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Função paterna e o processo de subjetivação, filiação e transmissão

Em um trabalho que visa ao aprofundamento do estudo acerca da relação mãe-filho torna-se imprescindível tratar da importância do pai, enquanto função simbólica que determina o descolamento da criança da posição fálica; e em relação a seu papel no registro da realidade. Além disso, numerosas pesquisas apontam a diferença que faz quando a mãe pode contar no ambiente familiar com a presença de um companheiro a quem ela destina seus interesses para além dos cuidados com o filho e com cuja ajuda pode contar na complexa tarefa de cuidar dos filhos, especialmente no pós-parto (Pereira & Piccinini, 2007; Stefanello, 2005). Não obstante, Pereira & Piccinini (2007) ressaltam a importância do pai e da intensidade de sua relação com o filho primogênito como importante mediador da reação do primogênito ao nascimento do irmão e fator responsável pela diminuição do distanciamento e do conflito entre mãe e filho mais velho nessa ocasião.

No que se refere à relação da primeira com a segunda instância, antes de prosseguir à retomada do lugar e da importância do pai na família, vale ressaltar que, conforme define Faria (2003), ainda que haja a presença potencial do pai, se não houver referência à Lei no discurso da mãe, a entrada potencial da função paterna ficará comprometida.

Não que a presença do pai, homem cuja contribuição biológica estará sempre na origem do bebê, não faça diferença. Como aponta Kehl (2006) o pai pode ser aquele que se oferece como substituto da mãe, apresentando à criança uma outra oferta/demanda pulsional, o que pode ser muito importante para que o bebê possa assim estar mais protegido da ambivalência materna, por exemplo nos casos de bebês mal-formados e/ou prematuros. Tal proteção se torna possível tendo em vista a diferença de representação fálica do filho para a mãe e para o pai.

É importante ressaltar que a família, como primeira ordem social em que o indivíduo é inserido, é estruturalmente regida por uma série de mitos que servem, no processo de constituição subjetiva, como ponto de ancoragem simbólica e imaginária que situa o sujeito em determinado lugar naquele grupo familiar. Seria uma espécie de berço simbólico que transmite como herança, a possibilidade de inserção no mundo humano e de viver em uma cultura. Missonnier (2004), nesse sentido, define a cultura como uma espécie de placenta psicossocial onde se dão as relações familiares de modo ampliado.

Pensando em termos individuais, o mito fundador, o ponto de partida subjetivante é, como já visto, o desejo de ser o objeto de desejo da mãe e fazer o Um total e perfeito, ideal maior de amor. Portanto este é também o foco de maior angústia: uma perfeita correspondência, a completude entre objeto de desejo e a falta desejante implica na morte do

desejo e no aprisionamento do sujeito em determinado lugar que não o de sujeito desejante, mas o de objeto de gozo para o Outro materno.

A criança se nutre dos projetos narcísicos de seus pais e, dessa forma, os valores culturais e familiares se transmitem, assegurando- lhe um valor específico no seio da filiação. Assim, há uma sutil linha de fronteira entre o social e o subjetivo. O grupo familiar, apesar de todas as modificações e configurações contemporâneas (famílias monoparentais, homoparaentais etc), ainda é considerado o lugar privilegiado para a constituição psíquica e a socialização da criança (Passos,2006)

Nesse ponto cabem as contribuições de Freud (1996/1921) e o que definiu como o mito científico do pai da horda primeva ansiando por dar uma explicação global da origem das sociedades e da religião a partir dos dados da psicanálise, ou, como diz Roudinesco (1998, p. 757), “dar um fundamento histórico ao mito de Édipo e à proibição do incesto”, Freud faz uma leitura do mito do pai da horda com o intuito de chegar à base da psicologia individual e da de grupo. Para tanto, busca as origens da psicologia de grupo nas características dos membros individuais-grupais da horda e as origens da psicologia individual nas características psicológicas do pai ou líder:

Os membros do grupo achavam-se sujeitos a vínculos, tais como os que percebemos atualmente; o pai da horda primeva, porém, era livre. Os atos intelectuais deste eram fortes e independentes, mesmo no isolamento, e sua vontade não necessitava do reforço dos outros. [...] todos os filhos sabiam que eram igualmente perseguidos pelo pai primevo e o temiam igualmente (Freud,1996/1939,p.134)

Esse mito freudiano circunscreve a essência conceitual da noção de pai como aquilo que legaliza as relações de troca entre os sujeitos de uma mesma comunidade as quais têm suas origens na relação entre mãe e filho, na qual o pai, mesmo antes da passagem da criança pelo Complexo de Édipo, já é presente desde o momento em que o sujeito se “confronta com o lugar imaginário onde se situa o desejo da mãe, e esse lugar já está ocupado”(Lacan, 1999/1957-58, p. 249). Em “As fórmulas do desejo” Lacan retoma o trabalho “Totem e Tabu” de Freud e afirma que o totem seria um significante de “serventia múltipla... graças ao qual tudo se ordena, e principalmente o sujeito, porque o sujeito encontra nesse significante aquilo que ele é, e é em nome desse totem que se ordena também, para ele, o que é proibido” (Lacan, 1999/1957-58, p. 321). No que se refere às marcas da incidência daquilo que interfere na relação do sujeito com a mãe, de acordo com Lacan, “o falo é terceiro no que constitui aí a relação imaginária do sujeito consigo mesmo.” (Lacan, 1999/1957-58, p. 309).

