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4 A REVOLTA DE ORFEU

4.4 A GÊNESE DO MEDO

A erupção política e literária que abalou o meio urbano e rural — que até agora analisamos em sua complexa formação, junto à maneira de os indivíduos lerem o mundo — estava atingindo um horizonte abrupto. Essa fase da história cultural pernambucana e, de maneira geral, considerando o que se convencionou chamar de período nacional- desenvolvimentista da sociedade brasileira, é transposta pela ferocidade de um acontecimento. O caminho composto por essa experiência e consciência linguística esbarra com a crise da intensificação das demandas populares que observarão seu crepúsculo no golpe militar de 1964. Não apenas os patamares da democracia populista, incorporada em Jango, foram dissolvidos, mas toda uma rede de sociabilidades se fragilizou e o grupo de 1950 perdeu muito nesse momento. Algumas figuras centrais já tinham morrido precocemente, como Carlos Pena, de acidente de automóvel em 1960,129 e outros se mudaram para o Rio de Janeiro, como Edilberto Coutinho e Felix de Athayde130, ou Curitiba, caso de Fernando Pessoa Ferreira. Os que ficaram adaptaram sua poética ao novo regime político, como Audálio Alves, que se volta para uma exploração mais experimental, lançando um movimento chamado de espectralismo, e diminuindo o tom social de sua produção. Com o desenrolar da ditadura e seu embrutecimento, as antigas convenções de produção são alteradas. O que antes tinha um lastro institucional e certo apelo público, aos poucos tornou-se tabu e destinado às tangentes subversivas. O golpe, além de um fato político, foi algo de cultural e mesmo existencial para esses escritores.

Em um sentido imediato, as reações perante o golpe foram de perplexidade, como um anticlímax de muitas das convicções tecidas em anos anteriores. Era como se o alarido

129 A morte do poeta causou comoção geral na cidade e, de certa forma, se alastrou pelo país. Várias resenhas e poemas foram escritos em sua homenagem. Poderíamos destacar os textos de Jorge Amado, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira para a ocasião. Em sua memória, foi colocado um busto na Faculdade de Direito. Uma fortuna crítica começou a se formar com trabalhos de um Cesar Leal e Renato Carneiro Campos, que serão comentados mais à frente. A sua morte trágica serviu, em certo sentido, para manter cristalizada sua imagem de poeta jovem e boêmio, um quadro de uma década. Talvez por isso, dentre todos os seus companheiros, é o mais lembrado. 130 Athayde é sempre mencionado como participante do grupo, porém seus poemas foram publicados em conjunto em um livro póstumo organizado por seu filho. Como não consta as datas dos poemas lá reunidos achamos, para não recair em achismo e manter o rigor metodológico, que não deveríamos citá-los por mais que aparentassem ser partícipes da produção do período.

revolucionário fosse calado de maneira abrupta. A teleologia de esquerda, a redenção vindoura, mostrou-se falha. Um sentimento de insegurança tomou conta dos meios artísticos e o que era dito sem constrangimento agora habitava a surdina. A primeira lista de exilados políticos foi o emblema inicial da repressão. A saída dramática de Miguel Arraes do governo, sua deposição com os estudantes cercando o palácio, protestos131 e mortes mostraram o amargor da nova realidade que se formava. A maioria dos escritores, como de praxe do início do golpe, não foi ameaçada.132 Os tempos mais duros viriam após o AI-5. Porém, existe um relato da esposa de Audálio Alves, logo depois do golpe, em que afirma que ele foi “convidado” a prestar depoimento no Exército133. Informa ainda que um de seus poemas de temática rural terminou censurado pela edição de um jornal local. Era provável que seus escritos engajados estivessem na ordem do dia de alguns militares. O fato terminou com essa visita e não houve consequências maiores, pois o poeta continuou advogando como de costume, mas, os efeitos em sua produção foram visíveis. Como dito, nunca voltou ao tom radical do Canto agrário.

Era uma época de instabilidade. Para muitos, o nascimento do medo e a derrocada da esperança. Fernando Pessoa Ferreira abandona de vez o formalismo da poética do isolamento

131 Em seu poder exemplar, podemos citar a prisão de Gregório Bezerra, líder comunista no campo. Ele foi espancado e humilhado em público, enquanto era conduzido pelas ruas do Recife até o quartel, representando a promessa do que seria a via-crúcis de muitos militantes de esquerda.

132 Exceções a essa regra, podemos destacar os exemplos, além do que vai ser citado a seguir, de Fernando Pessoa Ferreira que, como dito na pequena trajetória no capítulo passado, foi preso na ditadura militar, brevemente, em algum momento entre 1964-68, sob acusação de esconder um procurado político. Outro poeta não citado com frequência no trabalho devido à dificuldade de identificar a data de seus poemas é Felix de Athayde. Como dito também na pequena biografia, ele foi exilado com o grupo de Arraes.

