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2 TEORIAS DA JUSTIFICAÇÃO EPISTÊMICA

2.1 TEORIAS DA JUSTIFICAÇÃO FUNDACIONISTAS

2.1.2 Fundacionismo Moderado

Conforme referimos anteriormente, o fundacionismo clássico, ou cartesiano43, de caráter internalista e infalibilista, defende as já mencionadas teses fundacionistas – (i) a existência de crenças básicas justificadas, e (ii) a existência de crenças não-básicas que recebem sua justificação das crenças básicas. Nessa versão, a exigência forte quanto à justificação de garantia de verdade da crença, tanto na base quanto na superestrutura, gera algumas dificuldades, como aquela expressa no conhecido ‘problema do mundo exterior’. Muito poucas, ou talvez nenhuma, de nossas alegações de conhecimento sobre o mundo podem ser fundamentadas apenas a partir de nossas capacidades de dedução lógica. E não podemos invocar, nessa tarefa, nossas crenças perceptuais, porque essas são falíveis, uma vez que nossos sentidos físicos ‘podem nos enganar’.

Diante dos problemas enfrentados pelo fundacionismo clássico envolvendo (i) as crenças básicas que formam a estrutura fundacional do edifício de crenças quanto ao que pode

42 ‘Consider the state of affaires of a person A having a certain allegedly infallible basic empirical belief B; call

this state of affaires S1. B will have as its content the proposition that some empirical state of affaires S2 exists.

Now it seems to follow from the logic of the concept of belief that S1 and S2 must be distinct state of affaires.

Beliefs can of course be about other beliefs, but beliefs cannot somehow be directly about themselves. My belief that I believe that P is distinct from my belief that P; the content of the latter is simply the proposition that P, while the content of the former is the different and more complicated proposition that I believe that P. And thus it would seem to be logically quite possible for S1 to occur in the absence of S2, in which case, of course belief B

would be false. A proponent of logical infallibility must claim that this is, in the cases he is interested in, not logically possible, but it is hard to see what the basis for such a claim might be, so long as S1 and S2 are

conceded to be separate states of affaires.’

43 Como enfatiza R. Feldman (2003, p. 52), possivelmente Descartes, a quem se atribui a versão clássica do

fundacionismo, não concordaria com algumas das características nela elencadas. Quando nos referirmos, portanto, ao fundacionismo cartesiano estaremos assumindo as alegações que historicamente são atribuídas a ele, sem a pretensão de que elas estejam expressas na obra cartesiana.

ser objeto desse tipo de crença e como elas recebem seu status epistêmico positivo, e (ii) o modo como essa base transmite esse status epistêmico positivo à superestrutura, surge a proposta contemporânea de uma versão menos exigente, que admite o falibilismo da justificação, por meio da noção de justificação prima facie 44 e da transmissão da justificação via inferência indutiva. C. Sartori (2006, p. 49) aponta a diferença entre as duas versões fundacionistas:

E aqui se percebe mais claramente a diferença entre o fundacionismo clássico e o não-clássico. Os dois aceitam a dependência parcial da justificação das crenças sobre o mundo exterior em relação aos estados experienciais. Mas enquanto para a visão clássica do fundacionismo as crenças sobre o mundo exterior são bem fundadas somente se elas estão baseadas em crenças sobre estados experienciais, o fundacionismo não- clássico aceita que as crenças sobre o mundo exterior sejam bem fundadas mesmo que não se tenha nenhuma crença sobre estados experienciais.

Desse modo, para o fundacionismo moderado nossas crenças perceptuais são justificadas de modo menos exigente, elas podem ser justificadas independentemente da justificação de outras crenças, satisfazendo as condições para desempenhar o papel de crenças básicas sem, no entanto, serem ‘infalíveis’. Essa posição também defende a existência de algum tipo de relação justificacional direta entre a experiência perceptiva e a crença, mas ao contrário da versão tradicional, a justificação assim obtida é anulável e, portanto, falível. Por exemplo, quando vemos com clareza, um objeto verde à nossa frente, é a própria experiência visual que justifica a crença de que ‘vejo um objeto verde’. Como propõe Feldman (2003, p. 73-74), essa é uma crença básica e justificada, porque é formada de modo espontâneo, ou não- inferencial, constituindo uma ‘resposta apropriada’ à experiência visual em questão. Assim, uma resposta é tanto mais apropriada a uma dada experiência, quanto mais ‘próximos’ estiverem o conteúdo da crença e o conteúdo da experiência a que ela pretende corresponder. Vejamos o exemplo por ele sugerido:

Quando crenças espontâneas são justificadas, elas estão conectadas à experiência de um modo importante, mas difícil de descrever. Quando você entra em uma sala, vê uma mesa, e forma a crença de que existe uma mesa ali, o que torna sua crença justificada não é simplesmente o fato de que ela é espontaneamente formada, ou mesmo o fato de que é espontaneamente

