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A função e o valor ontológico da segurança (jurídica): a reconstrução da noção de objetividade.

5. A FENOMENOLOGIA E SUA CONTRIBUIÇÃO À TEORIA DOS SISTEMAS.

5.1. A função e o valor ontológico da segurança (jurídica): a reconstrução da noção de objetividade.

O objetivo deste capítulo é refletir sobre as possibilidades de uso do método fenomenológico para propor uma revisão da eidética do ato administrativo discricionário além da observação proposta pela teoria dos sistemas e assim ajudar na formulação de uma apresentação alternativa da discricionariedade administrativa. De certa maneira, uma teoria da discricionariedade não pode perder de vista a realização de um valor humano e isso é possível no sistema jurídico quando através do vetor da comunicação os valores são reintroduzidos na questão fundamental do decidir da administração pública.

Luis Recaséns Siches154ao tratar da fenomenologia aplicada ao direito155 disse que o grande mérito da fenomenologia, ao se contrapor ao pensamento empirista e positivista, foi reconhecer que o conhecimento não se dá apenas pela experiência estabelecida a partir da observação, mas de que é possível construir uma ontologia objetiva a partir da experiência156.

Segundo Recaséns, Husserl dedicou uma grande parte de seus estudos não apenas à lógica formal, mas também em relação a conteúdos constitutivos das essências das coisas, constitutivos de sentido e significado. Para ele a essência pode ser captada através de uma intuição que revela o modo imediato como a os sentidos essências das coisas se mostram.

É certo que mesmo em uma perspectiva fenomenológica, a ideia de positividade é a base da ordem jurídica moderna. Sua função permite a manutenção do equilíbrio

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SICHES, Luis Recaséns. Direcciones contemporâneas del pensamento jurídico: la filosofia

del derecho en el siglo XX. 2ª ed. Madri, Editorial Labor, 1936, p. 212-236.

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Recaséns destaca no estudo em questão que o primeiro ensaio que pretendeu uma aplicação da fenomenologia ao estudo do direito foi desenvolvido em 1913 por Adolf Reinach. Um dos discípulos de Husserl que escreveu uma obra chamada de Los fundamentos apriorísticos del derecho civil, o que se constituía numa aplicação da fenomenologia ao campo jurídico. Para Recaséns, embora fosse louvável a proposta, Reinach não teria logrado êxito em seu projeto porque muitas das questões fundamentais apresentadas por ele em seu ensaio ainda utilizavam muitas das premissas da teoria do direito em voga. In: SICHES, Luis Recaséns. Direcciones contemporâneas del pensamento

jurídico: la filosofia del derecho en el siglo XX. Idem, p. 233.

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social visto que o conflito é uma constante da interação entre os indivíduos e as entidades que integram a sociedade. Isso certamente não quer dizer que a positividade seja o mesmo que positivismo, mas não deixamos de reconhecer que em direito, concepções como validade e eficácia das normas jurídicas, se revestem de certa positividade imperativa, sem a qual, a ordem jurídica não poderia ter sua representação ou função estabilizadora. A ideia de que ninguém pode descumprir a lei ao argumento de desconhecê-la, reflete, exatamente, a crença na força de sua positividade.

Por outro lado, também é possível reconhecer que existe uma estreita relação entre a ideia de positividade e o valor da segurança jurídica. Ainda que se reconheça que todas as coisas tendem a se dissolver na temporalidade, é necessário que a sociedade tenha a crença em um conjunto de princípios que garantam a vigência das relações jurídicas e a permanência dos seus efeitos, mesmo que as contingências submetem o mundo da vida a sucessivas e imprevisíveis transformações.

Efeitos jurídicos como o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada são exemplos de princípios firmados no bojo da crença na ideia de positividade, articulada com a indispensável segurança jurídica. A sustentação da ordem jurídica legitimada pelo Estado está em sua própria justificação empírica e na crença que neles depositamos. As dificuldades começam quando aparece a interrogação sobre os seus fundamentos.

O estudo do direito contemporaneamente ainda guarda forte presença das matrizes positivistas. Isso se dá em grande medida por causa da resistência às transformações ocorridas no pensamento científico a partir da segunda metade do século XX. A revolução tecnológica e a globalização econômico-cultural apontaram para a mudança como um elemento constante no desenvolvimento da sociedade.

Concordamos com Recaséns ao afirmar que seria um grande equivoco rejeitar a ideia de que o direito converge para o proposito de certeza e segurança nas relações sociais assim como também se mostra equivocado acreditar que a certeza e a segurança são absolutas. Segundo o ele, não há nada na vida humana que seja

absoluto. A estrutura dessa vida humana possui sempre mais de uma perspectiva, quer dizer, ela sempre desenvolve aspectos que gravitam entre dois polos distintos: individualidade/sociabilidade; segurança/transformação; ordem/desordem157.

Este novo cenário tem apresentado desafios ao pensamento e exigem o oferecimento de respostas às contingencias produzidas pelo sistema social158. Não apenas respostas formais ou programadas, assentadas no costume, mas respostas que aproximem, de modo autêntico, a compreensão da realidade pelo observador do direito. Não se nega a contribuição que pode ser dada pelo direito positivo para as transformações ocorridas em uma sociedade complexa como a nossa. Certamente as normas jurídicas podem funcionar como instrumentos indutores e promocionais, além de estabilizadores de expectativas de condutas, diante da mutabilidade constante dos fatores sociais condicionantes, mas, ainda assim, essa função estabilizadora não é capaz de assegurar um funcionamento linear e único. Há sempre a possibilidade de que existam conflitos, incoerência, paradoxos e irritações no sistema.

