• Nenhum resultado encontrado

3. A regulação da neutralidade

3.1. Generalidades e valores em jogo

O capítulo que agora se enceta pretende oferecer uma visão sobretudo expositiva das

abordagens regulatórias – essencialmente formais – à neutralidade da internet. Uma análise global a

estas abordagens deteta desde logo a procura de um equilíbrio entre a possibilidade de os

fornecedores de acesso participarem nos lucros gerados pela internet, sem se abdicar da

interoperabilidade e descentralização que marcam a rede. É ainda particularmente relevante a

cautela dos vários legisladores, traduzida em intervenções sobretudo de caráter minimal, tentando

prezar ao máximo “o ecossistema da Internet”

379

, e sobretudo os méritos da vigente abordagem de

direito autónomo

380

. Não são líquidas as consequências, a longo prazo, de uma solução regulatória

com vista à proteção da neutralidade vigente através dos métodos formais de criação de Direito. A

ductilidade da tecnologia, e as suas constantes mutuações, abrem terreno à hipótese de a lei formal

rapidamente se tornar artefacto obsoleto, descredibilizando posteriores tentativas de ordenação do

ciberespaço

381

. Mas, ainda que se reconheça como necessária e benéfica uma intervenção jurídica,

amplamente considerada, questões se podem colocar quanto à preferência, por exemplo, por um

378

Vide JOÃO FACHANA, A Responsabilidade Civil pelos Conteúdos Ilícitos colocados e difundidos na Internet, pp. 124- 126, refletindo sobre o conflito entre a obrigação de retirada de conteúdos manifestamente ilícitos por parte dos intermediários de armazenamento, dos arts. 15.º e 16.º do RJCE – note-se sem recurso a uma entidade judicial ou administrativa com poderes jurisdicionais – e as liberdades de expressão e de informação. O autor refere ainda, muito pertinentemente, o mecanismo de solução provisória de litígios previsto no art. 18.º do RJCE, que tem a bondade de permitir tanto o recurso ao utilizador que se sinta lesado pela publicação de um determinado conteúdo lesivo, como do seu autor que entenda que a retirada do conteúdo carece de fundamento.

379 A expressão é do Regulamento da Internet Aberta, considerando n.º 1. 380

DAVID CASACUBERTA;MAX SENGES; “Do we need rights in Cyberspace? Discussing the case of how to to define on-

line privacy in an Internet Bill of Rights”, in Enrahonar: Quadernes de filosofía, n.º 40/41, 2008, p. 101, ressalvam os resultados de uma autorregulação capaz (sobretudo pela capacidade de adaptabilidade a uma realidade em permanente mudança), ainda que notando a insuficiência do modelo, a complementar por instrumentos de heterorregulação.. Sobre o conceito de direito autónomo vide LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Reflexões sobre a governação e a regulação da internet,

com especial consideração da ICANN”, pp. 370 e ss.

381 Alertando para as dificuldade de, legislando, se encontrar o terreno perfeito para evitar práticas de gestão de rede

abusivas, tendo em conta a especial complexidade técnica que caracteriza a atividade dos fornecedores de acesso, alguns autores entendem que a chamada de atenção para estes problemas, nomeadamente favorecendo um estado de alerta dos utilizadores, mas sem um enforcement claro, favorece um equilíbrio único (!), dissuadindo os operadores de comportamentos abusivos. Vide, entre vários, EDWARD FELTEN, Nuts and Bolts of Network Neutrality, pp. 5, 6 e 10, e TIM WU, “Network Neutrality, Broadband Discrimination”, p. 155, este último autor chamando a atenção para a

aplicação de regras de tratamento discriminatório pelos fornecedores de acesso muitas vezes baseadas na mera inércia e por isso destituídas de real sentido político ou económico.

69

modelo ex ante, necessariamente munido de permeabilidade suficiente para acautelar um leque

bastante amplo de situações, ou por uma intervenção ex post, corretiva e casuística, que permitira

afinar as “bright lines” que destrinçam o aceitável do inadmissível

382

.

A primeira solução legal

383

com vista à garantia da neutralidade da internet foi aplicada pelo

Chile, em 2010

384

. Também os Países Baixos, em 2012, alteraram a respetiva Lei das

Telecomunicações

385

introduzindo no artigo 7.4a a proibição dos prestadores de comunicações

eletrónicas perturbarem o tráfego dos utilizadores. O legislador holandês estabeleceu um elenco

386

típico dos desvios consentidos à neutralidade, prevendo as hipóteses de gestão de tráfego para evitar

congestionamentos na rede, para a preservação da segurança e integridade da rede, e ainda para

restrição na receção de comunicação não solicitada pelo utilizador quando ele nisso consinta. A lei

neerlandesa salvaguarda ainda o cumprimento de decisões judiciais, e prevê a proibição de cobrança

de preço no fornecimento do acesso com base nos serviços oferecidos aos clientes, consagrando

explicitamente a proibição de discriminação de preço no fornecimento de acesso à internet.

