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Zona fronteiriça: delineamentos para uma adequada compreensão da barganha frente aos modelos inquisitivo e acusatório

PROCESSUAL PENAL

2.3. Zona fronteiriça: delineamentos para uma adequada compreensão da barganha frente aos modelos inquisitivo e acusatório

É chegado, após a incursão na temática dos sistemas processuais penais (item 2.1.) e a demarcação – ainda que em linhas móbeis – dos contornos dos princípios inquisitivo e acusatório (item 2.2.), ao que considero ser o centro – estético, material, político – da presente tese. A essa altura, contudo, já não há de surpreender quando afirmo estar tal centro, paradoxalmente(?), situado nas bordas; afinal, importa para a presente tese, tanto quanto a

descrição do conteúdo de cada um dos sistemas processuais penais (e da caracterização dos seus núcleos), a operação de demarcação de seus contornos, bem como a consequente percepção de sobreposições de zonas e de eventual compartilhamento de materiais – para usar a expressão de Rui Cunha Martins, “a presença simultânea de determinado elemento em ambos

os quadros de funcionalidade ou em ambos patrimônios”471.

Em sede de teoria do limite, o ato de traçar linhas é essencial para a detecção dos contornos de determinado assunto, seja permitindo a identificação de seus elementos

integrantes (algo como a dimensão positiva do limite), seja obstando a

intromissão/derramamentos de componentes alheios ao seu quadro de valências (sua dimensão negativa, de barreira).

O que não quer dizer, contudo, que o ato de demarcar seja suficiente por si só. Não o é. É que “a complexidade do fenômeno processual não se contenta com a bondade de umas quantas determinações fundacionais” (...). “Não basta, de fato, o enunciado das demarcações, etapas e funções, convém entrar em conta com o potencial de sobreposição e de deslocamento

funcional”472. É dizer ainda: os limites originários impostos a um determinado ente (como o é

o processo) não são absolutos/inalteráveis. A simples existência de uma fronteira, a vedar ou permitir – dependendo do caso – interações do sistema (entradas e saídas de elementos) com o jogo do mundo, não é garantia da sua imobilidade; em termos operativos, a fronteira funciona, sim, ligando (permitindo a conexão) e desligando (vedando-a), mas igualmente funcionará deslocando-se. A esse respeito, convém atentar para a lição do autor português acima mencionado:

... não coincidindo os contornos desses vários dispositivos processuais com fronteiras rígidas e mutuamente excludentes mas antes irregulares, há todo um jogo de proximidades e sobreposições que redesenha os referidos contornos e que, nesse movimento, permite a “passagem” e a “incorporação” de componentes provenientes de outras configurações, onde procuravam responder a desafios de outra natureza, desafios esses que agora são assim “transportados” para o interior dos dispositivos processuais para, uma vez aí, potenciarem sua reconhecida dinâmica experiencial. Com o que o componente de heterogeneidade passa a não ser deduzida apenas de um recorte externo, de ordem interprocessual, mas prolonga-se no interior do próprio processo, ao nível, portanto, da respectiva endoconsistência.473

471 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. op. cit., p. 86 472 Idem, p. 24

Não só se altera o próprio conjunto sistêmico com a entrada ou saída de elementos (reconfiguração interna, criação de novos elos e desfazimento de antigos, turbulência inter e intra sistêmica), como também, a cada passagem ou fechamento, se refaz a própria fronteira. Isto é dizer, a fronteira mesma não é estática; ela é requisitada, criada, alterada, refeita. Eis a razão pela qual “é ela mesma, tanto o problema que supostamente ela acolhe e trabalha como matéria em trânsito, que é refeita por ocasião de cada ‘passagem’ ou de cada ‘fechamento’ a

esse mesmo problema”474.

Ademais, em um tempo (globalizado) em que pululam diagnósticos apressados de morte da fronteira, afirmar a sua vitalidade chega a ser um contrassenso. Mas, o fato é que ela ainda está vivíssima, pois não cessa de ser requisitada. É, inclusive, em alguma medida, compreensível que os relatórios sobre o mecanismo fronteira venham em forma de autópsia: deveras, a “sobreposição desenfreada das formas e dos conceitos”, decorrente “da generalização das lógicas da simultaneidade” – em que a superação-sucessividade é chamada a conviver com a contiguidade-lateralidade, num quadro configurador da complexidade contemporânea –

levam à ideia de que “os contornos demarcatórios foram aplainados”475.

