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CAPÍTULO 2 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

B) Entrevista semiestruturada

2.5 A PROPÓSITO DE UM REFERENCIAL TEÓRICO

2.5.1 Gênero: um conceito em movimento

Nos anos 1970, as teóricas feministas norte-americanas passaram a usar o termo “gênero”, emprestando-o tanto da gramática (onde é usado para fazer uma distinção linguística da “natureza” dos objetos) como da sociologia (onde às vezes aparece como referente aos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres).

Esse acontecimento está diretamente relacionado com o questionamento da suposição masculina de que haveria uma razão natural para as diferenças entre homens e mulheres e que tal razão se justificaria pelas características evidentes do corpo. “Era necessário um modo de pensar sobre a diferença e como sua construção definiria as relações entre os indivíduos e grupos sociais. 'Gênero' foi o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual” (SCOTT, 1992, p. 86).

De fato, aquelas estudiosas incorporaram a categoria “gênero” às suas análises para enfatizar “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”, inaugurando assim uma postura crítica radical frente ao “determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual” (idem, 1995, p.72).

A partir daí, a ideia de gênero vem se desenvolvendo num movimento espiralado rico e plural, instituindo rupturas e continuidades, envolvendo diversos campos do conhecimento, como a psicanálise, a antropologia e a linguística, às vezes fazendo alianças inusitadas com outras categorias, outras vezes apresentando-se ambígua.

Por isso, talvez não seja possível formular um conceito que contemple as diversas concepções feministas a respeito do gênero. Em muitos estudos,

especialmente os recentes, geralmente se encontrará gênero mais como categoria de análise do que como conceito. Na verdade isso é perfeitamente compreensível, uma vez que qualquer definição única de gênero seria contraditória às principais proposições das teorias do gênero mais atuais, segundo as quais não é possível formular um conhecimento verdadeiro em si, simplesmente porque não existe nenhum conhecimento anterior à experiência humana.

No entanto, poderíamos tentar entender o que é gênero a partir do que ele não é. “Gênero” opõe-se a “sexo" e, portanto, não é o conjunto das características biológicas nem são as diversas maneiras de explorar pessoalmente essas características. Também, “gênero” não se refere a papéis sexuais socialmente determinados. Por exemplo: o fato de um pai, casado, cumprir o dever de provedor da família e ao mesmo tempo manter um caso amoroso homossexual não favorece nem deveria complicar nosso conhecimento sobre o gênero desse sujeito. E, ainda, o gênero não é uma identidade coletiva presa a sujeitos sociais “homens” ou “mulheres”, muito menos pode ser explicado sob o traço dos comportamentos individuais.

Sobre o que o gênero é, do ponto de vista teórico, o mais importante a salientar é que a teoria feminista mais “atualizada”, evitando explicações universais, concebe o gênero como categoria relacional (MAUÉS, 1998, p. 206). Dizer que o gênero é relacional implica admitir, com Joan Scott, que “não se pode conceber mulheres, exceto se elas forem definidas em relação aos homens, nem homens, exceto quando eles forem diferenciados das mulheres” (SCOTT, 1992, p. 87) e, mais, que o gênero é relativo ao contexto sociocultural, sendo necessário considerar a existência de diferentes sistemas de gênero e a relação deste com outras categorias como raça, classe ou etnia. E eu acrescentaria: com o inconsciente e o simbólico, com as pulsões de morte e de vida, com o desejo e o recalcamento.

O gênero se afigura como categoria relacional não somente porque supõe, compreende e entende homem e mulher em relação mas também porque relaciona-se com outras categorias e dimensões do real. Assim, tanto como categoria analítica (como construção do pensamento) quanto como processo social (uma relação social que entra em todas as outras atividades e relações sociais e parcialmente as constitui) o gênero é relacional pois envolve processos complexos e instáveis [...] (MAUÉS, 2001, p. 68-9).

Se for relativo, o gênero será também instável, porque flutua no espaço sênior das instabilidades – o espaço social. Sua instabilidade deve-se tanto a afecções “externas” (fundamentalismo religioso, políticas curriculares, divisão do trabalho, saber científico – tecnologias de controle e produção social) como às tensões introduzidas no próprio gênero (concepções do eu, memória, curiosidade, erotismo, desejos, sentimentos – subjetividade). Aqui vale lembrar que “não é a instabilidade privilégio único da categoria gênero mas de qualquer instrumental analítico que se predique o objetivo de atentar para a pluralidade das realidades sociais e subjetivas” (idem 1998, p. 214).

