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2. Função vascular na doença de Kawasaki a longo prazo Estado da arte.

2.1 Função vascular coronária

Como já referimos, as sequelas vasculares da DK a longo prazo não são conhecidas em toda a sua extensão; estão mais cabalmente estabelecidas para os doentes que tiveram aneurismas, que per- sistem ou mesmo que regrediram. Tal facto tem motivado um reactivar da investigação nesta área. Têm sido descritas várias alterações vasculares que parecem partilhar aspectos comuns a uma “vasculite crónica”, que impedem uma função vascular normal, e que vão desde a disfunção en- dotelial isolada, à redução da distensibilidade arterial, espessamento da parede arterial, indução de zonas de isquemia, até ao desenvolvimento precoce de aterosclerose. Dos múltiplos estudos realizados obtiveram-se resultados discrepantes, não sendo ainda possível estabelecer qual a his- tória natural desta doença a longo prazo, ou qual o estado da “saúde” vascular destes doentes.

2.1.1 Anomalias estruturais

Vários anos após o episódio de DK com atingimento coronário e regressão dos aneurismas, verifica-se que estas artérias apresentam menor distensibilidade e disfunção do seu endotélio, traduzidas por redução da resposta vasodilatadora mediada por óxido nítrico (NO), e espessa- mento da íntima-média das artérias envolvidas, o que pode eventualmente condicionar maior rigidez da parede arterial.

As lesões coronárias estruturais não são apenas evidentes nos aneurismas coronários, já que estu- dos efectuados a partir de achados anátomo-patológicos das artérias coronárias de doentes que faleceram por outras causas demonstram um marcado espessamento da camada íntima e prolife- ração das células musculares lisas em zonas não atingidas pelas ectasias. Esta proliferação crónica ocorre geralmente sem obstrução do lume arterial. Nas zonas afectadas foram ainda descritas al- terações histopatológicas compatíveis com substituição do endotélio normal por tecido disfuncio- nal, indicando a probabilidade de perpetuação do processo inflamatório inicial que, do ponto de

vista clínico, se pode exprimir na persistência de valores elevados nos parâmetros laboratoriais de inflamação [33,40,41]. Curiosamente, este processo fisiopatológico e as alterações histológicas descri- tas têm sido associados à progressão precoce para lesões ateroscleróticas ou, pelo menos, como condicionantes de maior risco da sua ocorrência. Este assunto permanece envolto em controvérsia, tendo sido também demonstrado que os achados histopatológicos encontrados nos estudos referi- dos diferiam dos que ocorrem nas lesões ateroscleróticas típicas, considerando-se que correspon- dem a uma lesão específica da doença, por isso designada por “vasculopatia da DK” [33,40].

As alterações estruturais da parede das artérias coronárias após a DK estão bem demonstradas em estudos efectuados com utilização da ecografia intracoronária, nomeadamente no que se refere a espessamento da íntima, calcificação nos locais onde persistem os aneurismas e espessamento isolado da íntima nos segmentos onde os aneurismas regrediram [41]. Neste estudo de Sugimura et al. (1994) demonstrou-se que o espessamento da íntima ocorria em segmentos arteriais que não apresentavam redução do lúmen e, por isso, eram considerados angiograficamente normais. Estes achados também foram corroborados por Suzuki et al. (1996) [42]. Utilizando a histologia vir- tual associada a ecografia intravascular Mitani et al. (2005) encontraram áreas de placas hetero- géneas compostas por fibrose, centros necróticos e lipomatosos com áreas de densa calcificação em adultos com ectasias coronárias que persistiram e evoluíram ao longo do tempo [43].

A regressão dos aneurismas é um fenómeno bem reconhecido e característico na maioria dos casos [36]; no entanto, outros investigadores verificaram que podem surgir novos aneurismas ou ocorrer expansão de pré-existentes, mais de 15 anos após o episódio agudo, em conse- quência da evolução de lesões estruturais da parede sob a influência de turbulência de fluxos. Estas lesões aneurismáticas de novo podem evoluir para trombose, oclusão e, eventualmente até ruptura [44]. A extensão destas sequelas após DK é ainda desconhecida na população por- tuguesa. A este problema acresce uma população de adultos jovens com eventos coronários sem diagnóstico conhecido de DK, a quem durante a investigação por isquemia coronária se identificaram aneurismas, geralmente complicados, como o caso ilustrado na figura 2.

