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GÊNESIS DE UM LEITMOTIV OU PROJETO LITERÁRIO

Em História Universal da Infâmia (1935) no conto “O impostor inverossímil Tom Castro”, há uma representação do duplo em Borges, um duplo de personagem, relacionado à alteridade; nesse conto um homem passa-se por outro que havia morrido. É uma interessante trama que conta com a participação de dois indivíduos interessados em melhorar de vida, à custa de uma farsa.

Roger Charles Tichborne é um náufrago, seu desaparecimento ocorreu nas costas do Atlântico, quando vinha do Rio de Janeiro com destino a Liverpool. Lady Tichborne sua mãe, havia publicado anúncios sobre o sumiço dele em periódicos de grande circulação. “Um desses anúncios caiu nas macias mãos funerárias do negro Bogle, que concebeu um projeto genial” (BORGES, 1998, p. 327). Arthur Orton, que também é conhecido por Tom Castro, é o indivíduo que se passará por Roger Charles Tichborne na farsa criada por Bogle. Nessa empreitada, Bogle é o cérebro e Arthur Orton um instrumento em “suas mãos” para executar a trama. “Bogle inventou que o dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando ser seu filho” (BORGES, 1998, p. 328). Os executores da farsa, Bogle que tudo maquina, se desenvolvem e Arthur Orton que executa

são basicamente um duplo: um compõem-se das ideias e o outro da representação delas. Devido aos caprichos e observações do idealista o plano triunfa em um primeiro momento: “A luz compôs a máscara: a mãe reconheceu o filho pródigo e franqueou-lhe seu abraço” (BORGES, 1998, p. 329).

Arthur Orton, o impostor Tom Castro, começou a fraquejar juntamente com seu comparsa nos planos, quando a “mãe” Lady Tichborne morre três anos depois do triunfo da bem pensada trama. Em uma última cartada Bogle tem a grande ideia de operar uma série de denúncias em um jornal contra Sir Roger Charles (Arthur Orton), denúncias estas feitas por um padre jesuíta, e tal procedimento teve a condicionada ação social de fazer todos entenderem que: “[...] Sir Roger Charles era alvo de um complô abominável dos jesuítas” (BORGES, 1998, p. 330). Sir Roger Charles, na verdade, Arthur Orton, o impostor Tom Castro, continuaria um pouco mais a representar-se enquanto duplo de personagens, um ser que se passa por outro na trama dessa narrativa.

A farsa chega ao seu fim depois que uma antiga amante de Orton compareceu para depor. Bogle tentou mais uma vez pensar em outra saída, porém foi atropelado e morreu. Aqui sai de cena o cérebro da trama. Tom Castro agora está só para se defender das acusações de impostor. “Tom Castro era o fantasma de Tichborne, mas um pobre fantasma habitado pelo gênio de Bogle. Quando lhe disseram que este havia morrido, aniquilou-se” (BORGES, 1998, p. 330-331). A farsa chegava ao fim com a morte da mente que arquitetara tudo, o duplo se desfaz em parte, Arthur Orton, conhecido também por Tom Castro, o qual se passara por Roger Charles Tichborne, foi condenado a catorze anos em um regime de trabalhos forçados. O duplo nesse conto de Borges representou, como vimos, um jogo pessoal entre dois vigaristas, sendo um as ideias e o outro o executor; um duplo de personagens, pelo qual um homem, indivíduo, se passou por outro (alteridade). A essência desse estado duplo não abandonou o personagem Tom Castro ao fim na narrativa.

Quando essa hospitalidade final (a da prisão) lhe permitiu, excursionou pelas aldeias e pelos centros populosos do Reino Unido, a pronunciar pequenas conferências nas quais declarava sua inocência ou afirmava sua culpa. Nele, a modéstia e o desejo de agradar eram tão duradouros que muitas noites começou pela defesa e acabou pela confissão, sempre a serviço das inclinações do público (BORGES, 1998, p. 331). O penúltimo conto da obra Ficções (1944) chama-se “O fim” (p. 578). Nessa narrativa encontramos mais uma imanência do duplo na produção de Borges. Estamos diante de um duplo antagônico. É necessário dizermos que quando da representação, geralmente, não é infalível, vem acompanhada de uma fatalidade, pois o outro é caminho para o duplo que quase sempre produz um advento trágico. É interessante entendermos, desde logo, que o

