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FRONTEIRAS ONTOLÓGICAS: COMO FALAR DO CORPO

No documento barbaranascimentoduarte (páginas 41-64)

2 ANCORAGEM METODOLÓGICA: COMO (NÃO) FALAR DO SOCIAL

2.5 FRONTEIRAS ONTOLÓGICAS: COMO FALAR DO CORPO

Antes de prosseguir explorando as abordagens sobre a construção do corpo entre os atores, ao seguir seus respectivos rastros, concederemos ao leitor uma prévia das questões que tal investigação pretende abordar. Portanto, a pesquisa abordará duas histórias.

Lukas Zpira, o fundador do movimento Body Hacktivism possui uma relação peculiar com seu próprio corpo, como implantes subdermais em silicone nas panturrilhas e no peitoral, implantes transdermais de metal pelo corpo, e decidiu implantar um microchip RFID, configurado para interagir com o ambiente. Buscando a maior integração com objetos de seu interesse, optou por criar uma cavidade no próprio corpo cujo objetivo é servir de suporte para componentes eletrônicos. Trata-se de um projeto definido como Multi Application Titanium Skin Interface, um implante de placas de titânio de aproximadamente dois centímetros. Esse receptáculo ou “pele de titânio” é o exemplo da transposição da fronteira do corpo e da pele, e de acordo com Zpira, trata-se de uma interface não biológica entre o corpo e o mundo.

Para abordar a questão das fronteiras orgânicas e inorgânicas, naturais e culturais, um único “caso atípico” talvez não pareça suficiente. Na mesma direção de Lukas Zpira, o jovem Tim Cannon implantou uma caixa selada contendo um chip de computador em seu antebraço que, além de gravar e transmitir informações biométricas para qualquer dispositivo Androide, pode ser recarregado sem fio. O dispositivo, denominado Circadia 1.0, mede a temperatura corporal,

transmitindo em tempo real via Bluetooth os dados gerados. Cannon expôs o desejo - através do referido implante que hoje está em fase de aperfeiçoamento - de integrar corpo e ambiente, tornando ambos mais sensíveis ao que lhe acontece internamente24.

Como encaixar tais ilustrações em somente um domínio, natural ou cultural? Como falar desse império central (LATOUR, 2004) de hibridismo, que não pertence unicamente a uma esfera ou outra, e sim, paralelamente, faz parte de ambas? Como refletir sobre a dialética entre natureza e cultura, tendo em vista a conexão de ambas às concepções sobre a corporalidade? Como não segmentar os fenômenos, corpo/natureza de um lado e tecnologia/cultura de outro? Afinal, a natureza deles é híbrida e uma vez associados possibilitam uma existência corporal inédita.

Sabemos que a rígida divisão entre ambos os domínios foi estabelecida no período que se conceitua por Modernidade. Além disso, Além disso, contemplamos a existência de uma disciplina que há mais de um século tem sido definida como a ciência das mediações entre a natureza e a cultura. Esta abrange de um lado as determinações físicas que criam condição para a vida do ser humano, compreendendo seu próprio organismo, e de outro, os significados de uma diversidade incomensurável cujas determinações são investidas. Paradoxalmente, ao refletir sobre a criação de um corpo com novas funções, tais quais as propostas de Lukas Zpira e Tim Cannon, torna-se inviável a análise que toma por evidência esses dois casos extremos aparentemente distintos, pois estes geram a concepção de um homem híbrido. Como resolver essa ambivalência?

Tanto para a antropologia social e cultural quanto para a teoria ator-rede, é indispensável realçar as controvérsias do problema a fim de tentar compreender o que está em jogo nas relações constituídas. Os polos das controvérsias têm a capacidade de demonstrar as contradições pela qual a antropologia se encerrou desde a partilha do mundo instituída em duas esferas opostas. Respaldando as discussões contemporâneas, o antropólogo e etnólogo Philippe Descola, destaca as diversas dicotomias ocidentais que, uma vez alicerçadas, desenvolveram-se frutiferamente

24 Tim Canon assume os riscos de uma eventual “combustão espontânea” no caso de um vazamento de ácido

sulfúrico do Cincardia 1.0, como é possível com outros tipos de baterias de dispositivos eletrônicos. Como consequência, ele poderia ter uma mudança drástica no seu pH sanguíneo. Para evitar esse problema, ele tem trabalhado no desenvolvimento duplo sistema de cobertura/segurança para proteger qualquer usuário (CANNON, 2013).

como consequência dessa clássica distinção entre as esferas, natureza e cultura – conforme alude em suas obras magistrais Par-delà nature et culture, L’écologie des autres: l’anthropologie et la

question de la nature e Diversité des natures, diversité des cultures25.