Richard Parker, pesquisador norte-americano que tem produzido bastante sobre “cultura sexual no Brasil contemporâneo”, mostra-nos que a relatividade do gênero provocou sua própria instabilidade, a ponto de deixar essa categoria cada vez mais suscetível a críticas:

[...] O que significa ser macho ou fêmea, masculino ou feminino, em contextos sociais e culturais diferentes, pode variar enormemente, e a identidade de gênero não é claramente redutível a qualquer dicotomia biológica subjacente. Todos os machos e fêmeas biológicos devem ser submetidos a um processo de socialização sexual no qual noções culturalmente específicas de masculinidade e feminilidade são modeladas ao longo da vida (PARKER, 1999, p. 135).

Se, depois de insistir em apresentar o gênero como categoria relacional e instável, eu ainda quisesse conceituá-lo, minha predileção curvar-se-ia na direção de Joan Scott, não só pelas implicações epistemológicas que sua acepção acarreta como pelo esclarecimento compulsório que imediatamente se faz a respeito da relação gênero e corpo – relação cuja análise é indispensável quando se quer entender o processo de construção da identidade de gênero:

Gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças fixas e naturais entre homens e mulheres mas sim estabelece significados para essas diferenças corporais. [...] Não podemos ver a diferença sexual a não ser como função de nosso saber sobre o corpo e este saber não é „puro‟, não pode ser isolado de suas relações numa ampla gama de contextos discursivos. (SCOTT, apud MAUÉS, 1998, p. 222).

“O conceito [de gênero] pretende se referir ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas.” (LOURO, 1997, p. 22). Esse entendimento não nega as diferenças biológicas6 entre mulheres e homens, mas sim

questiona as práticas discursivas sobre essas distinções. Não afirma que o gênero se constrói independentemente do corpo; pelo contrário, enfatiza que o gênero é resultado de uma “linguagem” produzida a partir do corpo e em função do corpo.

Na verdade, outros autores e autoras reconhecem que uma exagerada ênfase no discurso simplesmente inverteria polaridades, quando o que se quer de fato é defender que nenhuma construção social ou simbólica pode ser reduzida a explicações binárias ou dicotômicas. Tereza de Lauretis, por exemplo, rejeita que se abandone o eixo da diferença sexual em favor da hipótese do discurso produtivo (apud MAUÉS, 1998, p. 220). O corpo é um constituinte do gênero e excluí-lo seria incorrer numa daquelas atitudes que desejamos ultrapassar.

Por sua vez, Judith Butler (1999, p. 153), para quem o gênero é instituído e inscrito na superfície de nossos corpos, vê a questão da seguinte forma:

A diferença sexual [...] não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas. Além disso, afirmar que as diferenças sexuais são indissociáveis de uma demarcação discursiva não é a mesma coisa que afirmar que o discurso causa a diferença sexual.

O gênero não existe fora do corpo porque aquele é tão abrangente que envolve este, que também não se limita pela pele. E o corpo não é inocente, ele tem história e poder de resistência. Citando um exemplo grosseiro, as práticas discursivas não se dirigem a uma “transexual” da mesma forma que a uma mulher que nunca foi questionada quanto a ser macho ou fêmea, assim como a

6 Atualmente, até mesmo para os médicos, tem sido difícil definir o sexo de uma pessoa pela observação de suas características físico-biológicas. Há um crescente número de casos registrados de “indivíduos que nascem com partes genitais dos dois sexos: testículos, ovários, pênis e vagina combinados das mais diversas formas ou em dimensões incomuns [...]. São tantos que os manuais médicos mais modernos aceitam um termo que, pelo menos gramaticalmente, cria para eles uma terceira categoria de classificação sexual. Nem homens nem mulheres, eles são os portadores de „intersexo‟ – uma espécie de terceiro sexo entre os humanos” (SANCHES, 2003, p. 55-56). Entretanto, é difícil imaginar como qualquer tipo de “classificação” possa beneficiar o sujeito classificado.

masturbação parecerá mais natural a um adolescente do que a seu avô. Assim, o corpo constitui um discurso; o corpo mesmo compõe uma linguagem. Mas “o que define a masculinidade ou a feminilidade é ainda uma característica desconhecida que escapa à anatomia” (FREITAS, s/d, p. 173).