Exemplo assinalável colhe-se também na Noruega que desde 2009 aplica um modelo co-

regulatório, assente em guidelines negociadas entre o regulador nacional e os operadores do

mercado

387

.

Por último, refira-se o Brasil, que constitui um caso sui generis em matéria de regulação da

sociedade da informação

388

. Desprovido durante largos anos de um instrumento legislativo adaptado

às realidades potenciadas pela internet, a opção por uma lei de cariz essencialmente principial

descurou as questões concretas que noutros ordenamentos – no essencial muito por culpa da fúria

económica da internet – se sentiam como prementes, nomeadamente na regulação do comércio

eletrónico: “O Brasil preferiu ereger um muro de princípios gerais. Deste modo delimitou o solo a

382 D

AVID D.CLARK, “Network Neutrality: Words of Power and 800-Pound Gorillas”, p. 708, reconhecendo que a

segunda forma de intervenção apresenta mais vantagens tendo em conta a flexibilidade que lhe é característica, não abdicando da clareza e previsibilidade indispensáveis às soluções jurídicas.

383 Não se empreendeu um esforço de enumeração de todas as soluções legais existentes dirigidas à neutralidade da

internet. Os casos escolhidos baseiam-se em certas características dos regimes específicos e na relevância desses regimes para os caso português e europeu.

384

Através da Ley n.º 20.453, de 26 de agosto, disponível para consulta em http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=1016570&idVersion=2010-08-26 (última visita a 13/07/2016) impedindo a interferência, bloqueio, abrandamento e discriminação de qualquer conteúdo, serviço ou aplicação pelo fornecedor de acesso, nos termos da al. a), do art. 24.º-H resultante da alteração pela referida lei.

385

A versão atualizada da Telecommunicatiewet pode ser consultada em http://wetten.overheid.nl/BWBR0009950/2014-01-25 (última visita a 13/07/2016).

386 Constante do art. 7.4.º, n.º 1. 387 Conforme refere D

ARREN READ, “Net neutrality and the EU electronic communications regulatory framework”, p. 49, e nota 7. As guidelines podem ser consultadas em http://eng.nkom.no/technical/internet/net-neutrality/net- neutrality/_attachment/9222?_ts=1409aa375c1 (última visita a 13/07/2016).

388 Parte da exposição referente ao ordenamento jurídico brasileiro recolhe elementos das exposições orais de José de

Oliveira Ascensão e de Marcos Wachowic, aquando da I Conferência sobre Cibersegurança, organizada pelo Centro de Investigação Jurídica do Ciberespaço (CIJIC), que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no dia 4 de janeiro de 2016.

70

ser preenchido, mas não pôde deixar de cair numa certa vacuidade”

389

. A inércia legislativa em que

esteve mergulhado todo o processo de elaboração do diploma, com avanços e recuos que ditaram

anos de atraso para a regulação da internet numa economia em franco desenvolvimento, prendeu-se

essencialmente com a adoção de uma solução de neutralidade da rede. “De facto, o principal ponto

do debate foi o da neutralidade da rede. A posição oficial foi a defesa de uma Internete aberta, a que

todos pudessem recorrer em igualdade de condições; enquanto as empresas de informática, a

começar pelos quadros dos gigantes internacionais atuantes no Brasil, pretendiam que elas

pudessem dar um tratamento privilegiado aos seus próprios cliente”

390

. A custo, o art. 9.º do Marco

Civil da Internet – Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014

391

– consagra uma solução de neutralidade

nos termos da qual “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar

de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino,

serviço, terminal ou aplicação”. As restrições ao princípio consagrado obedecem a um

procedimento formal de audições várias e integram as atribuições privativas do Presidente da

República (art. 9.º, § 1.º), estando sujeitas a dois limites materiais: decorrerem de “requisitos

técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações” (I), ou (sic) acorrerem à

“priorização de serviços de emergência” (II). O legislador brasileiro vai mais longe, e no § 2.º

impõe condições à entidade devidamente autorizada para levar a cabo a prática discriminatória,

nomeadamente um dever de atuação com “proporcionalidade, transparência e isonomia” (II) no seu

desenrolar

392

.