Para Descola (2011), a controvérsia dualista entre natureza e cultura irrompeu na Europa a partir do último terço do século XIX, como resultado da organização epistemológica de ordens e meios distintos de conhecer determinados fenômenos. Ao sancionar o mundo em entidades naturais, humanas e culturais, estabeleceram-se os princípios de uma cosmologia Eurocentrista. Foi em razão da natureza ter se tornado “quelque chose d’extérieur aux humains em Europe à la

fin de la Renaissance, que lês développements scientifiques ont été possibles26”(DESCOLA,

2010, p.59). Essa cosmologia, que não é universal, contudo, validou o desenvolvimento das Ciências no Ocidente: “Notre cosmologie a rendu possible la science, mais il faut bien comprendre que cette cosmologie n’est pas elle-même le produit d’une activité scientifique. C’est une façon de distribuer les entités du monde qui est née à une certaine époque et qui a permis

aux sciences de se développer27” (DESCOLA, 2010, p.69). Atualmente, observando de forma

global não é possível conceber a natureza como domínio separado à vida social. A natureza e a cultura são constantemente ponderadas nos argumentos refletivos à sociedade contemporânea:

Na página quatro do jornal leio que as campanhas de medida sobre a Antártida vão mal este ano: o buraco na camada de ozônio aumentou perigosamente. [...] Alguns parágrafos a frente, é a vez dos chefes de Estado dos grandes países industrializados se

25 Nessas três obras Descola aborda a situação da natureza e da cultura bem como o papel do antropólogo, cuja

atribuição consiste em fazer um inventário das diferenças existentes em outras localidades, povos, tribos, conhecendo seus hábitos e maneiras de pensar. Em Par-delà nature et culture Descola retoma as principais teorias antropológicas, expõe a constituição de importantes ontologias, suas relações e, finalmente, apresenta uma reflexão sobre a heterogeneidade das relações entre humanos e não-humanos. Para tanto, ele tem como base sua investigação na Amazônia onde fez sua etnografia com índios nomeados de Jívaros (mas que se reconheciam por Achuar). Durante o trabalho de campo nessa comunidade Descola começou a colocar em questão aquilo que parecia ir além das diferenças entre humanos e não-humanos, bem como aquilo que provinha da natureza quanto da cultura. A divisão que nos parece evidente é ignorada entre os Achuar, e essa relação não é excepcional, tendo sido já descrita em outros locais que não a Amazônia (DESCOLA, 2006).

26

“Qualquer coisa de exterior aos humanos na Europa no fim do Renascimento, que os desenvolvimentos científicos se tornaram possíveis”.

27 “Nossa cosmologia possibilitou a ciência, mas é necessário compreender que essa cosmologia não é em si produto

de uma atividade científica. É uma forma de distribuir as entidades do mundo que é nascida em certa época e que permitiu às ciências se desenvolver.”

meterem com química, refrigeradores, aerossóis e gases inertes. [...] Mais abaixo os países do Terceiro Mundo e os ecologistas metem sua colher e falam de tratados internacionais, direitos das gerações futuras, direito ao desenvolvimento e moratória. O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas. (LATOUR, 1994, p. 07)

Essas associações heterogêneas trazem um impasse: como refletir sobre a multiplicação de híbridos entre a ciência e a sociedade? Seria possível os “modernos” refletirem acerca da dialética natural e cultural? Não é preciso alçar à casos extremos como o projeto de Lukas Zpira para compreender que a maior parte dos objetos ao redor - incluindo aqui os próprios indivíduos, situam-se em posição intermediária, detentora de determinações físicas e investida de outras determinações; sendo por vezes naturais ou culturais, “nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos” (LATOUR, 1994, p. 09). Para descrever a trama que enreda a pesquisa retomamos novamente a noção de rede ou tradução, o fio de Ariadne de todas as histórias complexas, diz Latour.

