) identificou seis modos de fazer cinema documentário: modo poético, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performático. O modo poético enfatiza associações visuais qualidades tonais e rítmicas. O expositivo enfatiza o comentário verbal. Já o modo observativo enfatiza o engajamento direto no cotidiano das pessoas que representam o tema do cineasta, sendo observadas por uma câmera discreta, pretensamente invisível. O modo participativo, ao contrário enfatiza a interação entre cineasta, tema e personagens e convoca imagens de arquivo para examinar questões históricas. No modo reflexivo, a ênfase é dada para as convenções que regem o próprio documentário chamando a atenção da audiência para a realidade do filme. Por fim, o modo performático enfatiza o aspecto subjetivo do engajamento do cineasta com seu tema e a receptividade do público a esse engajamento (p. 62-63). Os modos, no entanto, sobrepõem-se e se misturam. Dentro do mesmo gênero documentário, diz Nichols, cabem muitos enfoques diferentes para o desafio de representar o mundo histórico.

No telejornalismo, do mesmo modo, cabem muitos modos de representar a realidade, sendo que o tratamento dado à informação passa, pelo menos em tese, pelo código deontológico jornalístico. Significa que, independentemente do tamanho, uma reportagem em um telejornal negocia com certos valores-notícia. Os valores-notícia, de acordo com Josenildo Guerra (2003), se referem às expectativas da sociedade a um dado veículo, e à responsabilidade social do jornalismo. A programação televisiva brasileira, de acordo com Silva (2005), se organiza em gêneros televisivos (jornalísticos, programas de auditório, ficção seriada, publicidade reality shows) e subgêneros (telejornais, programas de jornalismo temático, programas de entrevista e documentários), dispostos em uma grade de programação das emissoras que funciona de modo vertical (organização durante um dia) e horizontal (organização durante a semana, meses, anos).

A videorreportagem é fruto da hibridização entre telejornalismo e documentário. Assim como no final dos anos 1950, e ao longo dos anos 1960, as câmeras leves e os aparelhos de registro do som direto, ou seja, os novos equipamentos

e técnicas de filmagem possibilitaram o surgimento do cinema direto norte americano e do cinema verdade francês, no telejornalismo, as câmeras portáteis da década de 1980 possibilitaram o surgimento da videorreportagem.

No cinema direto, Robert Drew e Richard Leacock inauguraram um modo observacional e buscavam, através da invisibilidade da câmera, uma aproximação mais íntima com seu objeto e minimizaram a intervenção dos processos de filmagem sobre o meio documentado. Já o cinema verdade apostava em uma abordagem interativa e provocadora, tendo como maior representante o cineasta Jean Rouch, para quem a neutralidade da câmera e do gravador era uma falácia, era preciso utilizá-los como instrumentos de produção dos próprios eventos, como meio de provocar situações reveladoras (Bezerra, 2008, p. 103).

No videojornalismo, os videorrepórteres também ficam mais próximos e íntimos dos entrevistados sem ser, necessariamente, observacional, mas apostando também na maior interatividade com o meio, possibilitando à incorporação do jornalista à cena do acontecimento. O cinema-direto movimenta-se no sentido de romper com a tradição professoral e militante do documentário (Bezerra, 2008, p. 77), enquanto que a videorreportagem, como vimos, movimenta-se na década de 80, para negar a formalidade e o tom imperativo do telejornalismo. O cinema direto, de acordo com o autor, é também associado ao jornalismo. “O movimento americano estabeleceu padrões estéticos e apontou soluções narrativas para o telejornalismo então em formação” (Bezerra, 2008, p. 77). Por outro lado, o cinema verdade, que à primeira vista parece se distanciar do jornalismo, de compromisso com os fatos e com a objetividade, “alimenta curiosas semelhanças com o jornalismo investigativo que então se afirmava, e com o jornalismo mágico’ do jovem Gabriel Garcia Marquez (Bezerra, 2008, p. 103).

Na aproximação do jornalismo impresso com a literatura, o novo jornalismo surge na década de 1960, nos Estados Unidos, motivados pela insatisfação de muitos profissionais com as regras de objetividade do texto jornalístico, “o aborrecido tom bege pálido” da imprensa. O novo jornalismo, que tem Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer e Truman Capote como representantes, convoca a imersão do repórter na história e na vida das pessoas, a precisão de dados e a observação, e permite que a história venha à tona por meio de uma voz autoral (Bezerra, 2008, p. 89). Com Hunter S. Thompson, o new journalism experimentou sua versão mais radical, o jornalismo gonzo. De acordo com Felipe Pena (2006), Hunter defendia que era preciso provocar o entrevistado para que a reportagem rendesse. Ele recomendava que o jornalista

respirasse fundo, e em seguida xingasse o interlocutor. Não importava a ofensa, e sim a reação (p.56).

Thomaz (2007a) fomenta a aproximação da videorreportagem com o novo jornalismo. Para a autora,

o grande envolvimento na observação do real e a participação intensa em todas as etapas da produção, fazendo do videorrepórter um autor-exclusivo, permitem ao profissional intervir de diferentes formas na narrativa. Ele pode manter uma certa “neutralidade” ou vivenciar as realidades de seus personagens, imprimindo claramente suas percepções e juízos, como faziam os repórteres do Novo Jornalismo que lançavam-se a campo aberto para melhor sentir a realidade que iriam retratar (p. 119).

Adotando a tipologia do narrador de Norman Friedman, Thomaz sugere que o videorrepórter está enquadrado em diferentes categorias do foco narrativo, sendo elas: 1) “narrador onisciente intruso”, aquele que tem a liberdade de narrar adotando um ponto de vista pessoal; “narrador onisciente neutro” que fala em terceira pessoa, permitindo uma impressão de objetividade e de neutralidade; “narrador-testemunha”, o que narra em primeira pessoa e participa da ação; e o narrador-protagonista, quando ele é o personagem central e limita sua expressão às percepções, pensamentos e sentimentos.

Na relação com o telejornalismo, a videojornalismo aparece então como uma opção alternativa, através da qual é possível experimentar diferentes modos de composição, diferentes formas de construção de videorreportagens. Sendo assim, não podemos falar de uma essência da videorreportagem, mas de variações. Considerando historicamente sua formação articulada a um contexto mais amplo do jornalismo e do documentário, e que, nesta terceira fase, a videorreportagem se descola dos telejornais para dar forma a programas específicos, suspeitamos que a videorreportagem seja um novo subgênero televisivo em formação.

Consideremos, por exemplo, a discussão sobre autoria na videorreportagem. Representa um problema para o jornalismo, uma disputa na construção de valores como objetividade e imparcialidade. Desde a sua formação, o videojornalismo incorpora a autoria como premissa. Mas nos anos 80, o sentido de autoria na videorreportagem fora marcado pela possibilidade de criação solitária, quando a videorreportagem, ainda que retoricamente, se apresentava como uma produção executada por um só jornalista. Com a criação de programas de videorreportagem, entendemos que o sentido de autoria é

atualizado, dadas as próprias condições de produção, que não mais utiliza o trabalho solitário, mas assume a composição de uma equipe.