A noção de pai, enquanto agente da paternidade comum é o que Dor (1991) define como operador simbólico a-histórico, ou seja, que não depende de um ordenamento cronológico. A função paterna, na Psicanálise, não está diretamente associada à existência do pai biológico, mas à de “um pai investido de seu legítimo poder de intervenção estruturante do ponto de vista do inconsciente” (Dor, 1991, p.13-14). De outra forma, pode-se entender que estará operando a função do pai aquele que intervém perante a economia do desejo do filho às voltas com o desejo da mãe: “não é pois necessário que haja um homem para que haja um pai” (Dor, 1991, p. 19).

Daí, inclusive, a diferença conceitual entre paternidade, que é da ordem da paternidade real, e filiação. Esta última prevalece sobre a primeira e encontra-se se situa no nível prioritariamente simbólico. No entanto, além da entrada do pai como aquele que faz referência direta à Lei da proibição do incesto (Dor, 1991), sua importância está também no exercício da “função de moderar os excessos de apego entre mãe e filho a fim de alavancar o processo de subjetivação” (Kehl, 2006, p. 37).

Não se pretende aqui fazer uma vasta revisão do processo edípico, no entanto é de fundamental importância retomar o conceito de Falo, uma vez que ele está diretamente associado ao significado do bebê desde os primeiros tempos da relação com os pais.

Na obra de Lacan, o Falo constitui uma referência à função do pai como mediador da relação entre a mãe e a criança. Essa função paterna interpõe-se na relação diádica, imaginária e especular que é verificada entre o bebê e a mãe. Ela é a castração. Para poder ser o terceiro e intermediador do vínculo diádico, o pai deve transmitir a Lei, fato que se atualiza por ser o portador do nome. É o pai quem nomeia o filho, e neste ato, está simbolizado que é possuidor do falo, da Lei. A inserção do pai tem efeitos de inserção da criança na cultura a partir das interdições e imposições de limites.

A função paterna propicia uma espécie de abertura psíquica – tanto interna, subjetiva, como voltada para o outro, para o externo -, o que permite à criança ampliar recursos como as capacidades de elaboração, fantasia e simbolização, ao mesmo tempo que expande suas possibilidades de compartilhar e diversificar relações sociais. (Passos, 2006, p.10)

Nesse segundo momento do processo edípico, o pai passa a participar, privando a mãe de seu filho-falo e a este da satisfação imaginária, proporcionada por ser o falo da mãe. A criança se vê forçada, simultaneamente, a pôr em dúvida sua identificação fálica e a renunciar a ser o desejo da mãe. Correlativamente, do ponto de vista da mãe, o pai a priva do falo que supõe que seja o filho. O pai parece ser, para a criança, o objeto fálico possível. Neste contexto, a criança ingressa na simbolização da Lei, que, mais tarde, permitirá o declínio do

complexo. O confronto com a castração implica no abandono da posição de ser o falo da mãe e no surgimento da necessidade de “ter” aquilo que preenche o desejo da mãe. O pai real, ao impor a Lei, transforma-se em pai simbólico.

Na teoria lacaniana, esse processo é estruturante. O ingresso no mundo do significante e, portanto, na constituição do inconsciente e o recalcamento originário estão sujeitos a ele. Foi isto que Lacan teorizou, sob o nome de “A Metáfora do Nome-do-Pai”. Com já foi dito anteriormente, o simbólico passa pelo Pai e é no Nome-do-Pai que se deve reconhecer o suporte da função simbólica. É o falo que vai permitir que o pai real assuma sua representação simbólica e regule a economia do desejo com referência à mãe e ao filho (Dor, 1991).

Ao fim da fase pré-edípica, a criança precisa assumir o falo como significante de uma maneira que o faça instrumento da ordem simbólica. Na resolução edípica, ou seja, pela intervenção do Outro, agora já não mais o Outro materno, o sujeito ultrapassa a relação dual ascendendo à ordem simbólica. Lacan (1987) aponta que se tem por aceite que a situação mais normatizante do vivido originário do sujeito moderno, sob a forma reduzida que é a família conjugal, está ligada ao fato de o pai se encontrar como o representante, a encarnação de uma função simbólica que concentra em si o que há de mais essencial na estrutura cultural: a proibição do incesto. Além disso, a chegada desse terceiro na relação, posteriormente, será responsável pela expansão do mundo relacional da criança.

