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Gaia e a Ciência do Sistema Terra

A expressão ‘Ciência do Sistema Terra’ (do inglês “Earth System Science”, doravante CST) tem se tornado cada vez mais popular nos últimos anos nas comunidades de cientistas que se dedicam ao estudo da Terra, sobretudo entre climatologistas, meterologistas, geofísicos e geoquímicos (Johnson et al., 1997; Kump et al, 1999; Jacobson et al., 2000; Lenton & van Oijen, 2002). Para uma compreensão mais rica do estatuto epistemológico do programa de pesquisa Gaia na comunidade científica, é importante discutir, pois, como Gaia e a CST se relacionam.

O uso do termo ‘Gaia’ certamente não foi a única, mas tem sido uma importante fonte de problemas, para a apreciação do programa de pesquisa no âmbito científico, como já apontamos. Havia, e ainda há de certo modo, uma tensão entre o nome do programa de pesquisa (que sugere um caráter pseudocientífico) e seu conteúdo propriamente dito, que se mostra teoricamente consistente, inovador, com potencial de gerar avanços científicos, manifestos nas previsões novas derivadas dele, algumas delas com significativo apoio empírico (Schneider et al, 2004). Esta tensão acabou por fazer com que idéias relacionadas ao programa Gaia fossem usadas sem que o devido crédito a ele e aos seus proponentes fosse assumido. Margulis (2004), em trabalho sugestivamente intitulado “Gaia com qualquer outro nome” (Gaia by Any Other Name), afirma que a

Astrobiologia é o campo da história natural reinventado para ser financiável para uma ampla variedade de cientistas, ao passo que ‘Ciência do Sistema Terra’ não é nada mais do que a própria Gaia vestida em roupas futurísticas e tornada palatável para cientistas ‘hard rock’, especialmente geofísicos. (Margulis, 2004, p. 8).

O ambientalista britânico Crispin Tickell parece concordar com as palavras de Margulis e apresenta uma análise que evidencia bem a imagem que muitos cientistas ainda têm de Gaia:

O que reside num nome? Eu recordo uma conversa com um cientista famoso ávido para lançar ao lixo ‘todo este nonsense sobre Gaia’. Quando eu protestei e propus renomeá-la ‘geofisiologia’, ‘ciência do sistema Terra’, ou algo similar, ele se animou e terminou por confessar que ‘a maioria dela deve estar correta’. A escolha da deusa grega Gaia, em vez de algum polissílabo científico derivado do Grego, ou algum acrônimo pior, foi um risco. Por um lado, era atrativo demais para aqueles em busca de uma nova religião, num tempo em que as religiões tradicionais estavam colapsando; por outro, era repulsivo demais para aqueles que gostam de ocultar sua ciência sob um vocabulário em código. (Tickell, 2004, p. 223-4).

Logo em seguida, Tickell faz referência à Declaração de Amsterdam sobre Mudança Global, assinada por quase mil pessoas em 13 de julho de 2001. Esta declaração foi assinada por pesquisadores de quatro grandes programas internacionais de pesquisa científica (“International Biosphere-Geosphere”, “International Human Dimensions Programme on Global Environmental Change”, “World Climate Research Programme” e “International Biodiversity Programme”) que lidam diretamente com mudanças climáticas e seus impactos sociais, o que evidencia a sua importância. A Declaração enunciou que

[O] Sistema Terra se comporta como um sistema auto-regulatório único, formado por componentes físicos, químicos, biológicos e humanos. As interações e retroalimentações entre as partes componentes são complexas e exibem variabilidade temporal e espacial em múltiplas escalas. (Moore III et al, 2001, p. 1).

Podemos perceber, assim, que em alguns casos o conteúdo do programa de pesquisa proposto por Lovelock tem sido usado pela comunidade científica, chegando a fazer parte

do conhecimento científico convencional, ainda que Lovelock ou Gaia não recebam os créditos. Com relação a este mesmo trecho, Lovelock se pergunta: “Eu imagino quantos daqueles que assinaram a declaração sabiam que estavam colocando seus nomes num enunciado da teoria Gaia” (Lovelock, 2004, p. 1)23.

