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Gênese e delimitação do campo de abordagem

2. MAIS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS DO QUE CONTRADIÇÕES ENTRE O

2.3 Semelhanças, diferenças e contradições entre Marx e Freire

2.3.1 Gênese e delimitação do campo de abordagem

A gênese em Marx está na própria humanidade: “O primeiro pressuposto de toda a história humana, é, naturalmente, a existência dos seres humanos vivos” (MARX e ENGELS, 2009, p. 44). No mesmo sentido, inobstante sua influência cristã, para Paulo Freire a gênese de sua abordagem está “nos homens”: “O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos” (FREIRE, 1987, p. 73).

Atente-se que, para Marx, a gênese está “nos seres humanos”, enquanto que para Freire está “nos homens”. Abrindo-se um parêntese, Freire foi criticado por feministas americanas por ter utilizado uma linguagem, segundo elas, sexista90,na

Pedagogia do Oprimido. Ainda que não tenha tido a intenção, pois utilizou a

expressão “homens” no sentido de humanidade, com sua conhecida humildade intelectual e capacidade de autocrítica, na Pedagogia da Esperança, fez uma reflexão sobre o assunto, reconhecendo o equívoco e buscando sua correção91.

Feita essa ressalva necessária, o ponto de partida de suas abordagens os

aproxima, pois, para eles, o “germe” da história é físico, e não metafísico. É

antropológico e não teológico, muito embora a concepção cristã de Freire. Com efeito, é a partir do ser humano (“dos homens”, para Freire), delimitado pela história – e não fora dela – que ambos realizam suas abordagens. É na história, pois, que acontece o movimento dos que nela estão inseridos, construindo-a e sendo por ela

90“Começarei exatamente pela linguagem machista que marca todo o livro e de minha dívida a um

sem-número de mulheres norte-americanas que, de diferentes partes dos Estados Unidos, me escreveu, entre fins de 1970 e começos de 1971, alguns meses depois que saiu a primeira edição do livro em Nova York. Era como se elas tivessem combinado a remessa de suas cartas críticas que me foram chegando às mãos em Genebra durante dois a três meses, quase sem interrupção.

De modo geral, comentando o livro, o que lhes parecia positivo nele e a contribuição que lhes trazia á sua luta, falavam, invariavelmente, do que consideravam em mim uma grande contradição. É que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação, criticando com justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém, uma linguagem machista, portanto, discriminatória, em que não havia lugar para as mulheres” (FREIRE, 1999, p. 66).

91 “Daquela data até hoje me refiro sempre a mulher e homem ou seres humanos. Prefiro, às vezes,

construídos, dialeticamente. Dessa forma, a intencionalidade de “delimitação” não tem um sentido reducionista ou restritivo, mas de demarcação do campo de análise de Marx e Freire. A abordagem de ambos é delimitada pelo espaço/tempo da história, de uma história que é dinâmica, e não estática, na qual os homens não são determinados, mas condicionados, condicionando-a, dialeticamente. Sendo assim, o

a-histórico não é objeto de análise, posto que está fora da delimitação da

abordagem dos autores pesquisados. Diz Freire (1995, p. 19): “A História é tão vir-a- ser quanto nós, seres limitados e condicionados, e quanto o conhecimento que produzimos. Nada por nós engendrado, vivido, pensado e explicitado se dá fora do tempo, da História. Ter certeza, estar em dúvida, são formas históricas de estar sendo”. Diz, ainda: “Seria impensável um mundo onde a experiência humana se desse fora da continuidade, quer dizer, fora da História” (Idem, p. 19).

É, pois, na história que está inserida a possibilidade de progresso, de transformação. É na história que se pode ser mais, constituindo-se em possibilidade e não em determinação.

A proposta de educação problematizadora deixa nítida a visão progressista de Freire (1987, p. 73):

A educação problematizadora, que não é fixismo reacionária, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como “projetos” –, como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro.

Em Marx, não é diferente, pois a ideia de progresso92 também está presente no marxismo, salvo exceções93. Todavia, não se trata de um progresso linear, sem

92 “Há uma concepção de progresso claramente subjacente à teoria da história de Marx (ver

MATERIALISMO HISTÓRICO), embora não seja explicitada integralmente em nenhum momento. Numa breve nota ao fim de sua introdução aos Grundrisse, referindo-se à relação entre o desenvolvimento da produção material e da produção artística, Marx observa que „o conceito de progresso não deve ser entendido em sua abstração habitual‟. No „Prefácio‟ à Contribuição à crítica

da economia política de 1859, ele ordena os principais modos de produção numa série de „épocas do

progresso da formação econômica da sociedade” e, no mesmo texto, define as condições nas quais podem surgir „relações de produção novas, superiores‟. Os elementos fundamentais dessa concepção em grande medida implícita são, primeiro, que o progresso cultural – „o desenvolvimento completo das possibilidades humanas‟, a emancipação humana no sentido mais amplo – depende do „pleno desenvolvimento do domínio humano sobre as forças da natureza‟ (Grundrisse, p. 387-88), isto é, do crescimento da capacidade produtiva e, em épocas modernas, particularmente do avanço da ciência. E, segundo, que o progresso não é considerado, como nas teorias evolucionistas de Comte e

variações, mas de um progresso com avanços e recuos, novos avanços e novos recuos, que vão se excluindo e se complementando dialeticamente. É o progresso no sentido de que a história está sempre em movimento, permeada por contradições, não sendo algo dado e acabado: é um permanente devir.

Freire também não vê o progresso de forma gradual, estruturada e harmônica, muito embora sua influência cristã, justamente porque sua análise não é

a-histórica. Nesse sentido, revela: “Assim é que sempre entendi Deus – uma

presença na História que não me proíbe de fazê-la mas me empurra em favor da transformação do mundo, com o que se restaura a humanidade de exploradores e de fracos” (FREIRE, 1995, p. 85).