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CAPÍTULO 2 – TEORIAS DO CONTATO

2.4. Galvão, Darcy, RCO e as Teorias do contato

Realizamos aqui um relato da história das ideias que nortearam o indigenismo oficial do Brasil no século XX, quais sejam as ideias em torno do marechal Rondon, o chamado indigenismo rondoniano. Essas ideias perpassam a dimensão factual e institucional, bem como em grande medida a atuação de Galvão, Darcy e RCO de forma destacada, mas representativa do trabalho etnológico dentro dos setores estatais responsáveis pelos índios no Brasil. Falar de indigenismo nos anos 1950 é praticamente falar da atuação dos etnólogos do SPI, estando Galvão, Darcy e RCO em plena atividade neste período. Para isso buscamos dar menos importância à formação institucional dos autores como fizemos no capítulo 1 e nos concentramos no campo das ideias relatando as discussões em torno dessas teorias, seus desenvolvimentos e representantes na Antropologia brasileira.

Consideramos também as tendências teóricas acerca do contato entre índios e não-índios entre 1944 e 1967, dando um panorama geral dessas em termos de ideias, no caso do Brasil, além de atentar para as discussões acerca do contato nas Américas,

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Embora os autores do que Ribeiro (2010) chamou de “escola do contato”, mantenham em comum algumas ideias, como o fato de o contato entre sociedades ser o fator que desencadeia a perda de elementos culturais e a destruição da cultura de determinada comunidade indígena, os conceitos e suas aplicações sofrem variações, configurando uma heterogeneidade observada por Schaden (1969) quando o assunto é aculturação. Schaden (1969) afirma que há dificuldade em achar uma linha de orientação comum a todos eles, mas que isso reflete o caráter não uniforme desses “fenômenos de aculturação” e levanta o questionamento sobre a natureza e os motivos dessas variações.

principalmente nos Memorandos sobre aculturação de 1936 e de 1955 e na Declaração de Barbados, de 1971. Tais discussões não estão desvinculadas das feitas nos EUA, México e em outros países da América Latina a esta época. Nesse sentido, é importante enfatizar que junto às construções teóricas acerca do contato na América Latina, aparece a atuação em defesa dos povos indígenas dos principais nomes da Antropologia nesse período, notavelmente no indigenismo estatal marcando a relação entre indigenismo e teoria antropológica num momento importante da história da Antropologia.

Aqui chamamos atenção para a Antropologia feita no Brasil e na América Latina, sobretudo sobre nossos povos nativos. Tanto RCO como Darcy, mas principalmente este último participou ativamente das discussões intelectuais acerca do contato interétnico na América Latina. Darcy, político exilado após o golpe militar de 1964 no Brasil e daí em diante intelectual itinerante por vários países da região, além de ter os indígenas como elemento central de sua interpretação do Brasil, e por que não dizer também das Américas. Propôs-se a fazer seus estudos de “Antropologia da Civilização” opondo-se às interpretações da história elaboradas nos Estados Unidos e na Europa, sendo colocado por autores como Vasconcelos (2010; 2015) e Miglievich- Ribeiro (2011) como um produtor de um pensamento pós-colonial. Neste sentido, a partir do Brasil e da América Latina,

O papel desnaturalizador e crítico da antropologia é que a torna sempre atual. Em um mundo globalizado, onde o império americano se estabelece com energia crescente, cabe aos antropólogos e a outros cientistas sociais, em especial nos países latino-americanos, desenvolver perspectivas pós- imperialistas sobre as grandes matrizes discursivas e meta relatos salvíficos que são disseminados com força e eficácia tão intensas via meios de comunicação e por certos tipos de intermediários políticos e intelectuais (RIBEIRO, 2006, p.110).

Em editorial de uma edição especial sobre Etnologia indígena do “Anuário Antropológico”, periódico renomado da UnB criado por Roberto Cardoso de Oliveira, este considera que boa parte dos resultados em termos de pesquisa antropológica que tal publicação divulga tem a ver com pesquisas com povos indígenas, “junto aos quais os antropólogos têm assumido, individualmente e como membros da comunidade profissional, claro compromisso de defesa de seus direitos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p. 13-14).