duplo possui semelhanças, porém nunca é o mesmo. É o que poderia ser e não foi. Encontra- se aí a razão de dizermos que não é infalível, contudo quando da figuração do duplo, e especificamente o duplo de personagem enquanto antagônico, a tragédia vem à tona. Essa forma de duplo é outra vez também representada, como já vimos sucintamente, enquanto prévia no capítulo 1, em O Aleph (2012) nos contos “O morto”, “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” e “Emma Zunz”.

Martin Fierro no conto “O fim”, havia matado em uma disputa, há sete anos, um homem, o qual era irmão de um tocador negro. Durante todo esse tempo o tocador negro esperava a presença de Martin Fierro para vingar o irmão. “O tocador era um negro que aparecera uma noite com pretensões de cantor e que provocara outro forasteiro a um longo e improvisado desafio. Vencido, continuava frequentando o armazém, como à espera de alguém” (BORGES, 1998, p. 578). Depois de muito esperar, o dia do reencontro com o seu antagonista chegou. É importante perceber que as imagens denotadas no conto são sensivelmente percebidas por um espectador, Recabarren, um senhor enfermo dono do armazém. É pelos olhos desse personagem que o leitor “vê” as cenas da narrativa.

A planície, sob o último sol, era quase abstrata, como vista num sonho. Um ponto moveu-se no horizonte e cresceu até ser um cavaleiro que vinha, ou parecia vir, para casa. Recabarren viu o chapéu de abas largas, o longo poncho escuro, o cavalo mouro, mas não o rosto do homem, que, por fim segurou o galope e veio aproximar- se a trote lento. A umas duzentas varas de distâncias virou. Recabarren não o viu mais, porém o escutou vozear, apear-se, amarrar o cavalo ao palanque e entrar com passo firme no armazém (BORGES, 1998, p. 579).

A percepção da chegada de Martin Fierro é toda de Recabarren. Tal estilo e forma de se narrar faz o leitor “ver” e perceber a narrativa pelos olhos de outro, o leitor “sofre” de certa forma um pouco de alteridade. O narrador direciona o foco visual e perceptivo da narrativa a um personagem da própria história a qual narra. Antes de começar o duelo, o negro faz uma ressalva: “– Uma coisa quero pedir-lhe antes da briga. Que nesta briga ponha toda a sua coragem e toda a sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão” (BORGES, 1998, p. 580). Recabarren tudo vê no duelo desses dois homens. O duplo representa-se como antagônico, pois não há nas personagens o intuito de usurpar o lugar do outro, mas tão somente o duelo, a vingança.

De seu catre, Recabarren viu o fim. Uma investida e o negro recuou, perdeu pé, ameaçou um talho no rosto e caiu com uma punhalada profunda, que penetrou no ventre. Depois veio outra que o dono do armazém não conseguiu precisar, e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar sua laboriosa agonia. Limpou o facão ensanguentado no pasto e voltou às casas com lentidão, sem olhar para trás. Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era ninguém. Ou melhor, era o outro: não tinha destino sobre a terra e matara um homem (BORGES, 1998, p. 580).

Cumpre-se a tônica do duplo antagônico, a fatalidade. No fim da citação evidencia-se a percepção de que um é o outro, nesse estágio de fim de duelo, já que o agora morto já havia, também, matado. O outro é caminho para o duplo, nessa narrativa é importante perceber que o duplo também fora o outro em seu desfecho.

A narrativa borgiana constitui-se pelo leque de significados e construção da mesma. Caracteriza-se pela presença do labirinto, histórias dentro de história (duplo estrutural), o duplo, mundos paralelos, referência a outros textos e um alto grau de erudição. Tudo isso nos coloca diante daquilo que podemos entender por uma metáfora do espelho. Ou seja, seus textos possuem reflexos, o duplo é um desses.