44 Uma crença é prima facie justificada quando seu suporte justificacional é tal que pode ser cancelado por

contra-evidências (razões que indicam, de modo suficiente, a falsidade da crença, ou, pelo menos, que sua base justificacional é insuficiente). Por outro lado, a justificação é dita ultima facie quando ela é suficientemente indicadora da verdade da crença, não podendo, portanto, ser derrotada ou cancelada.

formada combinado com o fato de que você não dispõe de nenhuma evidência contrária à existência de uma mesa ali. (Suponha que você não tem nenhuma outra evidência, contra ou a favor, sobre existir uma mesa ali.) O que parece central é que sua crença é uma resposta apropriada ao estímulo perceptual que você tem. É adequado crer [desse modo] dada esta experiência. Crer em algo que não se encaixa, absolutamente, com esta experiência, tal como crer que existe um elefante na sala, não seria uma resposta apropriada a esta experiência. Crer em algo que ultrapassa o que é revelado na experiência, tal como que existe uma mesa com exatos 12 anos de idade, não seria uma resposta apropriada a esta experiência.45

Em outras palavras, a própria experiência é evidência suficiente para a atribuição de justificação à crença básica, ainda que esteja sujeita à ação de algum anulador. As crenças não-básicas, por sua vez, são justificadas quando adequadamente sustentadas por crenças básicas justificadas, por meio de relações inferenciais tanto dedutivas como indutivas. Em resumo, trata-se de um fundacionismo falibilista, uma vez que é admitida a possibilidade de existirem crenças falsas e justificadas, as quais podem integrar tanto a base quanto a superestrutura do edifício de crenças.

R. Feldman (2003, p. 75) sugere a seguinte definição de fundacionismo moderado:

MF1. Crenças básicas são crenças formadas espontaneamente. Tipicamente, crenças sobre o mundo exterior, incluindo crenças sobre tipos de objetos experienciados, ou suas qualidades sensórias, são justificadas e básicas. MF2b. Uma crença espontaneamente formada está justificada desde que seja uma resposta apropriada às experiências, e não seja anulada por outra evidência que o sujeito cognoscente tenha.

MF3. Crenças não-básicas são justificadas quando elas são sustentadas por inferências indutivas fortes – incluindo indução enumerativa e inferência à melhor explicação - a partir de crenças básicas justificadas.46

45 ‘When spontaneous beliefs are justified, they are connected to experience in an important, though difficult to

describe, way. When you walk into a room, see a table, and form the belief that there is a table there, what makes your belief justified is not simply the fact this belief is spontaneously formed or even the fact that it is spontaneously formed combined with the fact that you do not have evidence against there being a table there. (Suppose you have no other evidence one way or the other about whether there is a table there.) What seems central is that your belief is a proper response to the perceptual stimulus you have. It is a suitable thing to believe given that experience. To believe something that does not fit that experience at all, such as that there is an elephant in the room, would not be a proper response to that experience. To believe something that goes beyond what is revealed in the experience, such as that there is a table that is exactly 12 years old, would not be a proper response to that experience.’

46 ‘MF1. Basic beliefs are spontaneously formed beliefs. Typically, beliefs about the external world, including

beliefs about the kinds of objects experienced or their sensory qualities, are justified and basic. Beliefs about mental states can also be justified and basic. MF2b. A spontaneously formed belief is justified provided it is a proper response to experiences and it is not defeated by other evidence the believer has. MF3. Nonbasic beliefs are justified when they are supported by strong inductive inferences-including enumerative induction and inference to the best explanation-from justified basic beliefs.’

A cláusula de não-anulabilidade da justificação contempla a exigência de que a justificação da crença seja ‘bem-fundada’, isto é, seja baseada na evidência disponível ao sujeito (não nos esqueçamos de que Feldman é um evidencialista), e não seja resultante de algum procedimento inadequado de obtenção de razões, tal como desejos e raciocínio defeituoso. Como bem coloca Feldman (2003, p. 71 e 78), um ponto importante da proposta do fundacionismo moderado é a tese de que nossas crenças empíricas sobre os objetos do mundo físico, regularmente formadas a partir dos estímulos que nossos sentidos nos fornecem, são justificadas e básicas, ainda que de modo falível. Seu status justificacional só é retirado caso evidências contrárias se apresentem, de modo que essa concessão possibilita que a base do edifício de crenças seja, consideravelmente, mais robusta do que aquela permitida pelo fundacionismo clássico.

Ademais, o caráter falibilista da versão moderada admite que as relações inferenciais entre as crenças da fundação e as da superestrutura sejam indutivas, e não apenas dedutivas. Isso representa vantagens na medida em que enfraquece o poder adversativo de alguns dos argumentos céticos dirigidos contra o fundacionismo clássico.47 Mas, alguns problemas colocam-se, tanto em relação ao fundacionismo em geral, quanto especificamente à sua versão moderada, os quais serão objeto da seção 2.1.4.

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