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Futuros projetados: “Novos Dias de Sempre”

Diferente de outros contos já estudados nesta dissertação, como “Dívidas de Amor” e “Tempo Vazio”, que possuem protagonismo feminino (como também “Rosália das Visões”, que será abordado no próximo item), percebemos que “Novos Dias de Sempre” se concentra em uma personagem masculina, Semeão, Guarda de Segurança Pública.

O conto passa-se em uma noite em que o protagonista, insone, reflete sobre o que fazer ou deveria ter feito. A lembrança irá conferir um ritmo frenético à narrativa, visível desde o primeiro parágrafo de abertura:

Quem sabe o que se passaria naquela cabeça? A confusão, a angústia, o medo o perseguiam como sombras que se agigantam e se enroscam na lembrança, persistentes. Semeão era um homem tímido. Acabara de sonhar com coisas informes que o devoravam. Horror, sentira o desespero de se esconder e logo em seguida ser descoberto pelas coisas que o procuravam. Felizmente era um sonho, mas que sonho, estava molhado de suor. Não gostava de sonhar. Nos sonhos anteriores acabava sempre matando, ou sendo morto Orlando, seu Chefe, que morava na vizinhança. E não era só isso. Eram também assaltos à mão armada, ameaças veladas, como a de hoje. (p.71; grifo nosso).

O texto é marcado sempre por imagens que Semeão guarda das tensões vividas no decorrer do dia, a saber, “assaltos à mão armada, ameaças veladas”, entre outras, conforme veremos. Essas imagens levam-no a refletir sobre o que fez, o que não fez, o que deveria ter sido feito, e qual atitude deveria ter tomado no momento seguinte. Semeão relata o que realmente aconteceu ou o que poderia ter acontecido no momento posterior ao fato ocorrido.

Pelo fato de o conto ser marcado por esses três aspectos e para facilitar a análise, vamos distribuí-lo da seguinte maneira:

A imagem do passado será chamada de IP. Trata-se daquele fato ocorrido que se transforma em pensamento intrusivo e põe Semeão numa inquietude tal que o impele a tomar, mentalmente, decisões sobre o que fazer naquele momento da noite ou decisões para o dia seguinte. No caso de atitudes já tomadas, a inquietude o conduz a pensar se aquela determinada ação foi a melhor a ser realizada.

Essas decisões, que são as ações desejadas, projetadas durante as horas de insônia, serão chamadas de futuros projetados (FP), seja o futuro que ainda está por vir, seja o futuro do pretérito (quando Semeão imagina qual atitude deveria ter tomado). Esses FP surgem em

momentos impróprios para decisões, visto que, vivamente perturbado pela insônia, o protagonista não está em condições de refletir ponderadamente. Há, portanto, uma perda na capacidade de raciocínio, uma perda da razão.

Já outros determinados futuros receberão uma sigla distinta da que foi mencionada. Ela será FA, ou futuro acontecido. A sigla será usada para fazer referência a dois tipos de futuro que efetivamente acontecem na ficção: um, que se apresenta durante o tempo cronológico do conto, no qual tal futuro e o acontecimento que o antecede aparecem como fatos em sequência no texto no momento da narração; o outro é aquele futuro que Semeão traz à tona quando o narrador trabalha o tempo de maneira psicológica (um fato que é sequência de outro – e, por isso, também estamos chamando de futuro acontecido –, porém resgatado pelo protagonista durante as reflexões da noite) e que acontece antes do momento da narração.

Veremos que esses três elementos são marcas recorrentes na tempestade de pensamentos que perturbam Semeão durante a insônia: imagens do passado (IP), futuros projetados (FP) e futuros acontecidos (FA) movem-se em turbulência, aparecendo em diversas ordens no texto. O próprio título da narrativa, “Novos Dias de Sempre”, já insinua fazer uma referência à recorrência das noites de insônia e das imaginações sobre o que Semeão quer para o dia seguinte ou gostaria de ter acontecido no dia anterior e, portanto, seriam “novos”, com novas atitudes de sua parte, mas, paradoxalmente, são dias “de sempre” porque o comum é acontecer aquilo que ele não gostaria (pelo menos nos momentos de reflexão no leito). Assim, o título nos remete às turbulências entre IP, FP e FA, uma vez que encena uma contradição envolvendo o significante “dias”. Apesar do adjetivo “novos” supor mudança (uma mudança esperada com base nas atitudes que Semeão pensa em tomar), esses “dias” são, também, “de sempre” (as atitudes que Semeão planeja, em seus momentos de insônia, não serão realizadas). Desse modo, nada mudará.