Já paternidade é vista como uma transição do desenvolvimento emocional do homem, conforme Maldonado (2000). Em geral, os pais possuem dificuldades para a formação do vínculo entre pai e filho, pois, diferente do que ocorre com a mulher na maternidade, o homem nunca poderá sentir o bebê dentro de si, dar à luz e amamentar. Por isso, a vinculação entre ambos costuma ser mais lenta, consolidando-se gradualmente após o nascimento do bebê e seu desenvolvimento dele (Maldonado, 2000).

A pesquisa longitudinal de Krob, Piccinini e Silva (2009) acerca da transição para a paternidade destaca que, não só durante a gravidez, mas também no segundo mês de vida do bebê, a vivência emocional dos pais pesquisados é marcada pelo sentimento de exclusão. A referida pesquisa aponta que este é o sentimento mais universal segundo levantamento bibliográfico acerca dos estudos que investigam o tema. Além do sentimento de exclusão, os dados da pesquisa com 20 pais de primeiro filho indicaram que há durante a gravidez da esposa grande ambivalência afetiva a qual dá lugar a sentimentos positivos e satisfação dois meses após o nascimento dos filhos.

Este sentimento pode ser análogo ao da época do período edípico. A revisão do passado pode levá-lo a uma reavaliação de questões interiores resultando em uma

recombinação na personalidade do pai, processo que envolve inúmeras mudanças bastante complexas, incluindo a re-atualização de situações infantis antigas como a relação com seu próprio pai (Raphael –Leff, 1997; Krob et al., 2009). Raphael -Leff (1997) discorre sobre o fato do pai, expectador da relação mãe e filho, posto no lugar terceiro que a função lhe atribui, poder se sentir deixado de lado e até ter sido ignorado pelos profissionais de saúde e amigos. Portanto, este sentimento de exclusão não se encontra apenas na situação do homem-pai, mas também na própria sociedade.

Os resultados da pesquisa de Krob et al. (2009), apontam que estudos recentes apresentam uma nova perspectiva de paternidade a qual é marcada por uma modificação do padrão tradicional de participação paterna que dá lugar a novos ideais culturais onde do pai se espera presença constante nos cuidados com os filhos, assim como divisão de responsabilidades com a esposa. Os pais participantes da pesquisa (Krob et al., 2009) após análise do material resultante de entrevistas realizadas em dois momentos diferentes do tempo (durante a gravidez e dois meses após o nascimento dos filhos), demonstraram durante o período gestacional querer interagir com seus filhos, tanto através da realização de cuidados como em trocas afetivas, o que de fato pode ser observado posteriormente após o nascimento dos bebês quando os pesquisadores perceberam grande proximidade e afeto na relação pai- filho.

Contudo, em relação aos cuidados a participação dos pais não se mostrou tão efetiva quanto a planejada, o que os autores entenderam como resultante de uma diferença entre o ideal cultural de paternidade e a realidade do comportamento paterno o qual ainda é marcado pela não efetivação da divisão de tarefas com as esposas apesar da maior intensidade afetiva no relacionamento com os filhos.

Para finalizar este trecho que teve o intuito de situar, para além do desejo da mãe, a importância da função paterna na estruturação subjetiva da criança, vale a pena fazer referência às colocações de Faria (2003) quando esta autora aponta a não existência de regras universais, receitas capazes de definir as características que um pai deve ter para operar como tal, mas chama a atenção para as contribuições fundamentais da posição do mesmo como terceiro no Complexo de Édipo.

Apesar de nesta pesquisa ter se apresentado a função do pai e a importância da paternidade, não se aprofundou no significado, na influência e nos efeitos do desejo do pai na constituição psíquica da criança. No entanto, não se está negando que o que um filho representa para o desejo paterno marca a criança muito precocemente, uma vez que isso tem a ver com a versão masculina do desejo (Kehl, 2006): o desejo de confirmação fálica e o desejo

de descendência. Essa marca precoce foi definida, por Freud (1996/1923), como identificação primária e, por Lacan (1998b/1960), como traço unário, ou seja, a impossibilidade de a criança realizar o Eu ideal (o falo da mãe). Ao longo do desenvolvimento, o traço unário dá lugar simbólico aos ideais do Eu transmitidos pela função paterna. São estes os efeitos da transmissão: “(...) nenhuma satisfação por um objeto real qualquer que venha aí como substituto jamais consegue preencher a falta na mãe.” (Lacan, 1995/1956-57, p.180)

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