133 Em depoimento de Virgínia Alves, registrado em 2010, é indicado o momento em que Audálio Alves é chamado para depor na delegacia, depois do golpe de 1964, sobre seu livro Canto agrário, e enquadrado como elemento subversivo por estar ligado à causa camponesa. Eis a narrativa: “Ele tinha uns amigos políticos. Inclusive, em 1964 criticaram muito a poesia dele porque achavam que ela era subversiva e quase o prenderam. Mas ele tinha um amigo que o conhecia muito de perto e foi com ele que chegou a se apresentar no quartel, aquele lá da BR em Olinda com Paulista. Foi ele e o amigo e passaram a tarde lá, de explicações e tudo, aí viram que realmente ele não era assim tão influente, apesar de escrever um livro chamado Principio áspero de uma canção sem terra. Aí ele falava do modo de vida dos camponeses, das injustiças que fizeram com eles. Então, não era nada mais do que isso. Ele tinha amigos políticos, mas ele mesmo não era político. Mas tinha amigo, né? Que falavam muito sobre isso...”. Em seguida, a esposa revela que ele teve um poema censurado no jornal. Também mostra a construção de sua consciência moral em relação à desigualdade no campo, que iria ter que se adequar ao enlaço do regime, como dito a seguir: “Foi. Foi por causa desse livro. Ele tá aqui também no Principio áspero de uma canção sem terra. Ele fez, tinha clientes no interior, ele próprio era do interior, nasceu em Pesqueira, então conhecia a vida sofrida do povo do interior, da palha da cana, essas coisas... Então ele fez essas poesias não com a intenção de prejudicar ninguém, mas de ressaltar a pobreza que o pessoal do interior passa. Por causa da política muitas vezes.” ALVES, Virgínia. Virgínia Alves (depoimento, 2014). Recife, LAHOI/DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - UFPE, 2014.

e dedica seu livro Em torno do A para Miguel Arraes e Carlos Pena Filho. Era incompreensível para ele que o país continuasse o mesmo com a eventualidade dessa catástrofe política. Estava presente o grande sono do povo e dos ideais e começava a estação da apreensão e do sufocamento. Do poema A Criação do Medo, escrito em 1966 e dedicado a Paulo Francis, selecionamos estas duas partes:

A Criação do Medo De 31 de março de 1964 A 6 de abril do mesmo ano I

Na terça-feira, a manhã Estava desfeita em dúvidas. Notícias vinham de Minas, Eram trevas repentinas Fiando nervosa lã E vaticínios de nuvens. Na quarta feira, a incerteza Sucumbia nas esquinas E para esconder o rosto Nublava os pratos da mesa. Em Pernambuco, Miguel Fora cercado e deposto E, lá no Sul, Leonel Cavalgava o seu desgosto. Desabara a ratoeira Quando afinal entendi Que não tem para onde ir Quem nasce em terra estrangeira. Morreu de morte calada,

País de praças vazias, Pois os canhões acordaram Enquanto o povo dormir. III

Na segunda-feira, Deus Recomeçou seu trabalho: Plantou um tempo de fúria Sobre a murcha calmaria. Pôs alicerces de palha Nas paredes desse poço E surda carpintaria Disciplinando o alvoroço De quem acorda mais cedo Do que os canhões de abril. Das muitas fomes que a fome Atiça pelo caminho,

Criou a fome do medo – sempre o melhor espantalho. É uma fome que aquece E fecunda o que consome; Um claro grito de flor No desconforto do espinho; Um gole largo de dor Mastigada com carinho Até transformar-se em raiva, Até tornar-se mais dura Do que a fome coagulada Na solidão da cintura.

Nesse quadro que, por certo, era paralisante, seria no mínimo precipitado lançar a hipótese de que as imagens chocantes da poética do engajamento tenham sido completamente abafadas. O som ensurdecedor de sua composição seria ainda escutado em outros contextos. Seu poder de manifestação, fincado nos meios populares, trazia muito da produção intelectual vindoura. Talvez o que fosse emergente estivesse a ponto de se tornar hegemônico, pelo menos no campo da esquerda. Isso justificaria toda uma literatura que se estabelecia em contraposição à ditadura. Como vimos representava na arte uma novo folego da estrutura de sentimento nacional popular. Quase como um gênero próprio, a poesia política mantinha muitas das notações antigas, porém dentro de determinações distintas já que o peso crescente da censura obrigaria a uma nova sociabilidade, construindo alternativas de publicação ou editoras que não estivessem vinculadas aos círculos oficiais. A própria estratégia da escrita é adaptada, como na canção de protesto, para evitar o rótulo imediato de subversiva.

Em Pernambuco, um novo movimento de escritores começava a se formar no que seria o grupo de 1965. Muitos dos poetas da formação de 1950 se juntariam a esses ou mesmo apadrinhariam sua trajetória — caso de Cesar Leal, que serviu como crítico e iniciador no suplemento literário do Diário de Pernambuco. Escritores jovens como Alberto da Cunha Mello, Marcos Accioly, Lucila Nogueira, Jaci Bezerra, Ângelo Monteiro, entre outros, estariam entre os renovadores da literatura. Utilizavam muitas das convenções literárias pernambucanas, indo do isolamento ao engajamento. Entretanto, o toque político sempre se manteve sublinhado. Orfeu não poderia mais voltar às terras etéreas e aquele que sujou a auréola da arte de lama nunca mais seria o mesmo. A estética da revolta, sua forma implacável, ressoara no infinito das interpretações. Assim, um ciclo simbólico começa a se transmutar novamente e da fagulha não apagada surgiria o novo.