Nesse sentido, vale a pena lembrar o que nos diz Umberto Eco, a propósito da relevância dos títulos e obras literárias:

A ideia de O nome da rosa veio-me quase por acaso e agradou-me porque a rosa é uma figura simbólica, tão densa de significados que quase não tem mais nenhum: rosa mística, e rosa ela viveu o que vivem as rosas, a guerra das duas rosas, uma rosa é uma rosa, os rosa-cruzes, grato pelas magníficas rosas, rosa fresca cheia de odor. Isso acabaria despistando o leitor, que não poderia simplesmente escolher uma interpretação; e ainda que tivesse percebido as possíveis leituras nominalistas do verso final, já teria chegado

justamente ao final, após ter feito as mais variadas escolhas. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las. (ECO, 1985, p.9)

Voltando ao nosso texto, temos, como exemplo inicial, o momento em que o protagonista rememora assaltos e pensa em tomar a atitude de conferir se a porta do quarto está fechada. Sua perturbação leva-o a pensar que estaria a mercê de bandidos, como aqueles que, de fato, tivera de enfrentar, durante o exercício da profissão no último período diurno (IP).

Mas agora [Semeão] começou a tremer. Não, não era de medo. De frio, sim. Começara a chover lá fora e nem se apercebera. Era de frio, sim. Precisava verificar se deixara aberta a porta do quarto, com tantos assaltantes, querendo penetrar nas casas, a fome beirando a vida. Quem sabe? Talvez eu estivesse preocupado com a porta aberta e passei a sonhar. Que horas são? Tanto faz ser duas ou três horas, no meio da noite, que diferença faz? Que horas serão? Olhou com infinita precaução o disco luminosos de relógio de pulso, duas e quinze. Ainda? (p.72; grifo nosso).

Se, na abertura do conto, o protagonista relembra a imagem dos assaltos à mão armada, ocorridos na rua, temos uma IP. Agora, Semeão já imagina uma atitude a ser tomada (a de verificar se a porta do quarto estava fechada), configurando um FP. No entanto, após o trecho acima citado, desiste de conferir a segurança da residência: “Não quero saber se a porta está

fechada ou está aberta” (p.72).

Os conflitos entre verificar e não verificar reaparecem (como na citação a seguir), mas até o fim do conto ele não confere nenhuma das portas da casa, e, assim, podemos deduzir que a não-verificação constitui o FA: “Vou levantar, não aguento mais, vou ver se deixei mesmo alguma porta aberta, é melhor do que estar aqui, nesse frio, nessa escuridão. Margarida dormindo. Mas Semeão não arredou pé da cama” (p.74).

Nas citações analisadas, observamos que os elementos temporais para os quais estamos chamando mais a atenção se apresentam na seguinte ordem: IP, FP e FA. Desse modo, percebemos que a imagem do assalto registrado durante o dia em sua memória é a IP, a qual serviu de base para que a imaginação do protagonista projetasse um falso futuro. Sabemos que é falso porque nenhum assaltante invade a casa durante aquela noite, como também porque a decisão de se levantar para fechar a porta do quarto, caso se deparasse com ela aberta durante a verificação, é abolida.

Heliônia Ceres, por meio da técnica do monólogo interior, faz com o que a personagem se deixe levar numa viagem mental ao passado registrado na memória, passando adiante por uma ideia de futuro a ser concretizado pelo próprio Semeão (a verificação da porta do quarto) e, depois, a mudança de ideia acerca desse futuro, e esta última ideia é a que foi posta em prática, que configura a permanência ao lado da esposa Margarida e é, portanto, o FA.

Durante todo o momento analisado, percebemos, que tanto a IP quanto o FP só se realizam no presente da narração, no presente narrado, que é justamente o período em que o protagonista está na cama, o que nos faz relembrar a crença de Jean Pouillon (1974), destacada nos capítulos anteriores, ou seja, a de que o passado e o futuro têm como fonte o presente.