Narciso encanta-se com a imagem de um belo jovem sobre a face das águas, ao deparar-se com o espelho surge um certo fascínio, estranheza e curiosidade tomaram conta do belo jovem (BULFINCH, 2006). Envolto em um desejo o reflexo lhe consumiu devido ao amor que Narciso passou a cultivar pela sua imagem. Ao passo de um toque a imagem refletida se desfazia no espelho d’água, o fascínio e desejo aumentavam e nesse estado de coisas, por não se satisfazer, Narciso padece no encontro, no reflexo. Esse recorte mitológico nos ajuda a entender essa forma criativa de Borges em seus textos, pois: “Não é apenas de labirintos que se fala; o leitor de Borges também se sente como se estivesse perdido em um labirinto” (GOMES JR, 1991, p. 92). Os significados de suas narrativas são plausíveis, colocam o leitor em cena enquanto participante da trama narratológica e produtor de significados; há reflexos de todos os lados, cada leitor em contato com sua narrativa produz seu próprio significado, há labirintos, sonhos, passado, presente e em alguns casos o enigma do que podemos chamar de infinito universal: o espelho frente a outro espelho, imagem que na visão do próprio Borges é condição para se criar um labirinto (BORGES, 2011).

A metáfora do espelho remete-nos a nós mesmos na atividade leitora, pois Borges é leitor e autor, o seu leitor vê-se por vários “espelhos”; assim como Narciso, contemplamos no espelho a nós mesmos, porém o reflexo no espelho não se trata de nós, mas de uma imagem refletida, um duplo. A sua produção evoca, às vezes, a sensação de lermos algo que é lido ao mesmo tempo por um personagem leitor. É o que já citamos sobre história dentro de história, quando a ficção evidencia sua própria condição ficcional temos “[...] os leitores do leitor [...]” (BERNARDO, 2010, p. 30), expressando para muitas de suas narrativas a metafficção, muito comum em Borges, que também proporciona, como já dissemos, o duplo. Outras representações da metaficção em Borges foram percebidas como veremos no capítulo 3.

Em Compagnon (2012, p. 147) temos: “O objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor”. Na análise da produção de Borges “perambulando” o corpus selecionado para esse estudo, interagimos enquanto leitores e expomos aquilo que entendemos ser um leitmotiv ou parte do projeto literário do escritor. Um fator que nos compromete ao interpretarmos tão somente intencionalidades e algo pessoal em Borges é a sua própria obra que é pródiga em não oferecer significados absolutos, mas quase que sempre possíveis. “Encontrar na obra de Borges referências pessoais que permitam investigar sua intimidade é complexo, quase impossível” (ORDÓÑEZ, 2009, p. 33). Quando colocamos no capítulo 1 e também algo nos demais capítulos relacionado à sua obra com reflexos possíveis do real, foi e será unicamente para entender algo remetente ao duplo. Tal fato é possível, não estamos nos contradizendo, pois ainda em Ordóñez (2009, p. 33) “[...] uma leitura detalhada de Borges possibilita captar seu olhar, único, original e preciso: detrás da obra está sua visão exclusiva, a observação pertinaz sobre as coisas.”, entretanto usamos ou usaremos detalhadamente se for para concretizarmos nossas observações em torno da temática do duplo. Sobre o exposto acima, entendido por Ordóñez (2009), concordamos inteiramente.

2.2 “BORGES E EU”

De certa forma há o desdobramento do ser em outro: “Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas” (BORGES, 2008, p. 54). Ao nomear o outro como Borges, o escritor argentino entende que ele se projeta em outra esfera; vê-se duplicado, refletido e ainda distinto do outro Borges que adquiriu autonomia: “Além disso, estou destinado a perder-me definitivamente, e só um ou outro instante de mim poderá sobreviver no outro” (BORGES, 2008, p. 54). O Borges escritor é um outro distinto do Borges nascido na Argentina: “Embora também remeta ao tema do duplo como desdobramento do eu, esse breve conto de Borges evoca outras variantes: da duplicação do eu em duas personae, a persona pública do escritor Jorge Luis Borges e a persona privada do Sr. Borges; [...]” (VERSIANI, 2009, p. 234).

