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2 DA ARQUEOLOGIA DAS MÍDIAS AO ARCHAEOGAMING, ATRAVESSADO

3.3 Games e Tecnocultura Audiovisual

Podemos afirmar que cada vez mais passamos a interagir com dados que são hegemonicamente culturais: música, fotografias, textos, filmes, ambientes virtuais, jogos são acessados via redes de computadores. Ou seja, não estamos simplesmente conectados a um computador, mas sim a uma cultura codificada em formato digital (MANOVICH, 2001): o computador como máquina de mídia universal. Para descrever essa interface homem-máquina- cultura, nada melhor que a tratar como “interface cultural”, conforme dito anteriormente, onde o computador nos apresenta formas e permite que possamos interagir com os dados culturais.

Da mesma forma, entendemos que estamos em uma cultura produtora de imagens técnicas e que estas não só se tornam mediações entre o homem e o mundo, mas carregam traços de diferentes devires. Os jogos digitais são (re)produzidos por um conjunto de lógicas operativas (pensando na programação), que vai da imagem técnica ao aparelho o qual se inserem, passando pela interface. Conforme vamos escavando o nosso objeto empírico, identificamos aqui uma imagem a qual carrega não somente linhas de programação, mas também qualidades audiovisuais e lúdicas, embora viabilizadas por uma programação a qual podemos dizer que se constitui por caixa-preta: o que se vê é apenas o input e o output. Para Flusser (1995, p. 11),

as imagens técnicas, longe de serem janelas, são imagens, superfícies que transcodificam processos em cenas. Como toda imagem, é também mágica e seu observador tende a projetar essa magia sobre o mundo. O fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável a todo instante em nosso entorno.

Nesse sentido, devemos pensar o videogame como um objeto cultural, um produto e produtor da tecnocultura audiovisual contemporânea, ligado à história e à materialidade, composto por um dispositivo computacional eletrônico e um jogo simulado em software. Portanto, é considerado um meio cultural envolvendo muitas máquinas orgânicas e inorgânicas. Na cultura de novas mídias e das interfaces culturais, há uma cultura de código aberto, o que significa termos interfaces abertas: “liberdade de se conectar a imagens técnicas”. (GALLOWAY, 2012). Esse pensamento em Galloway (2012) não é abordado somente no sentido de software livre, mas também podemos tratar esse “código aberto” como um artifício comunicativo, como qualquer outro, que nos permite reconstruir coisas. Uma remontagem de todo e qualquer elemento por possuir uma natureza de programação. Um código em um sentido mais amplo, de código cultural: é nesse sentido que o jogo permite o ingresso de outras referências nele, ou que possibilita lembrarmos de outras referências. Desse modo, trataríamos este código aberto com uma natureza das imagens, onde temos a liberdade de não enquadrar demais tais imagens, fazendo o uso de um agir arqueogamer, tomando o jogo como um particular território arqueológico. A partir desse movimento, pode-se fazer uma reflexão quanto a mídia em geral (incluindo os jogos digitais) de que mediar é, portanto, criar interfaces e que “[...] mediação em geral é apenas a repetição em particular, e, portanto, a ‘nova’ mídia é realmente todos os artefatos e traços do passado que aparecem em um presente sempre em expansão”7. (GALLOWAY, 2012, p. 10, tradução nossa).

Ao tratarmos de jogos digitais, sabemos que há uma interação homem-máquina onde não há passividade tanto do operador quanto do computador: ambos são constituídos por ações. Galloway (2006) nos traz a seguinte linha de pensamento: se as fotografias são imagens e se os filmes são imagens em movimento, então os videogames são ações. Ou seja, para o autor, jogos são ações tanto do operador (jogador) quanto da própria máquina, onde tais ações podem estar na diegese do jogo ou fora dela. Se excluirmos a participação ativa de jogadores e máquinas, os videogames passariam a ser meros códigos de um computador estático, por assim dizer. Existem, sim, ações que são realizadas por quem joga, mas do mesmo modo existem várias outras realizadas pela máquina (podendo ser uma resposta a alguma ação do jogador como algo já existente na natureza do jogo). Para entender os videogames, é necessário entender como essa ação existe no jogo (máquina), compondo a experiência do arqueogamer (do operador), atentando para suas inúmeras variações e intensidades.

7 “[...] mediation in general is just repetition in particular, and thus that the ‘new’ media are really all the artifacts and traces of the past coming to appear in an ever expanding present.”