Esses relatórios, contudo, parecem incapazes de capturar que “as fronteiras não estão em

perda; deslocam-se”476. Falta-lhes perceber a dinamicidade do limite. O fato de a empreitada

pela detecção dos contornos demarcatórios ser mais complexa – a mudança no modo do limite tornou mais dificultosa a distinção entre os opostos (tornados simultâneos) – não obsta o reconhecimento de que o limite ainda existe; mantém-se hígido; opera, desempenha funções. Nessa esteira, é pertinente notar que

A versão da diluição de fronteiras, que distraidamente é imputada ao mundo globalizado, é um logro explicativo, ao qual escapa a expansão inusitada dos níveis de requisição de modalidades fronteiriças, no âmbito da qual a aparência da diluição esconde o fenômeno da sobreposição desenfreada. As fronteiras não estão em perda; deslocam-se. As cadeias de montagem de muros políticos e sociais, não só os metafóricos, mas também os físicos, pretensamente acantonados a determinado período histórico, não cessaram o seu trabalho produtivo e é mesmo de crer que as solicitações lhe cheguem hoje das mais variadas escalas. A globalização não matou o muro – globalizou-o. Percebe-se: os muros são mecanismos, exercem determinadas funções; não tendo perecido as funções de delimitação, filtragem, limbo, transgressão

474 Idem, p. 115

475 Idem, p. 114 476 Idem, p. 91

ou passagem, que eles asseguram, por que motivo haveria de perecer o mecanismo “muro”?477

E, de fato, não haveria de perecer tal mecanismo. Curioso é notar que num estágio de requisição infrene de muros irrompam sujeitos aptos a feitura de sua autópsia. Entenda-se: se há, de fato, um enfraquecimento da fronteira histórica (soberania, povo, território, nação) – o que por si só é questionável em algum sentido, visto a crescente dos discursos xenofóbicos e racistas, com a construção de muros anti-imigração – têm-se, igualmente, novas formas de solicitação desse mecanismo.

De se frisar, assim, que o caráter movente do limite – ele é feito e refeito continuamente, a cada passagem ou fechamento; ele é criado em novas escalas e dissolvido em antigas instâncias – não torna a atividade demarcatória menos importante. Todo pelo contrário: justamente por sua dinamicidade, demanda atenção redobrada. Num momento em que o mundo “se apresenta como tendencialmente irrestrito, a demarcação surge como desafio indeclinável e, com muita probabilidade, como uma das operações de resistência ao totalitarismo das

sociedades tornadas incapazes de gerir a produção de limites”478.

Por ser operação de irrecusável conotação política, a atividade demarcatória – onde desenhar a linha?, ao que permitir a passagem?, quando fechar a porta? – se assenta em escolhas do sujeito que traça a linha; ao fim e ao cabo, uma fronteira jamais poderá se furtar de ser o

“produto de uma decisão tomada”479. Eis a chamada dimensão autoral do limite; se demarcar é

necessário, convém salientar que, por depender de um autor que o faça, tal atividade será também um problema. Afinal, “o sentido de um ato demarcatório, não sendo nunca inocente (e disso ele retira a sua condição de acto político) é, basicamente, imprevisível, merecendo por

isso a exigência da sua justificação e sua subtração ao essencialismo”480.

Impõe-se, portanto, por incontornável, trabalhar com a problemática da fronteira, não negando, sob hipótese alguma, que laborar sobre o limite é também, em boa dose, traçar linhas (inegável sua dimensão autoral).

477 Idem, p. 91

478 Idem, p. 116 479 Idem, ibidem 480 Idem, ibidem

Antes de adentrar, contudo, no exame detalhado das fronteiras do dispositivo processual penal, zona na qual situados os mecanismos negociais, convém realizar alguns apontamentos.

Releva memorar, preliminarmente, que já se adentrou em momento anterior na questão do limite e sobre a pertinência da atividade demarcatória para a delimitação dos contornos entre os sistemas processuais penais e para a distinção entre os núcleos de inquisitivo e acusatório (ver itens 2.1 e 2.2). O ensaio, àquela ocasião feito em moldes preliminares, ganha novo fôlego; a essa altura, interessa-me tanto quanto a detecção dos contornos de um dispositivo como o é processo, também a percepção de que, tal qual o terreno que circunda, a fronteira é também um dispositivo complexo: seleção, filtragem, passagem, fechamento, incorporação são algumas das operações constantes no seu rol de desempenho.