Representa-se dessa maneira o duplo em O fazedor (1960), no conto “Borges e eu”. O escritor dialoga frente a algo, que pode ser uma possibilidade de leitura sobre o duplo em sua obra. Ao chamá-lo de “Borges” e alcunhar-se de “eu”, a priori no título, o escritor, que também é Borges, já se desdobra, desvincula-se e entende o reflexo como algo que apesar de “Borges” não é o “eu”, é um outro. Esse estado de coisas é totalmente relacionado ao duplo, pois: “De modo bastante genérico, pode-se entender o duplo como qualquer modo de

desdobramento do ser” (FRANÇA, 2009, p. 7). Ao longo do tempo, a alteridade é uma condição para todos: a pessoa do Sr. Borges (persona privada) na função de escritor entende isso talvez ao consultar seus escritos do passado, os atuais, uma enciclopédia e a sua propagação no mundo das letras ao passo que se reconhece um outro em relação ao Borges, persona pública. “Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros, ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra” (BORGES, 2008, p. 55).

Versiani (2009, p. 234-235) também entende que em “Borges e eu” há: “[...] o desdobramento do eu nas identidades do escritor, do autor e do narrador.”, ou seja, um duplo ao mesmo tempo de personagem, pois Borges desdobra-se em dois; e de enredo, pois tanto escritor, autor e narrador constituem-se de duplos. Todos são reflexos, Borges passa a ser um ser da literatura, um escritor conhecido no mundo inteiro; o narrador que também é escritor em “Borges e eu” já não se vê em “Borges”, esse ser do qual o texto fala, houve mudanças, há um outro. Assim figura o duplo no desdobramento do ser, ao fim do que o narrador nos diz: “Assim a minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página” (BORGES, 2008, p. 55). Aqui fica mais do que evidente o duplo, o reflexo do Borges em um outro que ele chama de “Borges”, o dos ciclos literários, da intelectualidade, das enciclopédias, o escritor reconhecido no mundo e outro que se intitula “eu”. O duplo aqui evidencia as reflexões de Borges, homem, filho, pessoa privada; e o Borges homem público, escritor, mundialmente conhecido. Esse duplo evocado por Borges conduz-se por uma certa apropriação, pois Borges ao fazer algo o outro toma posse: “Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas” (BORGES, 2008, p. 55).

Nesse conto podemos entender o duplo, como já mencionamos, como de personagem e de enredo. Apesar de não se ter um personagem convencional como em muitos contos, pois é uma curta narrativa versada à reflexão, o narrador fala de um ser chamado “Borges”, este é um outro, o duplo do “eu” que se desdobrou nele a ponto de não mais se reconhecer nesse outro mesmo esse sendo Borges. É um ser que se tornou em mais de um e não se conhece mais no outro. Ele é dois, mas não se conhece na outra metade, no “Borges” escritor, aquele dos livros. A razão de ser também um duplo de enredo condiciona-se essencialmente pelo fato de o narrador estar inserido entre o “Borges” e o “eu”, pois ambos são um, mas depois se bifurcam e se tornam dois a ponto de o próprio escritor dizer que já tentou escrever de outra

maneira, mas “Borges”, o duplo, passa a possuir o que ele, o “eu”, escreve, a ponto deste ter que “imaginar outras coisas” para desvencilhar desta sombra que lhe persegue e é algo que se torna distinto dele mesmo, apossando-se de seu nome e de tudo que ele escreve.

2.3 “O OUTRO”

Como explicar um encontro consigo mesmo? Talvez este não seja o objetivo ficcional do conto “O outro”, contudo evidencia essa possibilidade. Em um lugar ao norte de Boston, ao observar as águas cinzentas do rio Charles, acontece um encontro que podemos entender como a presença de um outro que é o eu. O duplo, sem sombra de qualquer dúvida, é a grande tensão do conto, primeira narrativa contida na obra O livro de areia (2011), última coletânea de contos publicada por Jorge Luis Borges. Borges com setenta anos de idade tem um encontro consigo mesmo, contudo esse outro, ao qual ele encontra, tem quase vinte anos. É o próprio Borges, mas assim como a filosofia de Heráclito, na qual entende que ao banhar- se duas vezes em um rio nem o homem e nem o rio são mais os mesmos, o velho Borges entende que aquele outro o fora, e agora ele, velho, vê no Borges jovem a alteridade que os anos lhe trouxeram. Outro fato que devemos mencionar é certa comunicação entre passado, futuro e sonhos, pois tanto o Borges velho como o novo são partícipes de um diálogo e de um sonho. Assim o narrador começa:

O fato aconteceu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o escrevi de imediato porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo, para não perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrever, os outros o lerão como um conto e, com os anos, talvez o seja pra mim (BORGES, 2011, p. 7).

