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Historicamente, as mulheres vivenciam as desigualdades dos diversos estratos sociais e econômicos, pois durante anos foram desconsideradas, tendo sua capacidade de trabalho, desenvolvimento no meio político, na educação e na economia limitados. Foram desvalorizadas, tinham pouco prestígio social, e com isso contribuíam para continuar levando uma vida mais precária e com restrições no que diz respeito à assistência a sua saúde, direcionada apenas ao cuidado materno-infantil.

Em resumo, o homem foi valorizado no espaço público, enquanto a mulher era aí desvalorizada, cabendo a ela a responsabilidade pelo espaço privado, o domicílio. Quanto à supremacia masculina, esta estava estabelecida tanto no espaço público quanto no privado, pelo poder exercido pelo homem nas relações sociais e familiares. Para Arilha et al. (2001), a domesticação da mulher sempre representou uma necessidade de controle do homem sobre o corpo, a sexualidade e a capacidade reprodutiva dela, pelo medo da perda de controle sobre a mulher, a família.

Dessa forma, o uso do poder do homem sobre a mulher era a forma de afirmação da virilidade masculina e a consequente posição de subalternidade feminina diante da sociedade. De acordo com a autora, a construção social masculina desvaloriza o feminino e reforça valores associados coma hegemonia do homem, tais como, por exemplo, distanciamento emocional, agressividade e comportamentos de risco. A ideia de perder o

controle corresponderiaà ideia de perdero prestígio e até mesmo a identidade, funcionando como um incrível gerador de tensão e angústia. É possível identificar nos homens violentos, pertencentes às camadas mais pobres da população, um forte elo entre virilidade e violência, com basenos preconceitos e discriminações que conferem à condição feminina valores como submissão e subalternidade (ARILHA, 2001).

Nesse contexto, a agressão se torna uma forma de dominação masculina, com o fazendo uso do poder para cometer atos violentos, pelo medo de perder a autoridade sobre a vida da mulher. Esta se aniquila e assume uma posição de subalternidade, por conta da baixa autoestima e das humilhações vivenciadas. Resumindo, diante da supremacia masculina o espaço do domicílio se torna propício à repetição das agressões.

Em se tratando da submissão feminina, portanto, as mulheres aprenderam a ser dominadas, chegando a interpretar a relação de poder como uma forma de proteção. Entretanto, os homens que utilizam a violência contra a mulher como forma de resolução de conflito estão buscando reassegurar a virilidade, recuperar autoestima e controle sobre a relação (ARILHA, 2001).

Na década de 1970, os movimentos feministas adquiriram visibilidade por parte da organização social. Entraram em pauta as desigualdades entre o masculino e feminino, com a situação de submissão, exploração e opressão da mulher na sociedade brasileira, e relações com a academia se constituíampor meio de estudos sobre mulher, gênero e/ou relações de gênero (HEILBORN; SORJ, 1999).

O termo gênero foi considerado como sendo a construção social do sexo, em que a qualidade de ser homem e ser mulher é delimitada pela cultura (HEILBORN, 2003). Em outras palavras, as qualidades morais e físicas atribuídas ao homem e à mulher não são associadas aos atributos corporais, mas à significação social dada e às normas de comportamentos estabelecidas. Então, a condição do ser homem e do ser mulher não foi estabelecida pelo estado corporal, mas por uma construção da sociedade (BRETON, 2007). Na vida quotidiana, são os homens na ordem social androcêntrica que estabelecem os limites das mulheres e determinam as regras do jogo pela falocracia. Até mesmo as relações mulher-mulher são normatizadas por esta dominação social, cultural e simbólica exercida pelos homens sobre as mulheres. Nesse sentido, o gênero é considerado enquanto normativa das condutas masculinas. A violência faz parte da normatização, constituindo importante componente de controle social (SAFFIOTI, ALMEIDA, 1995, p.32).

Os movimentos feministas, falando em termos de gênero, trouxeram à tona a compreensão acerca das relações de poder que geram as desigualdades existentes entre

homens e mulheres na sociedade, a dominação e a hegemonia masculina. No entanto, as discussões sobre as relações de gênero também possibilitaram a reflexão acerca das classes sociais, raça/etnia construídas a partir das relações sociais.