Figura 2. Aspectos angiográficos de aneurismas persistentes das artérias coronárias causados por presumível DK

e detectados em doente de 42 anos de idade, com história de enfarte agudo do miocárdio (casuística institucio- nal): (A e B) coronária direita com aneurismas gigantes (*), zonas de estenose (seta) e possível trombo e calcifi- cação. Diferenciam-se dos aneurismas ateroscleróticos por ocorrerem nas porções proximais, com calcificação e segmentos de estenose, sem doença difusa.

2.1.2 Função endotelial coronária

A função endotelial coronária pode ser avaliada de modo invasivo através da resposta à in- fusão local de acetilcolina. Este fármaco induz a produção de NO pelo endotélio coronário, desde que permaneça saudável e intacto; no entanto, na presença de lesão endotelial coroná- ria ou doença aterosclerótica, provoca um efeito vasoconstritor paradoxal [45]. Utilizando esta técnica, Murakami et al. (2003) evidenciaram disfunção endotelial nos segmentos coronários onde ocorreu regressão dos aneurismas após DK [46]. Esta disfunção pode constituir um risco acrescido de doença cardiovascular no futuro, pelo que a sua detecção precoce, bem como a estratificação e prevenção de outros factores de risco são clinicamente relevantes.

Até recentemente, considerava-se que as crianças com antecedentes de DK sem aneurismas coronários tinham artérias coronárias normais e que, mesmo a longo prazo, não apresentavam alterações da função coronária, evidenciando uma reserva coronária normal. Esta ideia foi questionada pelo estudo de Muzik et al. (1996) ao demonstrarem que estes doentes podem apresentar anomalias regionais da perfusão miocárdica induzidas pelo esforço quando avalia- das por tomografia por emissão de positrões (TEP/SPECT) [47]. Estes autores também demons- traram, no mesmo grupo de doentes, que o fluxo e a reserva coronária, embora fossem nor-

mais em repouso, estavam significativamente diminuídos em resposta à hiperemia induzida farmacologicamente; tal sugere uma capacidade de vasodilatação debilitada, possivelmente por lesão da microcirculação coronária e disfunção endotelial [47].

O mecanismo fisiopatológico da disfunção endotelial coronária não está totalmente esclare- cido, embora alguns autores sugiram que processos que envolvem inflamação crónica e re- modelação vascular activa persistente estejam envolvidos [47,48]. Parece estar provado que a disfunção endotelial a longo prazo está presente nas artérias coronárias que sofreram aneu- rismas, quer estes permaneçam ou tenham regredido. Embora as investigações de Muzik et al. (1996) e de Furuyama et al. (2002) tenham identificado redução da reserva coronária tanto nos doentes que tiveram aneurismas que regrediram, como nos que não tiveram compromis- so coronário [47,48], persistem dúvidas se acontecem as mesmas alterações nas artérias coroná- rias que não sofreram lesão na sequência da DK [48].

2.1.3. Distensibilidade coronária

A distensibilidade coronária é uma propriedade vasomotora da parede arterial que pode ser dependente do endotélio, necessitando da sua integridade para produção de NO, ou ser in- dependente deste e, por isso, mediada por factores que actuam no músculo liso da parede arterial. É o que acontece quando se infunde directamente nas coronárias agentes vasodilata- dores, como a nitroglicerina ou o dinitrato de isosorbido, que relaxam o músculo liso. Os es- tudos efectuados com recurso a esta metodologia em doentes com história de DK, com e sem lesão coronária, demonstraram redução da resposta vasodilatadora, tanto nos segmentos que sofreram aneurismas, como nos segmentos sem lesão. Estes resultados sugerem diminuição da distensibilidade das coronárias ou aumento da rigidez, alteração compatível com arterite crónica [41,49].

As lesões coronárias tardias da DK assemelham-se às verificadas na doença coronária após transplante cardíaco e na re-estenose após angioplastia intraluminal. Apesar das discrepâncias evidentes relativamente ao insulto endotelial inicial e à idade dos doentes, parece existir uma via final comum que resulta em hiperplasia da íntima [50, 51].

Os achados descritos parecem corroborar a hipótese de ocorrer uma vasculite difusa a nível coronário como sequela tardia após a DK, embora tal não pareça ter implicações clínicas du- rante a idade pediátrica e a adolescência; contudo, a longo prazo, a redução da reserva coro- nária terá seguramente impacto significativo se ocorrer doença coronária adicional [41].