Um acontecimento incomum que chega a causar inquietação no narrador, tanto que ele só escreveu a lembrança desse fato três anos após o ocorrido. Temeu perder a razão talvez em meio à hipótese explicativa do fato, contudo crer que ao escrever o acontecido ele se tornaria um conto, como o é para os leitores, e assim também para ele. Explica sua condição antes do encontro com o outro talvez como uma forma de evidenciar sua lucidez: “Eu dormira bem, minha aula da tarde anterior tinha conseguido, creio, interessar os alunos. Não havia vivalma” (BORGES, 2011, p. 7). Em seguida, coloca na narrativa um pouco de contradição apesar de antes ter afirmado que dormira bem: “Tive de repente a impressão (que segundo os psicólogos corresponde aos estados de cansaço) de já ter vivido aquele momento” (BORGES, 2011, p. 7). O outro chega e senta-se na outra ponta do banco e começa a assoviar. O Borges velho pensou em sair, contudo entendeu ser um ato descortês e ficou. Uma situação

aparentemente comum, porém algo que se assemelha a fantástico começa a se concretizar: “O outro começa a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas perturbações daquela manhã” (BORGES, 2011, p. 7-8). O ocorrido inquieta o narrador, por conseguinte é plausível a inquietação do leitor, pois o fato narrado em seu começo traz uma hipótese de que o mesmo aconteceu quando: “Agora, em 1972, penso que, se o escrever, os outros o lerão como um conto e, com os anos, talvez o seja pra mim” (BORGES, 2011, p. 7).

Muitas perturbações irão se apresentar ao narrador do conto, aliás, ao Borges velho, que é o narrador do fato. O outro assobia e depois começa a cantar, quando Borges ouve a voz: “Reconheci-a com horror” (BORGES, 2011, p. 8). Tão somente pela voz Borges já conhecera ao outro. Pergunta-lhe se é argentino. O outro responde que sim, contudo mora em Genebra desde os catorze. Aquilo confirmava um temor anunciado desde as primeiras palavras do outro que lhe causaram horror. Depois de um longo silêncio, Borges diz ao outro o endereço onde morava em Genebra; lógico, já que o outro era ele mesmo, logo ele, velho, pôde lembrar-se de onde aquele outro-ele morava. Depois da afirmativa, o Borges velho diz ao Borges jovem: “– Nesse caso - disse-lhe resolutamente – o senhor é Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge,” (BORGES, 2011, p. 8). O jovem não concorda: “– Não – respondeu com minha própria voz um pouco distante” (BORGES, 2011, p. 8). O velho chega à conclusão de estar diante dele mesmo mais jovem. O outro não concorda e ratifica esse sentido: “– Eu estou aqui em Genebra, num banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça cinza” (BORGES, 2011, p. 8). Aqui o leitor por certo hesitará, uma vez que estamos diante de um fato incomum, inusitado, aliás, encontrar-se consigo mesmo é no mínimo estranho. Configura-se para o conto a categoria fantástica, pois: “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2012, p. 31). O narrador padece já de certa perturbação frente ao fato que narra, por conseguinte o leitor experimentará as sensações comuns frente a um texto que possui características do gênero fantástico.

A voz é de fato longínqua, pois o tempo passou e tudo muda, até a voz. Mas o Borges velho se reconhece naquele outro, lembra-se de sua voz quando jovem; o outro não, entretanto vê semelhanças e traz mais complexidade ao momento e como geralmente ocorre, o outro é caminho para o duplo. O narrador surpreende-se diante do fato que agora narra e provavelmente o leitor, pois entende que o exposto no início pode trazer uma possibilidade de

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