Em 1971, a Reunião de Barbados I (OLIVEIRA FILHO; FREIRE, 2006) reuniu um grupo de antropólogos para uma análise da situação das populações indígenas de vários países da América do Sul. Consideramos que a declaração gerada nesse encontro

é importante como uma síntese de posicionamentos e desdobramentos de características marcantes da Antropologia, dos missionários e do indigenismo oficial, inclusive entre 1944 e 1967, como estudamos aqui38. Fazem-se considerações e denúncias sobre o que significou a presença missionária e recomendação para acabar com toda atividade missionária; sobre a dominação dos povos indígenas pelas metrópoles na conquista e posteriormente pelas sociedades nacionais; sobre a geração de uma falsa imagem das sociedades indígenas e de sua perspectiva histórica; sobre o fracasso do Estado por ação ou omissão; e sobre o conteúdo etnocêntrico da atividade evangelizadora como um componente da ideologia colonialista.

No que concerne ao Estado, fez-se recomendações para esse garantir a identidade dos indígenas, bem como o atendimento às carências específicas e para proteger os povos da exploração por outros setores da sociedade nacional. E para que o Estado fosse responsável pelo contato com grupos indígenas isolados, se responsabilizasse pelos crimes da expansão da fronteira nacional, sendo que o órgão responsável por lidar com os nativos deveria ser estatal (sem possibilidade de delegação).

Há também a reivindicação do “direito de anterioridade” na posse da terra para “os nativos”; recomendação aos estados, missões religiosas e cientistas sociais (principalmente antropólogos) para assumir responsabilidades de ação imediata para acabar com as agressões e contribuir para a libertação dos povos indígenas. Tal documento demonstra uma Antropologia comprometida com a “questão indígena” e com a libertação dos índios por si mesmos junto com outros grupos oprimidos, numa América do Sul cheia de ditaduras

Visando à realização dos objetivos anteriores, os antropólogos têm a obrigação de aproveitar todas as conjunturas que se apresentem no atual sistema para agir em favor das comunidades indígenas. Cabe ao antropólogo denunciar por todos os meios os casos de genocídio e as práticas que conduzem ao etnocídio, assim como voltar-se para a realidade local e teorizar a partir dela, a fim de superar a condição subalterna de simples exemplificadores de teorias alheias (OLIVEIRA FILHO e FREIRE, 2006, p.176).

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Um dos redatores da Declaração de Barbados I foi Darcy Ribeiro. Dentre os estrangeiros, alguns dos autores foram Miguel Bartolomé, Darcy Ribeiro, Guillermo Bonfil Batalla, entre outros (OLIVEIRA FILHO e FREIRE, 2006).

Galvão39, Darcy e Roberto estiveram envolvidos nas discussões acerca do contato entre índios e não-índios travadas entre 1944 e 1967 (e para além deste período também) na América Latina. Cabe considerar o fato de que principalmente Darcy e RCO40, transitaram proficuamente enquanto antropólogos pela América Latina. Em seus exílios, Darcy orientou e dirigiu uma série de reformas universitárias em alguns países do continente (conforme tratamos no capítulo 1), além de lecionar em algumas dessas e proferir palestras e conferências, escrever livros e participar de congressos acerca da defesa dos povos indígenas no Brasil e na América Latina. Já Roberto teve contato com Rodolfo Stavenhagen nos anos 1960 no Rio de Janeiro, além de ter passado um período no México e ter estabelecido relações com uma série de antropólogos continentais que lecionaram e/ou estudaram nos programas de pós-graduação em que esteve à frente no Brasil, além de assinar a Declaração de San José, da Costa Rica de 1981 (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, pp.13-14).

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Na bibliografia que acessamos para a realização deste trabalho não encontramos registros acerca da participação de Galvão em congressos internacionais, a não ser nos que ocorreram no Brasil. Para relacioná-lo aqui, consideramos a influência de Charles Wagley e suas ideias sobre o contato entre índios e não-índios, mas também posicionamentos incisivamente contrários de Galvão acerca de empreendimentos estatais que afetaram povos indígenas. Nesse sentido, ver Gonçalves (1996), Gleiser Ribeiro (1979) e Fazimentos (2008). O antropólogo Carlos de Araújo Moreira (1929-2007) conta que Galvão escrevera para o presidente da FUNAI para falar em favor dos índios diante dos impactos advindos da construção da Transamazônica (MOREIRA NETO, 2008).

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Corrêa (2011, p. 212-213), aponta para o fato de que já nos anos 1970 a noção de fricção interétnica já era utilizada por outros autores quando “bem no (re)começo de nossa história institucional, a noção de fricção interétnica já era apropriada por Bonfil Batalla, em seu debate com Aguirre Beltrán (Bonfil Batalla, 1972) e que, no Coloquio sobre Friciones Interétnicas en América del Sur, reunido em Barbados, em 1971, aquela noção era o centro da cena de discussão antropológica/indigenista”.

CAPÍTULO 3 – “ÁREAS CULTURAIS INDÍGENAS” E ACULTURAÇÃO,