Visto por essa ótica, posso afirmar, não sem alguma dose de ousadia, que a estética da fronteira é uma constante na tese. Ora, desde a formação das duas distintas culturas jurídicas – não por acaso, em sua modalidade soberania, a fronteira exerce importante tarefa sobre o desenvolvimento das duas grandes famílias do direito –, passando pelo surgimento do plea bargaining nos Estados Unidos da América (separada geograficamente e culturalmente distinta da antiga metrópole) e seu movimento de legal transplant para solo brasileiro, esteve sempre o limite a se fazer ser sentido. Por isso que reler a presente tese levando em consideração o mecanismo fronteira é, por assim dizer, recomendável.

Nesse diapasão, é de se atentar igualmente que, em sendo a barganha um instituto importado da cultura jurídica estadunidense ao Brasil, não haveria como não ter de ultrapassar uma real fronteira – precisamente aquela que separa Estados territoriais. Outrossim, em se tratando (aparentemente) de mecanismos requisitados de um quadro de elementos constantes do patrimônio acusatório – as práticas negociais são tidas por muitos como a máxima representação do processo de partes; expor essa falácia é um dos objetivos da presente subsecção –, natural que deva passar também por uma “virtual” fronteira sistêmica, justo porque o transplante se dá para uma cultura jurídica forjada e adepta a um modelo inquisitivo, ainda que com a transição democrática-constitucional na década de oitenta. Essas anotações já oferecem, a bem dizer, uma espécie de justificação (ainda que parcial) para a requisição de um dado dispositivo como é a fronteira; também dão a entender a complexidade a envolver a solicitação mecanismos de quadros culturais alheios.

Releva trazer, contudo, de maneira mais explícita, a discussão da problemática do limite para o processo penal. Nessa esteira, é mister indagar: qual a pertinência da abordagem fronteiriça para o estudo do processo penal? E ainda, como se justifica a adoção dessa abordagem e a mobilização de um instrumental teórico-analítico – na aparência, pouco conexo ao cerne da tese – para o trato com os mecanismos negociais e sua expansão sem precedentes mundo afora? Afinal, qual será o elo (e onde desaguará a conexão) entre elementos e noções quais processo, rizoma, sistemas processuais, mecanismos negociais, contornos, núcleo, fronteira? São questionamentos os quais se buscará responder.

No tocante à primeira pergunta, cabe asseverar que o processo penal extrai a sua legitimidade exatamente enquanto instituidor de limites ao poder punitivo estatal. Com razão, leciona Rui Cunha Martins que “quer o sistema penal, quer o sistema constitucional, retiram a

sua importância, para não dizer sua legitimidade, da sua instituição enquanto limites”481. De

fato. E também o faz o sistema processual penal. É dizer ainda: o sistema processual penal, ao retirar sua legitimidade de sua instauração enquanto limite, deverá conceder especial atenção a atividade demarcatória.

E se o “processo é microcosmo do Estado de direito”482 (ver item 2.1), importa reconhecer

que essa co-pertença faz do limite matéria ainda mais cara. Há de se perceber que o processo

penal, enquanto “verdadeiro direito constitucional aplicado”483 (Henkel), é, em boa dose, a

concretização fática de opções políticas constantes na carta maior. Nesse sentido, preciosa é a lição de Bettiol: “Quase não há um instituto de processo penal que não revele a sua intrínseca natureza política e não seja, portanto, a expressão de uma ideia que supera o plano da realidade

prática e a espelha em termos de orientação política”484.

Nessa senda, basta ver o caráter limitador dos princípios do processo penal constitucional: para além de uma função de garantia dos direitos dos indivíduos (dimensão positiva), as normas constitucionais surgem como barreiras (dimensão negativa) contra as práticas punitivas arbitrárias do Estado. Devido processo legal, presunção de inocência, juiz natural, contraditório,

481 Idem, p. 114

482 MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. op. cit., p. 2 483 Tal asserção de Henkel é apresentada por Manuel da Costa Andrade em ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova no processo penal. Coimbra, 2006. p. 12

484 A lição de Giuseppe Bettiol é citada em coluna de René Ariel Dotti. In.: DOTTI, René Ariel. O Processo Penal Constitucional – Alguns aspectos de relevo. Gazeta, 2015.

vedação a prova ilícita, entre outros tantos, não são apenas garantias processuais dos sujeitos- processados, senão também deveres do Estado (ao menos no marco do Estado democrático de direito, devem ser normas de orientação política ao agir estatal).