As razões pelas quais a função estabilizadora do sistema por vezes não funciona não são completamente respondidas e podem encontrar de alguma forma, resistência nos programas de formação dos cursos de direito. Isso porque dizem respeito a uma tomada de posição em uma fase de mudança de paradigmas teóricos. Essa resistência pode ser explicada por diversas razões. Entre elas a ideia de que os juristas estão fortemente influenciados por diversas representações, pré- conceitos (conceitos prévios), crenças, censuras, hábitos, estereótipos e normas éticas que conduzem suas decisões e enunciações, sem que muitos entendam verdadeiramente as premissas de seu pensamento.

Além disso, convenções linguísticas previamente estabelecidas criam uma espécie de senso comum teórico159 dos juristas que na maioria das vezes escondem os seus respectivos ponto de partida, igualmente impedindo que o interprete ou interlocutor

157

SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación del derecho. In: Anuário de filosofia, Dianóia, México, Fondo de Cultura Económica, p. 271.

158

Niklas Luhmann. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate, México, Herder, 2005, pp. 15/35.

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conheça verdadeiramente as premissas que são adotadas neste ou naquele discurso jurídico.

A linguagem jurídica tem um caráter simbólico que cumpre uma finalidade: transformar o uso do direito em instrumento de poder160. Não fosse isso verdadeiro, se considerarmos que o direito positivo, enquanto sistema de normas de conduta tem por objetivo regular comportamentos, estabilizar expectativas normativas e disciplinar certos eventos para conferir o mínimo de previsibilidade às situações contingenciais da vida em sociedade, como explicar o fato de que há uma grande dificuldade desse mesmo direito ser inteligível a todos aqueles a quem se destina.161 A linguagem inacessível à maioria dos cidadãos comuns impede uma compreensão do sentido e alcance das normas e, por consequência, a sua conformidade na conduta.

Desse modo, os juristas contam com um conjunto de hábitos intelectuais que são aceitos como verdades a priori e que acabam por ocultar o componente político sempre presente na investigação “de verdades”. Como consequência, cristalizam-se certos preconceitos para preservar essa falta de clareza nas premissas que são adotadas por aqueles que fazem uso da simbologia. Essa tônica do pensamento jurídico vem sendo repensada nos programas de pós-graduação em direito justamente com intuito de aproximar o pensamento jurídico das vertentes contemporâneas nas ciências humanas e ciências sociais aplicadas.

Ao reconhecer que sua proposta fundamental não está na estrutura, mas sim em sua função dentro da sociedade, as reflexões contemporâneas sobre a importância do direito trazem à tona uma nova forma de pensar o fenômeno jurídico. Não mais como uma tentativa de definir o que é o direito, mas sim como ele se manifesta. O direito assim pode assumir um papel legitimador ou transformador das estruturas sociais162.

160

Ver Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.

161 Poderíamos enunciar como mais uma das falácias do direito o mito de que “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (art. 3º da lei de introdução ao código civil).

162

David M. Trubeck e Yves Delazay. A reestruturação global e o direito: a internacionalização

dos campos jurídicos e a criação dos espaços transnacionais. São Paulo, Malheiros, 1996, pp.

O grande desafio que se pode evidenciar com o enfrentamento tardio dessas questões é a insuficiência das respostas explicativas que a técnica do direito pode oferecer aos problemas da vida contemporânea. Como instrumento regulador de processos dinâmicos de desenvolvimento como a economia e as forças existentes na sociedade, as transformações que ocorrem na contemporaneidade exigem uma nova forma de pensar e aceitar a intervenção do direito sobre a vida das pessoas. A dinâmica de atuação e respostas da sociedade muitas vezes limita capacidade de reação das autoridades estatais e mesmo a adoção de medidas regulatórias, não são capazes de definir ou mesmo manter um controle sobre as questões macro politicas, econômicas ou sociais.

Paralelamente a esse processo, o fenômeno da descentralização de atividades anteriormente destinadas exclusivamente ao poder estatal com a partilha de atividades e obrigações e até mesmo o compartilhamento do uso legítimo da força, produção de tecnologia, incentivo à pesquisa etc., põem em evidência que existe um processo de compartilhamento de responsabilidades entre o estado e a sociedade e por isso a abrindo caminhos para um processo de desformalização de muitos aspectos da vida social.

Neste caminho de abertura do estado, a revolução tecnológica e ampliação da globalização econômica permitem a integração de blocos regionais em busca de uma maior integração comercial. Essa integração contribui para um processo contínuo de inputs e outputs nos mecanismos de regulação jurídica, pois, os países aprendem experiências recíprocas que buscam oferecer formas renovadas de tratar as respectivas realidades.

A integração regional e a desformalização das fronteiras, integram um conjunto de situações altamente complexas da sociedade contemporânea que, ao mesmo tempo em que permitem a expansão de um conjunto de práticas que se põem à margem do direito estatal, como decorrente de espaços privados de negociação e descentralização promovida por conglomerados empresariais e pela economia informal, também colocam em evidência a incapacidade de atualização das respostas estatais à solução dos problemas que precisam de decisão no âmbito da organização administrativa.

O que há em comum em todos os fatores acima elencados: é a evidencia do avançado processo de fragmentação do modelo clássico de estado nacional e o esvaziamento do discurso jurídico formal diante da sua incapacidade de oferecer respostas às questões vividas pela existência humana. Por não oferecerem respostas satisfatórias e eficazes aos problemas desenvolvidos na sociedade, os instrumentos jurídicos precisam assentar novos paradigmas de interpretação da realidade e da existência humana em sociedade.

5.2. O paradoxo entre a democracia e a eficiência das decisões