A noção de rede, se a preciso agora um pouco, designa uma série de associações reveladas graças a uma prova – aquelas das surpresas da pesquisa etnográfica – que permite compreender por quais séries de pequenas descontinuidades convém passar para obter certa continuidade de ação. Esse princípio da livre associação – ou, para ser mais preciso, esse princípio de irredução – que se encontra no coração da teoria ator-rede demonstrou sua fecundidade ao autorizar vários observadores a se permitir em seus estudos o tanto de liberdade de movimento quanto seus informantes (LATOUR, 2012, p. 45, grifo do autor).

Todavia, as discussões em torno da perspectiva das redes são por vezes mal compreendidas ou mesmo misteriosas, analisando conceitualmente as categorias usuais da crítica científica clássica. Por vezes, alude à natureza, à política ou ao discurso, em suma, à cultura, afinal, é nesse âmbito que se articula o mundo28. Felizmente, há tempos a antropologia ensina - a

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Segundo Latour as redes são “reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade” (1994, p. 12). A crítica de Latour trata da segmentação dos fenômenos que não nos auxilia a compreender sua natureza, pois esta é híbrida. Para dar conta da realidade da sociedade, devemos apagar o repertório que tenta lidar com nosso mundo a partir da naturalização, socialização e desconstrução. Apesar de serem críticas poderosas em si, elas não permitem a combinação de umas com as outras. Portanto, é necessário dar conta da realidade se olharmos

partir de etnografias de povos distintos- a olhar o tecido inteiriço da natureza e da cultura onde os fenômenos são sociais, reais e narrados. Essa mesma disciplina, quando se refere à modernidade, nos estimula a inquirir sobre as divisões fixas que nos caracterizou como modernos.

Então, como e onde se encontra a fronteira entre o domínio natural e cultural? A princípio, devemos engendrar a experiência humana como decorrente de dois campos distintos, regidos por princípios diversos, entretanto coexistentes (DESCOLA, 2006, 2010, 2011; LATOUR, 1994). Necessitamos compreender que a perspectiva dualista que adotamos enquanto “modernos”, acarreta consequências concretas frente às práticas da antropologia e da sociologia, evidentes na caracterização do objeto, na determinação dos métodos e na definição do tipo de consciência produzida. E como o pesquisador, que por vezes compartilha da mesma ontologia dos entrevistados, pode escapar da divisão intrínseca? Em se tratando da imitação de um antropólogo distante, é no coração das instituições e crenças modernas que se deve ir, isto é, aprofundar além das margens. O primeiro passo é desestabilizar a concepção tradicional de ser humano, isto é, sua constituição identitária individual e coletiva a fim de recompor a natureza, a cultura e a sociedade:

Humains et non-humains, individus et collectifs, dans un assemblage nouveau où ils ne se présenteraient plus à nous comme distribués entre des substances, des processus et des représentations, mais comme les expressions institués de relations entre des entités multiples dont le statut ontologique et la capacité d’action varient selon les positions qu’elles occupent les unes par rapport aux autres29

(DESCOLA, 2011, p. 13).

Ao abandonar os pressupostos desse dualismo - que desgastou muitos cientistas sociais de forma crescente nos últimos vinte anos – conferimos peso equivalente tanto ao polo da natureza quanto ao da cultura, tomando por referência a simetria equilibrada, capaz de auxiliar o acompanhamento de forma constante no trabalho de mediação realizado entre os quase objetos, e os quase sujeitos. Diante disso, necessitamos identificar como a prática científica e técnica

para os fenômenos como sendo reais, coletivos e narrados, e estão ligados por redes onde o hibridismo circula (LATOUR, 1994).