Assim, o presente é a base para que a narração flua espontaneamente durante o monólogo interior, técnica mais uma vez utilizada por Ceres. A técnica é assim explicitada por Othon Garcia:

[O] narrador [...] apresenta as reações íntimas de determinada personagem como se as surpreendesse in natura, como se elas brotassem diretamente da consciência, livres e espontâneas. O autor ‘larga’ a personagem, deixa-a entregue a si mesma, às suas divagações, em monólogo com seus botões, esquecida da presença do leitor ou ouvinte (GARCIA, 2002, p.139)

No caso do trecho que analisado até aqui, o presente da rememoração é a base para que a narração flua freneticamente. Durante sua noite insone, Semeão divaga e suas divagações brotam do presente e rumam para o passado, que serve de base para uma ideação sobre o futuro, que, por sua vez, vem a ser abandonada e substituída por outra. O tecido-texto, portanto, revela ao leitor as reações íntimas da personagem.

Numa cena a seguir, ainda na cama, Semeão tem seus conflitos internos caracterizados por uma ordem diferente da primeira cena analisada, no que diz respeito aos elementos das imagens da memória, que aqui aparecem na sequência FP, FA, IP. É o momento em que pensa em acordar Margarida, sua esposa, como um refúgio contra os pensamentos intrusivos:

Acho que tenho de verificar isso [se a porta do quarto está fechada], é minha obrigação, sou pago para essas coisas, não, não, se me levantar despertarei Margarida. [...] Basta um acordado nessa insipidez cretina, sozinho, no canto da cama. Bem que eu poderia acordá-la, acariciá-la, quem sabe? Mas nem pensar, nem pensar, acalma-te Semeão! (p.73; grifo nosso).

A frase grifada caracteriza o futuro hipotético que Semeão se sente tentado a colocar em prática. O protagonista, desta vez, partiu do presente direto ao FP, sem passar por alguma imagem do passado que o impelisse ao FP. É verdade que ele estava envolto em vários pensamentos, tanto referentes ao passado quanto ao futuro. Mas a ideia de acordar Margarida não foi pautada por nenhuma dessas imagens (do passado), e sim pelo fato presente de se sentir perturbado por elas (no momento da narração), e supõe-se que o mesmo aconteceria se tais pensamentos fossem substituídos por quaisquer outros que o perturbassem.

Em outras palavras, a imagem do futuro hipotético foi projetada diretamente da imagem do presente, dessa vez como uma possível solução (namorar a esposa) originada de um problema (pensamentos invasivos do qual ele queria se livrar). De qualquer modo, o pensamento de Pouillon continua a fazer sentido aqui, já que a ideia de futuro partiu, mais uma vez, da fonte chamada presente.

No entanto, logo na frase a seguir, Semeão, falando consigo mesmo em terceira pessoa, desiste daquele futuro idealizado: “Mas nem pensar, nem pensar, acalma-te Semeão!” (p.73). Como esta é a decisão que se segue, a de não acordar Margarida, podemos considerar que tal frase exprime o FA.

Porém, observamos também que, para infortúnio do protagonista, e se formos interpretar sem considerar a frase anterior para percebemos a polivalência que as expressões podem ter num texto literário, os trechos “nem pensar” e “acalma-te” em sua fala terminam por vir a ser uma ironia para sua condição, já que o ritmo frenético de pensamentos continua e ele não alcança a calmaria desejada. Semeão consegue, no máximo, permanecer no leito sem acordar a mulher.

Desta vez, a IP não aparece em primeiro lugar, mas, sim, por último, quando o protagonista novamente fala consigo mesmo em terceira pessoa para achar na memória o alerta proferido pela mulher amada: “Lembra que quando ela foi deitar, horas atrás, foi logo te avisando ‘Estou cansada, estou tão cansada’” (p.73).

A turbulência de pensamentos continua a atrapalhar a noite de Semeão. Assim que ele se livra de pensar em acordar a esposa, uma nova tríade, com os elementos que estamos observando, aparece para atormentá-lo, agora ordenados em IP, FA e FP, sequência que não se iguala a nenhuma das duas estudadas até aqui (IP, FP, FA e FP, FA, IP).

