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Gamificação como sistema social de aprendizagem

Capítulo 3 Gamificação: aprendizagem e criatividade

3.1. O jogo da aprendizagem

3.1.3. Gamificação como sistema social de aprendizagem

Considerando a aprendizagem como sendo contextual e social, a gamificação como sistema de comunicação procura promover/modificar as dinâmicas e contextos sociais onde ocorrem processos de aprendizagem. Os elementos dos jogos conferem a este sistema de comunicação um vocabulário lúdico que reenquadra um determinado contexto sério num contexto lúdico (LIEBEROTH, 2014).

Como vimos anteriormente, os jogos - num sentido amplo - podem ser uma ferramenta de aprendizagem num sistema sociocultural "que inclui pessoas como atores, amplos constrangimentos sociais e institucionais, e outros recursos"61 (RAMIREZ e SQUIRE, 2015: 631). Daqui decorre a ideia de que os jogos, e os seus elementos, podem entrar nas "engrenagens" de um dado contexto social, e em consequência, alterar o modo como ele habitualmente se processa.

Em conjunto, os jogos e a gamificação podem dinamizar o contexto social onde a aprendizagem ocorre, não apenas por apresentar conteúdos de uma forma apelativa, mas também por induzir nos aprendizes uma determinada experiência. Admitindo que "o nosso pensamento não é apenas moldado por, mas constituído através da nossa experiência de situações, incluindo objetos, interações, pessoas, e ferramentas culturais (linguagem, conceitos)"62 (RAMIREZ e SQUIRE, 2015: 632), então a gamificação pode ser entendida como uma estratégia eficaz em dinamizar interações sociais por força do tipo de experiência (lúdica) que proporciona.

A gamificação, como sistema de aprendizagem, não contribui somente para a aquisição formal de conhecimento, mas sobretudo, para uma aquisição de experiências que moldam a forma de pensar. Como situação experiencial, temos de olhar para o ensino gamificado como um sistema de aprendizagem que depende do modo como se joga63 (a jogabilidade), e da

                                                                                                                         

61Tradução livre do autor. No original "(...) that includes people as actors, broader social and institutional

constrains, and other resources." (RAMIREZ e SQUIRE, 2015: 631).

62Tradução livre do autor. No original "(...) our thinking is not just shaped by, but constitued through our

experience of situations, including objects, interactions, people, and cultural tools (language, concepts)."

(RAMIREZ e SQUIRE, 2015: 632).

63A ideia aqui subjacente é a mesma levantada pelos autores que alertam para o modo distinto como cada jogo,

história que se vai criando através dessa jogabilidade (a narrativa do sistema gamificado). Se,

por um lado, a importância da jogabilidade está no seu efeito de produzir conhecimento sobre o tema do jogo (GEE, 2003), por outro, a narrativa organiza o conhecimento sobre um determinado tema (RAMIREZ e SQUIRE, 2015).

Não obstante, e inserido num contexto social, a jogabilidade e a narrativa não são meramente funções operantes do jogo ou do jogador individual. Elas são propriedades moldadas pelos contextos culturais e sociais onde os sistemas gamificados são aplicados (RAMIREZ e SQUIRE, 2015). É a moldagem destas propriedades que dá origem a uma

microcultura local (RAMIREZ e SQUIRE, 2015) dentro de uma cultura mais ampla. Esta

microcultura é simultaneamente causa e efeito das atividades que acontecem dentro do ambiente gamificado, e são também responsáveis por posteriormente produzirem novos resultados ao nível da aprendizagem.

O objetivo final desta estruturação lúdica de interações de aprendizagem é a transformação das dinâmicas de uma dada instituição social. Apesar de difícil, a "transformação da cultura é o objetivo nuclear de um processo de aprendizagem"64 (RAMIREZ e SQUIRE, 2015: 645). Apesar da literacia ser uma dimensão importante na mudança de atitudes e comportamentos (OKAN, 2003; LEE e HAMMER, 2011; CUGELMAN, 2013; BERGER et al., 2014; TAVAKKOLI et al., 2014), as práticas culturais e os hábitos parecem ser uma dimensão fundamental:

"O habitus, um produto da história, produz práticas individuais e coletivas - mais história - de acordo com os esquemas gerados pela história. Garante a presença ativa de experiências passadas, que, depositadas em cada organismo na forma de esquemas de perceção, pensamento e ação, tendem a garantir a "corretividade" das práticas e a sua continuidade ao longo do tempo (...)."65 (BOURDIEU, 1992: 279)

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

que os jogos e os sistemas gamificados vão comunicar, e interagir, de modo distinto com diferentes comunidades.

64Tradução livre do autor. No original "(...) the transformation of culture is the core learning goal" (RAMIREZ

e SQUIRE, 2015: 645).

65Tradução livre do autor. No original "The habitus, a product of history, produces individual and collective

practices - more history - in accordance with the schemes generated by history. It ensures the active presence of past experiences, which, deposited in each organism in the form of schemes of perception, thought and action, tend to guarantee the "correctness" of practices and their constancy over time (...)" (BOURDIEU, 1992: 279).

O conceito de habitus, proposto por Bourdieu, pode dar-nos a indicação de que estratégias como a gamificação podem contribuir para a contínua transformação de certas práticas culturais, sendo nesta transformação que processos significativos de aprendizagem podem ocorrer. Ter mais informação ou conhecimento sobre um determinado tema pode não ser suficiente para fomentar novos comportamentos, pelo que a reestruturação de determinadas práticas culturais podem ser mais pertinentes na construção de novos significados simbólicos que podem ser indicativos de uma mudança. E neste aspeto, a gamificação, ao operar uma reestruturação lúdica numa determinada comunidade sobre um determinado tema, pode contribuir para uma reflexão coletiva e para a experimentação de novas práticas, abrindo espaço à possibilidade da cultura de uma dada comunidade sofrer uma mutação.

A concluir, é o modo como a comunidade joga dentro do sistema que vai contribuir para a construção de um novo sistema simbólico de aprendizagem, e essa experiência vai ser sempre diferente das outras comunidades. Se o sistema gamificado for aberto nos resultados que procura produzir, então diferentes formas de interação vão conduzir necessariamente a diferentes resultados de aprendizagem; e é precisamente nesta variedade cultural que pode residir a quintessência da gamificação como um sistema social de aprendizagem. No entanto, para que tal abertura seja possível, torna-se necessário fazer uma apologia à brincadeira e ao papel que ela poderá ter em contextos formais e informais de aprendizagem e trabalho. Resgatando a brincadeira e a criatividade dos sistemas gamificados restritos, verdejante poderá ser o caminho para uma verdadeira sociedade lúdica.