A identidade social da mulher e do homem, construídas por diferentes papéis, era delimitada pela sociedade, o espaço doméstico sendo desvalorizado por ser da responsabilidade da mulher. De acordo com Saffioti (1987), na sociedade havia duas classes sociais, a dos dominantes e a dos subalternos, o que remetia a uma naturalização sociocultural da discriminação contra a mulher e contra outros extratos da sociedade, tais como negros e pobres, proporcionando a legitimação da autoridade dos homens brancos, heterossexuais e ricos. Percebe-se, portanto, que ao falarmos de hegemonia masculina estamos refletindo sobre o sentido da construção histórica e cultural.

As relações de gênero são, pois, atravessadas pelas relações de poder, homens e mulheres sendo separados por duas categorias, respectivamente dominantes e dominados, obedecendo aos requisitos impostos pela heterossexualidade, a sexualidade sendo o ponto de apoio para a desigualdade de gênero (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995).

Historicamente falando, esta relação de poder, de desigualdade entre homens e mulheres, construída socialmente, revelou-se enraizada na cultura patriarcal. Para Arilha et al. (2001), a chamada cultura patriarcal, presente na subjetividade da sociedade contemporânea, define os homens como detentores de prestígio e poder, e atribui às mulheres uma condição de fraqueza e inferioridade, que as torna vítimas naturais dos mais variados tipos de proibições e marginalizações.

Entretanto, ressalta-se que nas relações de poder a autoridade masculina não era apenas exercida sobre a mulher, mas também sobre os filhos; este poder de se fazer obedecer era incisivo, ficando os filhos em posição de inferioridade, de dominados, e sem que estivessem a salvo dos atos violentos acometidos pelos pais. A hegemonia do homem estava, portanto, preservada.

Com o surgimento do movimento de luta contra as desigualdades sociais, as mulheres alcançaram visibilidade social, o que se traduziu em importantes políticas públicas. Em 1980, o movimento de mulheres, além de conquistar o Conselho Nacional de Direitos da Mulher, obteve o reconhecimento da plena cidadania das mulheres (O PROGRESSO DAS MULHERES NO BRASIL 2003-2010, 2011).

Foi na década de 1980 que o termo mulher foi substituído pelo termo gênero, sendo considerado como uma categoria de análise, enfatizando os aspectos relacionais e culturais da construção social do masculino e do feminino (HEILBORN; SORJ, 1999).

Assim sendo, gênero como categoria analítica se assenta na construção social e cultural das diferenças sexuais, devendo ser usado nas suas dimensões histórica, cultural e social para pensar as relações sociais em um dado momento histórico (SOUTO, 2008) e, portanto, gênero como possibilidade de discutir e compreender as qualidades e comportamentos dos homens e das mulheres na sociedade, levando-nos a uma reflexão sobre as relações de poder existente entre eles, a valorização e a dominação masculina.

A mulher era vista como sendo responsável pela reprodução. A preocupação com a saúde, aliás, se voltava para o concepto e não para a mãe. Esta situação ocorria devido a uma perspectiva reducionista com que os programas tratavam a mulher, que embora tendo acesso a alguns cuidados de saúde no ciclo gravídico-puerperal, ficavam sem assistência a maior parte da vida (BRASIL, 2004).

O surgimento do Feminismo possibilitou a formação de fortes aliados para a construção de um modelo de feminilidade que relativizava a maternidade como ideal exclusivo (HEILBORN; SORJ, 1999).

O movimento questionava as desigualdades nas relações sociais entre homens e mulheres, também traduzidas em problemas de saúde que afetavam particularmente a população feminina, já que elas estavam ausentes do sistema de saúde. A partir do Feminismo, elas reivindicaram a condição de sujeitos de direito, com necessidades que extrapolam o momento da gestação e do parto, demandando ações que lhe proporcionassem a melhoria das condições de saúde em todos os ciclos da vida (BRASIL, 2004).

Permitiu-se que a mulher cuidasse do próprio corpo e decidisse sobre ele, na medida em que o movimento proporcionou a assistência à mulher e não apenas à criança, o que antes era a principal preocupação. O movimento feminista contribuiu, pois, para a instituição de políticas sociais, direitos reprodutivos e para o atendimento à mulher. Isto permitiu que as mulheres se fortalecessem e conquistassem o seu espaço no espaço público.