Essa desordenação temporal, sem dúvida, representa o estado mental de Semeão, de modo que a narração salta, abruptamente, de um reflexão para outra: “Mas o trancão que

aquele motorista me deu hoje, que trancão!” (p.73). Aqui, Semeão rememora mais um momento estressante ocorrido no período diurno que antecede a noite de insônia, fazendo insurgir, na mente dele, uma intrusiva IP, que é seguida por um futuro do pretérito (momento posterior ao “trancão”) que aconteceu efetivamente no tempo cronológico da narrativa, pois Semeão e seu automóvel saíram ilesos da ameaça, quando ele diz no FA :“por um triz não me arrebentei contra a casa da viúva Martim, logo quem, (...)”(p.73).

Ele não colidiu contra a residência da viúva, mas o fluxo do monólogo interior o conduz a imaginar quais atitudes ele haveria a necessidade de tomar caso não tivesse escapado da batida, o que configura o FP: “Teria de levantar a casa da mulher e sei lá o que Margarida iria pensar” (p.73).

É interessante observar que nenhuma das cenas estudadas até o momento traz alguma sequência repetida dos elementos que estamos considerando:

A primeira, sobre assaltantes: 1º) IP 2º) FP 3º) FA.

A segunda, sobre acordar ou não a esposa: 1º) FP 2º) FA 3º) IP.

E a terceira, sobre o “trancão” dado por um motorista: 1º) IP 2º) FA 3º) FP

Essas três cenas já comprovam o que foi dito no início do subcapítulo: a turbulência das posições desses elementos, que se movem entre si, trocando de lugar.

Além disso, podemos considerar essa movimentação turbulenta como uma representação estrutural do tecido-texto sobre o tumulto dos pensamentos intrusivos dos quais Semeão é uma vítima noturna e insone.

A recorrência dos elementos, porém de maneira inquieta, também é mais um vestígio da riqueza das relações entre as imagens da memória nos contos de Heliônia Ceres.

Abordaremos agora uma cena com significado diferente daquelas até agora estudadas, embora apresente uma sequência temporal já mencionada (igual à primeira analisada): 1º) IP 2º) FP 3º) FA. Porém, é esta cena que finaliza o conto e sintetiza todo o clima da narrativa, além de ser interessante para o que elucidaremos adiante.

Primeiro, a IP aparece como uma junção de elementos que vinham acontecendo nos últimos dias (ou quem sabe meses ou até anos) com as dúvidas, as incertezas e os ressentimentos que assaltam Semeão por ele ter escolhido seguir a carreira de guarda municipal: “Sempre que acordava no meio da noite pensava em tudo que o aborrecia e, nessas

horas, sabia que sua vida era um amontoado de coisas que não fazia, que errara de profissão, porque sentia um enorme medo de ladrão e assaltantes. ” (p.74).

Logo em seguida, a voz narrativa de “Novos Dias de Sempre” mostra para o leitor, num FP, o que Semeão imagina fazer no que diz respeito à sua ocupação: “Tomava então a resolução de tudo mudar no dia seguinte, jogar a demissão na cara de Orlando [seu chefe]” (p.74). O FA que vem na sequência é o parágrafo que encerra o conto, já no período matutino, “dia claro”, e entra em forte contradição com o que, durante a noite insone, Semeão havia planejado fazer:

Mais calado que sempre dirigiu-se para o banheiro, passo a passo, vestiu as calças, apanhou o revólver quase com violência, enfiou na cartucheira, em seguida vestiu a túnica, por fim colocou o boné da Guarda de segurança Pública e ganhou a rua para cuidar do povo. (p.75).

De uma maneira geral, podemos ilustrar as relações entre IP, FP, e FA na Figura 8: Fig. 8

Nesse exemplo, percebemos graficamente que a fonte da FP é o IP: o FP é uma projeção do IP. No entanto, só sabemos que o FP é um falso futuro por conta da presença do FA (é o FA quem elucida, quem revela a falsidade do FP).

Já analisamos esses elementos em sequências diferentes e podemos dizer que eles podem aparecer em qualquer sequência. Dessa maneira, vamos ilustrar algumas das

possibilidades de sequências na Figura 9. Uma sugestão ao observarmos a ilustração é imaginar essas esferas se movendo em ritmo frenético, já que a ideia é ilustrar o sentimento de Semeão:

Fig.9

Além dos elementos já analisados, a narrativa “Novos Dias de Sempre” traz mais aspectos de monólogo interior que devemos aqui considerar. Boa parte da introdução do conto vem na terceira pessoa e a narrativa é iniciada pela frase: “Quem sabe o que se passaria naquela cabeça?”(p.71).