Entretanto, Lovelock não está totalmente relegado ao descrédito, como sua reclamação poderia fazer-nos crer, à primeira vista. Aqui, apenas a título de ilustração, selecionamos dois exemplos de livros-texto dedicados a pesquisadores, professores e estudantes da CST: “O sistema Terra” (“The Earth System”) de Kump et al (1999) e “Ciência do Sistema Terra – dos ciclos biogeoquímicos às mudanças globais” (“Earth System Science - from biogeochemical cycles to global change”) de Jacobson et al (2000). Em ambos encontramos referências a Lovelock e a Gaia (ver Kump et al, 1999, p. 19 e Jacobson et al, 2000, p. 12-13). Em Kump et al (1999), o segundo capítulo intitulado “Daisyworld: an introduction to systems” apresenta o Mundo das Margaridas, modelo matemático desenvolvido por Watson e Lovelock (1983) como modelo-padrão da abordagem sistêmica advogada pela CST. Em Jacobson e colaboradores (2000) notamos que no capítulo introdutório do livro, dos 17 trabalhos citados, 5 são trabalhos nos quais Lovelock é pelo menos um dos autores. Ainda nesta obra, o principal proponente do progrma de pesquisa Gaia é colocado ao lado de personagens como Svante Arrhenius e Vladimir Vernadsky, como uma grande influência na construção da visão da Terra que se estabelece com a CST (Jacobson et al., 2000):

A tarefa de integrar as esferas e os ciclos biogeoquímicos emerge como um desafio necessário, ainda que intimidador. A ciência disciplinar tem oferecido poucos precedentes para nós, embora orientação substancial tenha sido oferecida por pioneiros como Arrhenius, Vernadsky e Lovelock, os quais pressagiaram estes desenvolvimentos globais. (Jacobson et al, 2000, p. 10).

Em outra passagem do mesmo capítulo, Jacobson et al. (2000, p. 4) se referem à integração das várias esferas do planeta, que resulta em “um sistema Terra que é complexo,

23 “I wonder how many of those who signed the declaration knew that they were putting their names to a

acoplado e em evolução”. É interessante notar a similaridade desta declaração com algo que Lovelock disse em 1990: “Gaia é a teoria de um sistema em evolução — um sistema composto dos organismos vivos da Terra e de seu ambiente material, as duas partes sendo intimamente acopladas e indivisíveis”. (Lovelock, 1990, p. 100)24. Trechos como estes podem ilustrar a profunda influência de Gaia sobre o desenvolvimento da CST.

Entretanto, apesar das reclamações de Lovelock, Margulis e Tickell, e das razões apontadas por eles, é preciso tomar suas acusações de apropriação do conteúdo do programa de pesquisa Gaia, sem referência ou crédito, com cautela. Embora isso não signifique que não haja, em alguns casos, uma apropriação do conteúdo de Gaia desacompanhada de uma referência explícita ao programa de pesquisa Gaia ou a Lovelock e seus colaboradores (Johnson et al, 1997; Moorcroft, 2006. Ver Margulis, 2004 e Tickell, 2004, para críticas a esta situação), este não é o caso, por exemplo, do livros editados por Kump et al (1999) e Jacobson et al. (2000), que atribuem grande importância a Lovelock e Gaia na construção da CST.

A relação entre o programa de pesquisa Gaia e a CST pode ser vista, contudo, sob outro ângulo. Se assumirmos que as duas empreitadas científicas não tem exatamente os mesmos objetivos, podemos enxergar com mais clareza a relação entre elas. Gaia oferece uma visão mais estreita do sistema Terra, exigindo um maior número de compromissos teórico-metodológicos de seus partidários, do que a CST, que é um campo de pesquisas comprometido com pressupostos mais amplos. As investigações em CST abarcam um leque maior de possibilidades teóricas do que permite a adoção de um programa de pesquisa específico. Por exemplo, é uma reivindicação de Gaia que retroalimentações negativas sejam mais freqüentes do que retroalimentações positivas ao nível global, na medida em que ela propõe mecanismos de auto-regulação planetários (ver por exemplo, Kirchner, 1989, p. 224). A CST não se compromete com exigências de tal especificidade25.

24 “Gaia is the theory of an evolving system — a system made from the living organisms of the Earth, and

from their material environment, the two parts being tightly coupled and indivisible”.