Mas não é só. Em se tratando do estabelecimento de limites ao poder punitivo estatal, não se pode olvidar dos axiomas do garantismo penal: nullum crimen sine lege, nulla culpa sine iudicio, nulla iudicium sine accusatione, nulla accusatio sine probatione não são fórmulas vazias; devem implicar, sim, em uma atuação do Estado, no curso do processo ou fora dele, legislando, acusando ou julgando, para que ao final a sanção esteja legitimada e a intervenção estatal na esfera individual justificada (tomados o direito penal e processual como instrumentos de contenção do poder punitivo).

O processo penal, portanto, deve ser limite ao poder punitivo do Estado; eis a sua razão de existir. Leciona Geraldo Prado que “o estado de direito tem nas regras do devido processo legal sua base jurídico-política, por meio da qual o exercício legítimo do monopólio da força tende a não se converter em arbítrio”, não tendo “sentido conceber a atuação estatal de verificação da responsabilidade penal de alguém fora das margens instituídas no âmbito da

legalidade”485. Às margens, portanto: são através delas que se poderá examinar a

(in)compatibilidade do processo penal com os princípios ditados pelo estado de direito, concluindo-se pela (i)legitimidade da sanção penal.

Insisto em matéria limítrofe. Ensaiei, em ocasião antecedente (item 2.1.), uma compreensão do “processo, qualquer processo, como um dispositivo articulador de elementos de vária ordem”, sujeito a “um sem-número de cruzamentos inesperados, tão depressa vertidos em oportunidade de incorporação quanto em hipótese de diferimento”; enfim, “uma dinâmica

que antecede a introdução de uma qualquer direcionalidade”486. E que, de modo a introduzir

uma direcionalidade a esse sem-número de cruzamentos e dar sentido a essa miríade de elementos, desponta como fundamental a implementação de uma lógica sistêmica, capaz de ordenar o complexo e racionalizar as conexões entre os elementos de um dado processo (diminuindo nelas o relevo do imponderável).

485 PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. op. cit., p. 15

Portanto, e aqui reitero, em seu movimento de devir-sistema, o processo se limita. Cria fronteiras; ergue muros. No seu nascedouro, demarca, selecionando determinados elementos e práticas que o constituem ou são autorizados e outros que restarão do lado de lá de suas margens.

Não obstante, o sistema processual, por seu mero caráter ordenador, não consegue prevenir-se de algum nível de imprevisibilidade nas interações intra e intersistêmicas. Ao nível da conectividade, poderia chamar esse fenômeno de permanências rizomáticas; ou seja, por mais bem forjado que seja o sistema, não há como se prever todos os movimentos, interações, contatos, sobreposições existentes entre os seus elementos. Não há dúvida, assim, que “a via da

sistematicidade não anula por completo o substrato rizomático que persiste”487; é tarefa

inexequível, até mesmo para um ordenador como a lógica sistêmica.

A manutenção de um substrato rizomático no processo-tornado-sistema pode ser compreendido a partir de duas óticas. A primeira, já exposta linhas acima, de que a transformação de um dado processo em sistema processual não é suficiente para conter, por assim dizer, o ímpeto voraz dos elementos processuais. Se é verdadeiro que esses elementos terão relações menos imprevisíveis e vizinhanças menos inoportunas (por conta da sistematicidade), também o é que jamais serão de todo previsíveis ou esperadas, visto se tratar o processo de um dispositivo complexo. A segunda, decorrência direta da primeira, resulta na percepção de que é a fronteira o operador que permite passagem e vedação, incorporação e alheamento, sendo ela mesma o palco privilegiado do tensionamento entre o permanente acossar de uma “memória rizomática” – que pende a fazer a fronteira funcionar abrindo-se ao ambiente – e um “desejo de coerência” do sistema – que visa tornar as interações menos imprevisíveis, preferindo a manutenção em fechado da fronteira.