Cremos que já foi possível perceber pelas inúmeras citações, que a narrativa de Heliônia Ceres joga com dois focos narrativos: o de primeira pessoa (trazido, principalmente, pela

técnica do monólogo interior) e o de terceira pessoa (voz do narrador). Essa passagem, faz-se mister observar, acontece no primeiro parágrafo, já mencionado, a partir da frase inicial, que exprime uma visão de fora, como se o leitor estivesse vendo Semeão pelo lado exterior e, aos poucos, com o passar das linhas, o leitor vai adentrando o interior do protagonista, até o ápice quando o texto passa da terceira para a primeira pessoa (é como se o conto, ainda que começando por fora do protagonista, já começasse num ritmo acelerado, visando alcançar a visão interna da personagem masculina o quanto antes, por meio do turbilhão de pensamentos). No último parágrafo, acima citado, o texto apresenta-se novamente na terceira pessoa. Dessa maneira, observamos, em síntese, que a introdução e o final de “Novos Dias de Sempre” são escritos em terceira pessoa (a voz do narrador), mas o desenvolvimento da trama, em que há uma ausência de qualquer referência ao narrador, o foco narrativo é de primeira pessoa.

A aparente incoerência, na verdade, pode ser interpretada como duas rupturas marcantes no conto, como se o interior do texto fosse também o interior de Semeão, no qual seus pensamentos intrusivos fluem de maneira frenética e mais introspectivamente do que nas extremidades (introdução e final).

Isso nos remete ao pensamento de Othon Garcia, quando especula sobre as aparências provocadas pelo monólogo interior, que, segundo ele, caracteriza-se por uma “[...] incoerência que pode refletir-se tanto numa ruptura dos enlaces sintáticos tradicionais quanto numa associação livre de ideias aparentemente desconexas (GARCIA, 2002, p.139).

Outro aspecto interessante de ser observado é o fato de que, na edição em análise do conto de Heliônia Ceres, entre a segunda metade da página 72 e a primeira metade da página 73 há a repetição da hora: duas e quinze. Nessa parte textual, já há muitos pensamentos, imagens do passado e suposições sobre o presente e reflexões sobre o que se deve fazer naquele momento. Isso exemplifica o ritmo frenético dos pensamentos. Semeão consegue cochilar ao clarear o dia, mas esse excesso de pensamento em um minuto já ilustra para o leitor o ritmo dos pensamentos e por conseguinte, imagens, que deve ter tomado todo o tempo em que Semeão esteve acordado antes do cochilo ao clarear do dia.

Tal cochilo é interrompido bruscamente por uma personagem que, como vimos, faz questão de alertar a Semeão, antes de se deitar, de que está muito cansada, e repete com bastante ênfase.

Percebemos também durante leitura da narrativa curta de Heliônia Ceres a mesma personagem nas palavras do narrador: “[ela diz] que para ela a noite acaba no momento em que desperta, vê lá que mau humor se se desperta às duas e quinze da manhã!” (p.73).

Dessa maneira, ela configura-se como uma personagem que está determinada a passar a noite inteira dormindo. Além disso, é ela quem acorda o protagonista Semeão durante o período da manhã, e todos esses aspectos e ações possuem uma extrema ligação com seu nome, Margarida.

A personalidade da esposa de Semeão, portanto, encontra suas raízes enlaçadas ao significado de seu nome de flor, mas principalmente em sua tradução para a língua anglo- saxã: “[...] em inglês, esta flor tem o nome de ‘Daisy’, uma aparente alteração da expressão ‘day's eye’ que significa "olho do dia", o que parece ser uma alusão ao fato desta flor se fechar durante a noite e abrir outra vez quando o sol nasce” (<significados.com.br>).

Temos, portanto, para Semeão, uma companhia com nome de flor, e, pode-se dizer, “flor do dia”, o que nos lembra delicadeza e amor, sentimentos que o protagonista pensou em ter acesso durante o horário errado (noite).

Por conta de sua insônia noturna, a personagem masculina da narrativa de Heliônia Ceres, no entanto, em vez de sentir a afabilidade da esposa, paradoxalmente é hostilizado por ter seu cochilo matutino interrompido pela voz de Margarida em tom agressivo:

Acordou dia claro com os gritos de Margarida:

- Acorda Semeão, a noite não deu para matar teu sono? Semeão acordou rançoso, devagar.