25 Estas considerações nos sugerem que as relações entre Gaia e CST podem ser abordadas com proveito a

partir de uma perspectiva desenvolvida por Scheiner & Willig (2008). Para estes autores, que estão voltados para a síntese de uma teoria geral em ecologia, “o termo ‘teoria’ é usado em referência a uma variedade de tipos de sistemas em diferentes níveis de especificidade. Além disso, a natureza da teoria difere em cada um dos níveis.” (Scheiner & Willig, 2008, p. 22). Com base nisso, eles reconhecem três níveis nos quais podemos falar em teoria. No nível mais amplo, estão as “teorias gerais”, que consistem de “um domínio inteiro da ciência e uma série de princípios fundamentais” (Scheiner & Willig, 2008, p. 22). Uma teoria geral, para os autores, não faz predições específicas, mas oferece uma estrutura (scaffolding) para a integração e a reunião

Esta visão acerca do relacionamento entre Gaia e CST parece estar de acordo com uma sugestão do físico e filósofo James Kirchner, um dos principais críticos do programa de pesquisa proposto por Lovelock. De acordo com ele “Os proponentes de Gaia fizeram um grande trabalho ao defenderem a necessidade de considerar a Terra como um sistema acoplado” (Kirchner 2002, p. 404). Em uma publicação posterior, Kirchner sugere que o futuro do programa de pesquisa iniciado por Lovelock exigirá que os “partidários de Gaia se integrem à comunidade mais ampla da ciência do sistema Terra e abandonem a noção de que Gaia está à parte de (ou talvez até mesmo em oposição a) aquele esforço mais amplo” (Kirchner, 2003, p. 38). Ele oferece, inclusive, algumas sugestões para o futuro de Gaia, “na esperança de que ele possa desempenhar um papel produtivo no desenvolvimento futuro da ciência do sistema Terra” (Kirchner, 2003, p. 38).

De fato, o esforço dos cientistas envolvidos com a CST – muitos dos quais também fazem pesquisa sobre Gaia – como Timothy Lenton, Robert Charlson, Lee Kump, Axel Kleidon, entre outros – parece mais amplo, se lembrarmos, conforme esboçamos acima, da distinção entre o sistema Gaia e o sistema Terra (ver acima a discussão de Lenton e van Oijen, 2002, sobre a definição de Gaia).

Em suma, apesar de hoje o programa de pesquisa Gaia e a CST qualificarem-se como empreitadas distintas, não podemos perder de vista que o programa de Lovelock desempenhou e tem desempenhado um papel importante no surgimento e desenvolvimento da CST.

de “teorias constituintes”. Estas representam o segundo nível em que eles compreendem teoria. Uma “teoria constituinte” fixa fronteiras e parâmetros de interesse particular, que guiam o desenvolvimento de modelos. Mais importante para eles, é o fato de que, uma teoria constituinte deve unificar em si uma série de modelos interrelacionados. E por fim, no nível mais específico, estão os modelos, instanciações de teorias constituintes. Neste nível, as predições são formalizadas e o entendimento das relações causais é o que o motiva o próprio processo de pesquisa. Portanto, em suma, a teoria geral é composta por teorias constituintes, ao passo que uma teoria constituinte é composta por modelos. Apenas especulativamente, propomos que esta hierarquia de aninhamento pode ser aplicada às relações entre CST e Gaia. Precisamos ressaltar, contudo, que não é esta a perspectiva que adotamos neste trabalho, na medida em que ela contradiria a nossa concepção de Gaia como um programa de pesquisa Lakatosiano, portanto uma série de teorias. Porém, apenas apontamos para esta possibilidade que pode orientar os primeiros passos de uma pesquisa futura, detalhada, sobre o assunto. A partir do quadro apresentado por Scheiner & Willig, CST seria uma teoria geral, Gaia poderia ser considerada uma teoria constituinte da CST, e o Daisyworld assim como também o mecanismo proposto pela hipótese CLAW (ver adiante) poderiam ser considerados os modelos da teoria constituinte Gaia. Nos parece, em princípio, que Gaia seria a única teoria constituinte da CST, muito embora esta seja uma questão a ser investigada.