É sobre essa tensão imparável que ela, fronteira, se instala. Na realidade, existe para dar conta dessa impossibilidade: de um cessar-fogo entre duas tendências não coadunáveis. Ela, tanto quanto os elementos processuais com os quais tem de lidar, é um dispositivo complexo, que desempenha funções nem sempre consentâneas – justo por ser a fronteira fruto de uma escolha política, a divergência não cessa, nem mesmo sobre a atividade que é suposta desempenhar. Nesse sentido, merece espaço a lúcida intervenção de Martins:

487 Idem, p. 68

em sede de teoria do limite, a instalação de um problema sobre a fronteira não garante a estabilidade dessa mesma fronteira; na verdade, é ela mesma, tanto quanto o problema que supostamente ela acolhe e trabalha como matéria em trânsito, que é refeita por ocasião de cada ‘passagem’ ou de cada ‘fechamento’ a esse mesmo problema. 488

Em se tratando da eleição para um dos sistemas processuais penais, convém atentar-se, sim, para os elementos componentes de ambos os patrimônios, acusatório e inquisitório. Mas também é de bom alvitre não se esquecer de dar atenção às suas fronteiras. Afinal, é consubstancial à lógica sistêmica a requisição de tal mecanismo limítrofe; e, por sua vez, é consubstancial à “lógica da fronteira” o tensionamento incontível entre vontades incompatíveis, que demandam dela uma constante disponibilidade para incorporar novos elementos e alhear outros, em devir-intenso (inesgotável vir a ser).

Por sinal, nesse tocante, cabe salientar que o saber processual penal – seja em sua vertente crítica ou em sua modalidade legitimadora – transforma-se de acordo com as práticas punitivas de um determinado momento histórico, assim como (em movimento oposto, mas complementar) ajuda a modificar esse mesmo quadro de práticas. As implicações entre poder e saber são bem dadas desde Michel Foucault. Assim, ao tomar o processo como um dispositivo coordenador de elementos díspares estou a reconhecer, precisamente, que ele – processo – comporta uma miríade de práticas discursivas e não discursivas (linhas de enunciado e de luz), a formar uma rede na qual saber e poder estão inarredavelmente implicados.

Tal relacionamento, nem sempre pacífico, entre poder e saber deságua, consequentemente, na problemática da fronteira. Perceba-se: as decisões a respeito de onde traçar a linha(?), ao que permitir a entrada e ao que vedá-la(?), qual o nível de porosidade dos muros que separam o de dentro do de fora (?), são todas respostas perseguidas pelo saber processual penal; igualmente, o são de maior relevância para o Poder, dado a indeclinável conotação política de tais decisões – i.e. para ficar no processo penal, a escolha e o desenvolvimento (teórico e prático) de um dado método de arbitrar responsabilidade passam pelo estabelecimento de limites (separar o desejado do indesejado, o lícito do ilícito, o ético e o reprovável).

488 Idem, p. 115

Ademais, é de particular importância notar que, em sede processual penal, o problema se agrava – e se adensa. É que a filiação a um dado sistema processual penal não obsta a requisição de componentes do outro modelo; em verdade, o permanente tensionamento entre acusatório- inquisitório é o nó górdio do processo penal, vez que tendências políticas antagônicas não

cessam de produzir fricções neste terreno489.

Retomo no trato com os atritos (política) em terreno. A respeito da coabitação de orientações díspares – e, inclusive, na inevitável(?) convivência entre elementos pouco compatíveis no dispositivo processual penal –, valho-me da metáfora da moeda, formulada por Geraldo Prado:

o sistema acusatório é como a face de uma moeda: não existe sem a “coroa”, cuja presença iminente sempre incomoda, porque relembra (história) as estratégias de infiltração das práticas autoritárias, em avanço muitas vezes destemido sobre os direitos humanos. 490

Em alguma medida, é inerente ao convívio entre tendências políticas díspares no campo jurídico penal a requisição dos atores políticos a elementos pouco coadunáveis com o sistema eleito, vide a presença – velada ou às escâncaras – de práticas punitivas autoritárias em pleno ambiente democrático (no caso brasileiro, 30 anos se passaram da democratização e ainda está a se ver arbitrariedades em campo penal).

Ante o exposto, chega-se a conclusão de que, se a sistematização é uma respeitável “via

de contornar as investidas sobre o dispositivo processual penal”491, não é ela capaz, por si

mesma, de garantir a impenetrabilidade dos muros – como a entrada/permanência de autoritarismos em um processo penal democrático. Um certo grau de incerteza é, por assim dizer, inerente à dinâmica dos inter-relacionamentos em sede processual penal: os componentes