Ao jogarmos um videogame, é comum movermos nossas mãos, corpos, olhos e bocas, do mesmo modo que as máquinas também atuam: elas agem em resposta às ações do jogador e, também, independentemente deles. Seria uma espécie de “gramática de ação” permitindo que sejam descritas como as atividades humanas são codificadas para que haja uma análise maquínica utilizando metáforas linguísticas e estruturais. Galloway (2006, p. 4) explica essa gramática da seguinte maneira:

Os videogames criam suas próprias gramáticas de ação; o controlador do jogo fornece os principais vocabulários físicos para os humanos interpretarem essas gramáticas gestuais. Mas além do controlador, os jogos também têm suas próprias gramáticas de ação que emergem através do jogo. Essas gramáticas fazem parte do código. Eles ajudam a transmitir mensagens de um objeto para outro dentro do software da máquina. Mas eles também ajudam a articular ações de nível superior, ações experimentadas em ocorrências dos jogos comuns, como power-ups ou atraso de rede.

É possível, então, distinguirmos dois dos tipos básicos de ação nos jogos: ações da máquina e ações do operador. A diferença é a seguinte: “as ações da máquina são atos executados pelo software e hardware do computador ou dispositivo onde o jogo está sendo executado; as ações do operador são atos executados pelos jogadores”. (GALLOWAY, 2006, p. 5). Pensando no espaço do jogo, também existem as ações que ocorrem no espaço diegético8

e ações que ocorrem no espaço não-diegético9. Para melhor entender a questão das ações do

jogo, Galloway (2006) propõe dois eixos para trabalhá-las: a) diegético e não-diegético; b) operador e máquina. Com isso, formam-se quatro grupos, cada um sendo um tipo de jogo: a) um jogo de aventura com muita história e pouca interação, o maquínico é diegético; b) jogos de luta, o operador é diegético; c) jogos de RPG, de estratégia e simulação, o operador é não- diegético; d) e um glitch e/ou power ups dentro do jogo, o maquínico é não-diegético (Figura 10). Cria-se um diálogo constante entre máquina e operador, dentro e fora da diegese. O

8 A diegese de um videogame é um mundo total da ação narrativa do jogo. Assim como no cinema, a diegese de videogames inclui elementos na tela e fora da tela. Inclui caracteres e eventos que são mostrados, mas também aqueles que são meramente referenciados ou presumidos de existir dento da situação do jogo. Enquanto alguns jogos podem não ter narrativas elaboradas, sempre existe algum tipo de cenário de jogo elementar ou situação de jogo – a “segunda realidade” de Caillois – que funciona como a diegese do jogo. Em PONG, é uma mesa, uma bola e duas pás; no World of Warcraft são dois grandes continentes com um mar no meio. (GALLOWAY, 2006, p. 7).

9 Elementos lúdicos não-diegéticos são aqueles elementos do aparato de jogos que são externos ao mundo da ação narrativa. Na teoria do cinema, “não-diegético” refere-se a toda uma série de técnicas formais que fazem parte do aparato do filme enquanto ainda estão fora do mundo narrativo do filme, como a partitura ou os títulos de um filme. Como “não-diegético”, desejo evocar esse mesmo terreno para os videogames: elementos gâmicos que estão dentro do aparato gâmico total, ainda que fora da parte do aparato que constitui um mundo de caráter e história. Certamente, os elementos não-diegéticos são muitas vezes conectados centralmente ao ato de jogar, então ser não-diegético não significa necessariamente ser não-gâmico. Às vezes, elementos não-diegéticos estão firmemente embutidos no mundo do jogo. Às vezes eles são totalmente removidos. (GALLOWAY, 2006, p. 7- 8).

operador não é passivo, da mesma forma que a máquina também não é. No caso do nosso objeto empírico, como veremos nas escavações realizadas no capítulo de análise, trataremos de jogos do gênero RPG majoritariamente, a partir dos nossos movimentos enquanto arqueogamer (aqui, um operador com uma especificidade).

Figura 10 - Esquema dos eixos de Galloway

Fonte: Galloway (2006, p. 37, tradução nossa).

Galloway (2006) traz em seu trabalho um delineamento de um sistema de quadrantes (Figura 11) para um melhor entendimento dessas ações: a) o jogo é um processo puro tornado perceptível na repetição maquínica dos atos da máquina diegética; b) o jogo é um algoritmo subjetivo, uma intervenção de código exercida tanto dentro do jogo quanto sem jogabilidade na forma do ato do operador não-diegético; c) o jogo é um ritual de jogadores transportados para o lugar imaginário da jogabilidade e atuado na forma de atos de operadores diegéticos; d) o jogo é o jogo da estrutura, uma agitação generativa entre o interior e o exterior, efetuada através do ato da máquina não-diegético. Sendo assim, encarar os jogos como ação é revelar uma característica que se torna própria desta mídia.