A decisão sobre o corpo implica sua autonomia enquanto mulher, sua liberdade e, portanto, sua condição de cidadã. O corpo feminino é, segundo Souto (2008), um lócus privilegiado de sua submissão e opressão, o olhar de mãe e de reprodutora faz institucionalizar os primeiros cuidados com a saúde da mulher: saúde materna e do ciclo gravídico-puerperal, a sexualidade da mulher ficando também restrita à reprodução.

Os movimentos de mulheres cumpriram um papel fundamental no setor saúde, ao tornarem visíveis as desigualdades de gênero, ao defenderem a integralidade e a humanização da atenção e ao abrirem espaços para as lutas contra todas as formas de discriminação e opressão (HEILBORN, 2003).

As questões levantadas pelo movimento feminista suscitaram a investigação da violência. Através de estudos realizados pelas acadêmicas feministas, foi possível conhecer a violência originada nas relações entre homens e mulheres no âmbito doméstico. Assim, surgiram novas informações a respeito da violência, tais como os agravos à saúde em decorrência da violência doméstica (HEILBORN; SORJ, 1999).

Incluir a análise de perfil epidemiológico das mulheres brasileiras e fazer uma leitura de gênero sobre os dados, observando fatores e causas de adoecimento que ultrapassam a visão biologista, representou um grande avanço no tratamento dos agravos à saúde das mulheres. Reconhecer as desigualdades de gênero, classe e raça/etnia como determinantes para o adoecimento permitiu pensar as políticas públicas de saúde na dimensão da saúde coletiva, da promoção, da qualidade de vida (SOUTO, 2008).

Mesmo após o período patriarcal, mecanismos legais e culturais de submissão ainda estão vigentes. Em pleno século XXI, mesmo as mulheres tendo conquistado o espaço no mercado de trabalho, isto é, estando no espaço público, os homens não assumiram as responsabilidades com o cuidado no âmbito privado (O PROGRESSO DAS MULHERES NO BRASIL 2003-2010, 2011).

De acordo com o guia de direitos humanos, as mulheres ganham menos, estão concentradas em profissões desvalorizadas, têm menos acesso aos espaços de decisão do mundo político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual, emocional), vivem dupla e tripla jornada de trabalho e são as mais penalizadas com o sucateamento de serviços e políticas sociais, entre outros problemas sociais. Outros aspectos agravam a situação de desigualdade das mulheres na sociedade: raça, etnia, classe social, idade e orientação sexual, situações que limitam o desenvolvimento e comprometem a saúde mental de milhões de mulheres. Partindo-se desse pressuposto, faz-se imprescindível a incorporação da perspectiva de gênero na análise do perfil epidemiológico e no planejamento das ações de saúde que tenham como objetivo promover a melhoria das condições de vida, a igualdade e os direitos de cidadania da mulher (BRASIL, 2004).

No século XX aconteceram as maiores conquistas femininas em termos de educação, quando estas ultrapassaram significativamente o desempenho dos homens em todos os aspectos da educação, resultado de um esforço histórico dos movimentos das mulheres (ALVES; CORREA, 2009).

Com o reconhecimento do movimento de mulheres por parte da sociedade, nos anos 1980, implementaram-se programas e políticas para contribuir com a cessação da violência contra a mulher e contra as diferenças sociais.

O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) foi um marco que rompeu com o modelo de cuidado materno-infantil, onde a mulher era vista – do ponto de vista do sistema de saúde - enquanto produtora e reprodutora da força de trabalho, na condição de mãe, nutriz, cuidadora da prole. O PAISM mostrou que era necessário que a saúde da mulher fosse abordada em todos os ciclos da vida. Este programa surge antes da implantação do Sistema Único de Saúde e da promulgação da Carta Magna. É, portanto, pioneiro no uso do termo integralidade da saúde na política pública, cujo significado é proposto e definido pelos movimentos sociais feministas (SOUTO, 2008).

A autora afirma ainda que a abordagem de gênero, na análise de integralidade do PAISM, implica tomar como referência os modos como homens e mulheres se relacionam no quotidiano de suas vivências, resultado da determinação do processo saúde/doença, e se evidenciam em seus corpos e marcam suas vidas (SOUTO, 2008).

A 8ª Conferência Nacional (CNS), em 1986, foi constituída com o fito de descentralizar o sistema de saúde e agir a favor da implantação de políticas sociais que incorporassem ações para a defesa e para o cuidado à vida (BRASIL, 2010). Foram estabelecidas as ações propostas pelo PAISM, visando à assistência integral à saúde da mulher, para a sua promoção, prevenção e recuperação contemplando também as questões de gênero, confirmadas pela Constituição Brasileira de 1988 (MEDEIROS; GUARESHI, 2009).