29 “Humanos e não-humanos, indivíduos e coletivos, em um conjunto novo onde eles não se apresentam mais a nós

como distribuídos entre as substâncias, os processos e as representações, mas como expressões instituídas de relações entre as entidades múltiplas cujo estatuto ontológico e a capacidade de ação variam de acordo com as posições que elas ocupam umas em relação às outras”

seleciona e recompõe os híbridos produzidos. A antropologia simétrica explica os termos equivalentes a fim de explorar, não dicotomicamente, a construção (humana) dos fatos (reais), onde cultura e natureza são ontologias de geometria variável (LATOUR, 1994). O alicerce da sociologia das associações fundamenta essa simetria, adjuntamente à organização dos dispositivos instituídos, tornando possíveis - ou impossíveis- determinadas configurações de híbridos, humanos e não-humanos:

Tenter d’éliminer la dualité du sujet et du monde dans la description de la vie collective ne doit pas conduire à négliger la recherche des structures de cadrage à même de rendre compte de la cohérence et de la régularité des comportements de membres d’une communauté, du style distinctif de leurs actions publiques et privées comme des expressions cofifiées qu’ils en donnent30(DESCOLA, 2011, p. 72).

Para Descola, é comum que os indivíduos repartam destinos ontológicos, tendo em consideração as maneiras adotadas para delegar parte entre os animais, as máquinas ou mesmo as divindades. Essas formas, que não são nem aleatórias nem contingentes, organizam um agregado de práticas, crenças e valores que em prol de uma ordem e sentido elaboram as relações tecidas com o mundo e entre si. Contudo, nesse instante, é crucial desconsiderar o fundo dualista fomentador da existência e construir assim uma paisagem onde a natureza, a sociedade, os humanos e não-humanos, os indivíduos e os coletivos, são “les expressions instituées de relations entre des entités multiples dont le statut ontologique et la capacité d’action varient selon les

positions qu’elles occupent les unes par rapport aux autres31” (DESCOLA, 2011, p. 76) e não se

distribuem entre substâncias, processos e representações. Doravante, discorremos sobre o corpo sem calcar esta distinção, isto dito, não conjecturamos acerca do corpo em termos de representações, propriedades simbólicas, práticas sociais, discurso cultural ou estrutura social. Então, como falar do corpo?

30 “Tentar eliminar a dualidade do sujeito e do mundo na descrição da vida coletiva não deve conduzir a negligenciar

a pesquisa das estruturas de enquadramento capaz de explicar a coerência e a regularidade dos comportamentos dos membros de uma comunidade, do estilo distintivo de suas ações públicas e privadas como expressões codificadas que eles dão”.

31 “As expressões instituídas de relações entre entidades múltiplas cujo estatuto ontológico e a capacidade de ação

The body is our general medium for having a world. Sometimes it is restricted to the actions necessary for the conservation of life, and accordingly it posits around us a biological world; at other times, elaborating upon these primary actions and moving from their literal to a figurative meaning, it manifests through them a core of new significance: it is true of motor habits such as dancing. Sometimes, finally, the meaning aimed at cannot be achieved by the body’s natural means; it must then build itself an instrument, and it projects thereby around itself a cultural world32 (MERLEAU- PONTY, 2008, p. 169).

Sem ignorar a literatura já produzido sobre o corpo, abordamos algumas disposições teóricas acerca da corporalidade. Tal empreitada não é sem riscos, e antes de nos remetermos às diferentes visões, esclarecemos que todas possuem vantagens e importância, ao mesmo tempo em que limitações. Csordas (1994) considerou que grande parte da literatura composta a despeito da corporalidade pode ser entendida a partir do estudo do “corpo analítico”, isso em conformidade ao enfoque da percepção, da prática, aos processos e aos resultados. A percepção consiste nos sentidos, nas noções de sensação, na forma de experimentar o eu através desta, encerrando-se no objeto - o corpo. Este, depois de constituído, torna-se razão para as experiências que o indivíduo já teve e poderá ter, considerando o ponto de vista individual de um objeto do mundo (MERLEAU-PONTY, 2002)33. Quanto à prática, esta se relaciona às noções de técnicas corporais do artigo clássico de Marcel Mauss (2003), tão bem conhecido pela antropologia e sociologia, no qual o corpo é ao mesmo tempo agente e objeto. Mauss definiu como técnicas corporais a maneira que os homens, em diferentes culturas, encontraram para servir-se do próprio corpo, “o primeiro e mais natural instrumento do homem”. Estas técnicas seriam gestos codificados que visam obter eficácia tanto prática quanto simbólica. Marcel Mauss assumiu ter