Figura 11 - Quadro resumo para as ações do jogo

Essas máquinas de jogar são capazes de gerar uma sequência de imagens, e diferente da montagem tradicional do cinema cujo montador já edita sequencialmente as cenas, nos jogos digitais as imagens são geradas através do ato de jogar: o jogador faz o jogo jogando, desse modo gerando um fluxo de imagens. Nestes movimentos para pensar nosso objeto empírico, percebemos que a partir de apropriações técnicas e estéticas (vídeo, cinema) somadas às especificidades do ato de jogar (a ação), possuímos uma prática audiovisual a qual consegue puxar os limites de uma incrustabilidade. O jogo tensiona o seu próprio meio para nos mostrar que ele pensa, para se afirmar enquanto mídia com suas características próprias, desenvolvendo a sua linguagem e estética através de acionamentos distintos do modo de jogar: uma complexificação do lugar do jogo. Há, como já mencionamos/estamos propondo, uma apropriação da incrustação dos estudos de vídeo (DUBOIS, 2004), que se encaminha para tensionarmos e pensarmos sobre uma qualidade de incrustabilidade de jogos dentro de jogos, a qual aciona características como a nostalgia, o tributo, o déjà vu a partir da ação.

Desse modo, nos parece produtivo pensar o game como uma forma que pensa: o jogo como vê a si mesmo, onde não temos apenas imagens, sobreposições, cutscenes, mas o jogo como uma forma que pensa independente do seu dispositivo. Essa ideia se mostra bastante desafiadora: compreender as possíveis formas pelas quais a incrustabilidade se atualiza em nosso corpus. Este lampejo ao longo das reflexões aqui expostas é inspirado na ideia de Dubois (2004) do estado-vídeo, como visto anteriormente, o vídeo como uma forma que pensa. Podemos, assim, perceber que esse tipo de incrustação é um sintoma de um jogo que pensa quando ele traz em si jogos dentro de jogos (literal ou memorial). Ou seja, o jogo não pensa somente como a incrustabilidade, mas também pela ludicidade, pelo maquínico: é um sintoma de uma possibilidade de enxergarmos o jogo como uma forma, apresentando especificidades dessa incrustação pensada pelo jogo. Trataremos agora desta qualidade de incrustabilidade enquanto um devir tecnocultural.

4 DA INCRUSTAÇÃO À INCRUSTABILIDADE

No presente capítulo, seguiremos apoiados nos pensamentos de Philippe Dubois, porém de forma diferente do que vimos anteriormente no capítulo sobre o estado-jogo. Percebemos o jogo como um corpo, uma mídia dotada de memória que se atualiza, defendido nesta dissertação, por uma qualidade de incrustabilidade a qual deixa de ser apenas da ordem mais visual como o chroma key de Dubois (2004), ou de um jogo literalmente possível de ser jogado dentro de outro – embora este aspecto também faça parte de nossas escavações.

No entanto, é importante lembrarmos de que estamos partindo de uma ideia a partir da perspectiva da fenomenologia bergsoniana, e que, portanto, essa incrustação deixa de ser apenas um tipo de atualização, como vimos nos jogos Diablo III e The Witcher III: Wild Hunt, para algo que é durante. Para essa discussão, trataremos sobre a memória à luz de Henri Bergson e a questão da imagicidade de Sergei Eisenstein. Com isso, entendemos que os jogos são corpos dotados de memória e, portanto, são formas que pensam (de ser e de agir), conforme discutido no capítulo anterior.

Para iniciar essas reflexões que objetivam fazer o movimento da incrustação à incrustabilidade, primeiro iremos resgatar o raciocínio dos jogos dentro de jogos, através do qual foram feitas as primeiras especulações. Como tratadas no começo do trabalho, a arqueologia das mídias e o archaeogaming atravessam o corpo do trabalho por inteiro, onde, sempre que necessário, ambas serão convocadas para nos auxiliar a identificar as camadas do nosso objeto empírico e a entender este fenômeno. Foi ao nos depararmos com um outro jogo presente dentro de The Witcher 3: Wild Hunt que começamos a pensar nos jogos dentro de jogos como algo que nos chamava a atenção, que nos queria dizer algo. A partir disso, a incrustação passou a ser percebida como uma possibilidade de pensar sobre esses eventos em meio aos games.