A Convenção de Belém do Pará, em 1994, dita Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, constituiu uma importante ferramenta de promoção da emancipação das mulheres, pois por este meio elas tiveram a oportunidade de reconhecer seus direitos. Houve um grande avanço na compreensão e na visibilidade da temática, assim como aconteceu com o conhecimento sobre a definição da violência contra as mulheres (CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ, 2004).

A Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo no mesmo ano da Convenção de Belém do Pará, abordou o empoderamento das mulheres, a igualdade de gênero, a saúde e os direitos reprodutivos, reafirmando que a discriminação, a desigualdade e a violência decorrem de padrões sociais e práticas culturais (ALVES; CORREA, 2009). Essa Conferência apresentou princípios para a promoção e igualdade dos sexos, atribuindo poder às mulheres para o controle da fecundidade.

O conceito de empoderamento das mulheres foi consolidado, pois, nas Conferências Internacionais do Cairo (94) e Beijing (95), surgindo como uma forma inovadora de enfrentar as desigualdades de gênero existentes nas esferas públicas, por meio

da contribuição dos movimentos das mulheres que lutavam contra a exclusão social, a violência de gênero e opapel subalterno do sexo feminino na sociedade e na família (ALVES; CORREA, 2009).

Em 1995, a IV Conferência da Mulher em Pequim reafirmou as medidas adotadas pela CIPD com uma nova concepção, incluindo aí os direitos reprodutivos e sexuais como direitos humanos; a promoção do desenvolvimento humano e do bem-estar, com reforço das políticas de educação, emprego, saúde e respeito ao meio ambiente; o empoderamento das mulheres e a equidade de gênero (CÔRREA; JANNUZZI; ALVES, 2003).

Em 2002, no âmbito do Poder Executivo, foi criada a Secretaria de Estados dos Direitos da Mulher, atualmente Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM) e em 2006 foi aprovada a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha (O PROGRESSO DAS MULHERES NO BRASIL 2003-2010, 2011).

A Secretaria Especial de Direitos da Mulher apresentou, entre outras, as seguintes propostas: promover a igualdade de gênero; articular, promover e executar programas de cooperação com organismos nacionais e internacionais, públicos e privados, voltados para aimplementação de políticas para mulheres, na tentativa de coibir a violência e cuidar das mulheres nesta situação, foi criada a Lei 10.778 – Notificação Compulsória de Violência contra a Mulher atendidas nos Serviços Públicos e Privados (BRASIL, 2003).

Continua, no entanto, o desafio de transformar as ações propostas na Política em práticas de saúde no quotidiano dos serviços e dos processos de trabalhos dos serviços de saúde, comprometidos com a produção de práticas humanizadas e de qualidade (SOUTO, 2008).

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), em 2004, apontou para a vulnerabilidade das mulheres em relação às doenças e às causas de morte, relacionadas mais com a discriminação na sociedade do que com fatores biológicos. (BRASIL, 2004). A discriminação perpetrada pela sociedade torna a mulher mais vulnerável, possibilitando uma maior exposição delaà vivência de situações de violência. É muito delicada a posição em que as mulheres vítimas de violência se encontram, muitas delas adoecendo e outras possivelmente morrendo.

A I Conferência Nacional resultou no Primeiro Plano Nacional de Políticas para Mulheres de 2004, que definiu quatro eixos estratégicos: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos; enfrentamento da violência contra a mulher. O II Plano Nacional de Políticas para Mulheres constou entre outros de Saúde das mulheres, direitos sexuais e

reprodutivos; enfrentamento de todas as formas de violência contra a mulher; participação das mulheres nos espaços de poder e decisão (ALVES; CORREA, 2009).

Em 07 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha, Lei 11.340, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras Providências (BRASIL, 2006b).

A Constituição Federal simboliza, pois, um marco fundamental na instituição da cidadania e nos direitos humanos das mulheres no Brasil, implementando políticas no sentido de coibir a situação de violência, eliminando todas as formas de discriminação contra a mulher, desempenhando um papel importante nos direitos sexuais e reprodutivos no sentido de legitimar a igualdade entre gêneros.

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