32 “O corpo é nosso meio geral para se ter um mundo. Às vezes isso se restringe às ações necessárias para a

conservação da vida, e por consequência posiciona ao nosso redor um mundo biológico; outras vezes, elaborando sobre essas ações primárias e movendo de seu significado literal para o figurativo, ele manifesta através deles um núcleo de novo significado: isso é verdade para hábitos motores, tal como a dança. Às vezes, finalmente, o significado visado não pode ser alcançado pelos meios naturais do corpo; ele deve então construir para si um instrumento, e ele projeta assim ao redor de si um mundo cultural”.

33 A principal problemática em Merleau-Ponty é a dualidade sujeito-objeto encontrada no âmbito da percepção. Ele

tenta criar um colapso no que tange essas dualidades ao invocar o corpo como principio metodológico, pois para ele a percepção começa no corpo (CSORDAS, 2008).

cometido um erro inicial ao pensar que só existiria técnica a partir de um instrumento, concluindo então que o principal instrumento do homem, desde o princípio, consistia no próprio corpo. Após observar modalidades esportivas como natação e corrida, afirmou que as técnicas corporais estavam fundadas na relação do indivíduo com o habitus cultural que tornava tais práticas tradicionais e eficazes. Em vista disso, propôs a classificação das técnicas corporais a partir do gênero, da idade, do rendimento e da habilidade. Acrescentando formas de transmissão, intercorridas através da educação, ou da “imitação prestigiosa”, definida por ele como a disposição - nada trivial - em copiar comportamentos bem sucedidos daqueles que são referência para o indivíduo. O ato seria ordenado e autorizado precisamente em corolário a “noção de prestígio da pessoa [...] em relação ao indivíduo imitador, [no qual] se encontra todo o elemento do social”, afirma o autor (MAUSS, 2003, p. 215). Além disso, as técnicas corporais, nas análises de Mauss, podem ser exploradas da perspectiva da reciprocidade, das relações de troca individuais e coletivas, que sinalizam componentes de variabilidade social, cultural, psicológica e biológica constituintes de determinadas capacidades corporais (SHILLING, 2007).

Igualmente, noutro texto clássico da antropologia, Robert Hertz (1980) estima o social em detrimento do biológico ao abordar a proeminência da mão direita sobre a esquerda - que até aquele momento possuía explicações prioritariamente fisiológicas - como de caráter cultural. Assentando a biologia em segundo plano e reforçando o social, assegurou os vários desdobramentos morais que estariam relacionados à polaridade sagrada e profana. Os indivíduos seriam levados, através do aprendizado, a se valer prioritariamente da mão direita ao invés da esquerda, uma vez que o polo direito seria sempre visto positivamente e o esquerdo negativamente. Por sua vez, o antropólogo missionário Maurice Leenhardt expôs o encontro com um mestre do discurso ritual na Nova Caledônia que demonstrou o conhecimento da noção de espírito pelo seu povo, apesar disso, esses ignoravam a existência do corpo34 (LIMA, 2002). Essa perspectiva o espantou inicialmente, tendo em vista que o posicionamento do mestre coloca em

34 Nas sociedades tradicionais de composição holística, naquelas em que o indivíduo é indiscernível, o corpo não é

objeto de uma incisão e o homem se confunde com o cosmos. Nessas sociedades, a representação do corpo é a representação do homem, a imagem do corpo é a imagem de si mesmo.

xeque uma das dicotomias mais naturalizadas do mundo Ocidental e base do discurso cristão, o da divisão entre o corpo e a alma.

Segundo Csordas (1994) outro domínio de concentração na literatura é do corpo como uma temática em si. Essa direção centraliza as relações do corpo em domínios específicos da atividade cultural. Na perspectiva analítica estes aludem as relações de trauma, gênero, religião, self, dentre outros. A proliferação de trabalhos que salientam esses temas continua a levantar uma questão essencial, se haveria algo tal como o corpo ou se este é mais do que a soma de vários tópicos

No documento barbaranascimentoduarte (páginas 41-64)

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